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Marx e o trabalho, origem de todas as coisas

Como é que o trabalho produz valor, essa interrogação não tinha uma única resposta e, no entanto, era essencial. Marx dedicou-se a responder a tal questão. Artigo de Francisco Louçã.
Fotografia de Paulete Matos.

O trabalho é o hieróglifo da modernidade, assim pensavam os filósofos e economistas que procuravam perceber a tempestuosa emergência do capitalismo: olhamos para ele, sabemos dele, mas é tão difícil decifrá-lo. Em todo o caso, ao longo do século XIX, enquanto a Revolução Industrial se estendia e os Estados se definiam nos escombros das revoluções, das guerras napoleónicas e dos impérios, poucos desdenhariam do amplo consenso que atribuía ao trabalho – mas não ao trabalhador, já lá se chegará – o papel de guia na transformação do nosso mundo. Em contrapartida, como é que o trabalho produz valor, essa interrogação não tinha uma única resposta e, no entanto, era essencial. Marx dedicou-se a responder a tal questão.

O trabalho, o começo ou o meio?

Um dos pais do liberalismo clássico, John Locke, escrevia de modo categórico no seu Segundo Tratado sobre o Governo Civil: “É o trabalho, portanto, que atribui a maior parte do valor à terra, sem o qual ele dificilmente valeria alguma coisa; é a ele que devemos a maior parte de todos os produtos úteis da terra; por tudo isso a palha, farelo e pão desse acre de trigo valem mais do que o produto de um acre de uma terra igualmente boa, mas abandonada, sendo o valor daquele o efeito do trabalho". O trabalho acrescenta valor, portanto; tem um “efeito”. Mas criou o valor?

Quase um século depois, Adam Smith, outro dos fundadores do liberalismo, embora conhecido antes de mais pela emancipação da ciência económica em relação à filosofia, dava uma resposta a essa pergunta no seu Inquérito sobre a Riqueza das Nações, no dealbar da revolução industrial: “Não é com o ouro ou com o dinheiro, é com o trabalho que todas as riquezas do mundo foram originariamente compradas, e o seu valor para os que as possuem e que procuram trocá-las por novos produtos é precisamente igual à quantidade de trabalho que permitem comprar ou encomendar”. Para Smith, o trabalho não só aumenta o valor, ele é a origem de todas as riquezas e a sua medida. Mas Marx, o protagonista deste artigo, que não estudara Smith entre as suas primeiras leituras (nasceu 42 anos depois da publicação do livro de Smith), enquanto se dedicou só à filosofia não conhecia esta intuição sobre o trabalho como o alicerce da sociedade e fonte do valor e não sabia resolver esta perplexidade sobre o valor do trabalho na criação do valor.

A oportunidade surgiu numa das curvas do início da sua vida, quando se exilou em Paris. Marx tinha então 26 anos, estudos em filosofia e uma enorme rebeldia, mas faltavam-lhe conhecimentos sobre economia e queria dedicar-se-lhe; lançou-se por isso à anotação de alguns economistas clássicos ingleses, acrescentando-lhes as suas inquietações. A ligação entre as leituras, aliás, impunha-se: Hegel tinha lido Adam Smith e Marx lera Hegel.

Modestamente instalado na Rua Vaneau, entre a Praça dos Inválidos e o Jardim do Luxemburgo, entusiasmado com a efervescência política de Paris, Marx ocupou o seu tempo a conspirar mas sobretudo a ler. Leu imenso e as notas que disso resultaram ficaram conhecidas como os Manuscritos de Paris ou Manuscritos Económico-Filosóficos (de 1844). Elas demonstram que, antes de investigar o trabalho como parte do funcionamento da economia, Marx descobriu que é a economia que produz o trabalho, pois é a relação social que determina o lugar do trabalho.

A alienação é a forma do trabalho

Foi nesse texto de 1844 que Marx discutiu pela primeira vez de forma sistemática o seu conceito de alienação, e foi mesmo por aí que começou (nesse livro ainda duvidava do trabalho como o criador do valor, o que só vem a afirmar dois anos depois, na Ideologia Alemã, em 1846). Quis no entanto o destino que este livro só viesse a ser conhecido muito mais tarde, dezenas de anos depois da morte do autor, já no fim do primeiro terço do século XX, e, na verdade, quando um “marxismo ortodoxo” se instalara sob a batuta da Academia de Ciências da URSS, condicionando aos seus desígnios as ideias fundadoras do marxismo – e a crítica da alienação não fazia parte do acervo tolerável. Deste modo, ao longo de grande parte do século XX só se conhecia, no que diz respeito aos conceitos de trabalho e de alienação, que aqui me interessam, o primeiro capítulo do Capital (1867), escrito mais de vinte anos depois dos Manuscritos, que se limitava a apresentar o conceito de “fetichismo da mercadoria”, ou seja, a identificar a transferência imaginária de características humanas para a mercadoria. Com esta transferência, as relações sociais expressas na produção apresentam-se como relações entre coisas. Mas como se define o trabalho na sociedade, isso ficava por saber.

Ora, o conceito de “fetichismo” é inseparável da resposta para a pergunta: em que circunstâncias é que os trabalhadores aceitam o processo que os explora e que coisifica a sua actividade? Essa explicação é a alienação do trabalho e constitui portanto a essência da crítica do capitalismo como sistema económico e social (e, como descobriram os académicos de Moscovo, incomodava suficientemente os donos da URSS). Só que, como a resposta não era conhecida, tivemos durante muito tempo uma história ignorada no percurso de Marx quanto à análise do trabalho.

Os Manuscritos de 1844 explicam a alienação como uma característica da produção generalizada de mercadorias. Como o processo produtivo gera a acumulação de capital e aumenta o seu poder, leva à perda de controlo do trabalhador sobre a produção e sobre o produto do seu trabalho. Nesse sentido, a perda de autonomia do trabalhador no processo produtivo corresponde a uma socialização intensa, mas ao mesmo tempo a uma apropriação dessa socialização pelo capital. No capitalismo moderno, o individualismo é a ficção de uma ficção.

Marx perguntava e respondia nos Manuscritos: “No que consiste, então, a alienação do trabalho? Primeiro, no facto de que o trabalho é exterior ao trabalhador, isto é, não pertence à sua natureza, que não se realiza no seu trabalho, que se nega nele, que não se sente à vontade, antes se sente infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física ou mental que seja livre, mas antes que se mortifica e arruína o seu espírito. O trabalhador, assim, só é ele próprio quando não trabalha, e no seu trabalho sente-se fora de si próprio. O seu trabalho, por isso, não é voluntário, mas forçado. Não é a satisfação de uma necessidade, mas somente uma forma de gratificar a necessidade de outrem.”

Então, a alienação é a forma da produção mercantil sob o capitalismo, em que o trabalhador “se sente fora de si próprio”. Para esta análise da alienação, Marx inspirava-se no livro recente de um filósofo alemão, Ludwig Feuerbach (era catorze anos mais velho do que Marx), a “Essência do Cristianismo” (1841). O livro defendia a ideia de que Deus tinha alienado as características dos seres humanos. Essa apropriação de características humanas que passavam a ser representadas num ente mítico define a essência de uma perda, e essa perda é a alienação. Do mesmo modo que esta transposição cria a imagem de Deus, também no capitalismo a alienação cria a imagem do trabalho, exprimindo a contradição entre a produção social, pelo trabalho, e a apropriação privada da mercadoria, pelo capital, criando um mito conformista que submete a sociedade. A mercadoria, que parece valer por si própria, seria então o deus da modernidade, apropriando-se das características humanas. O trabalho produz coisas que se opõem e que dominam os seus produtores.

Assim, a alienação é a negação da individualidade, escreve Marx: “Suponhamos que produzimos como seres humanos [não alienados]. Cada um de nós ter-se-ia afirmado de duas formas: (1) na minha produção teria objectivado a minha individualidade, o seu carácter específico, e portanto apreciado não somente a manifestação individual da minha vida na actividade, mas também ao contemplar o objecto teria o prazer individual de reconhecer que a minha personalidade é objectiva, visível para os sentidos e portanto um poder acima de dúvida, (2) no seu uso do meu produto teria um prazer directo pelo facto de estar consciente de ter satisfeito uma necessidade humana com o meu trabalho, ou seja, de ter objectivado a natureza essencial do ser humano (…). Os nossos produtos seriam outros tantos espelhos em que se reflectiria a nossa natureza essencial” – precisamente o que a produção capitalista recusa, ao submeter o trabalho à necessidade de valorização do capital. A alienação que define o trabalho é a perda da “natureza essencial” do trabalhador. O trabalhador destrói-se pelo trabalho explorado: trabalhamos mais para sermos mais subordinados, a lógica divina do capital é essa. A alienação, portanto, é a condição da submissão do trabalho.

As três formas de alienação do trabalho

Para Marx, o capitalismo moderno gera três formas de alienação, isto é, de estranhamento das pessoas nas coisas que produzem: primeiro, o trabalhador separa-se da sua “essência” ou natureza, a que o diferencia de uma máquina; segundo, o trabalhador distancia-se do seu produto e do próprio processo de produção, porque o que produz não é seu mas de outro; e, terceiro e finalmente, os trabalhadores têm entre si uma relação alheada, pois não se reconhecem como parte do mesmo destino.

Por estas três vias, a alienação do trabalho é a forma do trabalho. Marx acrescentava outras consequências da alienação, e algumas têm uma importância crucial para os debates de hoje, como a percepção de que o trabalho submetido à produção de mercadorias para rentabilizar o capital é destruidor da Natureza e impõe uma relação instrumental e predatória dos seres humanos com o seu ambiente. Mas isso fica para outra reflexão.

A alienação suportaria em todo o caso a ideologia, que no conjunto das relações sociais afirma esta ordem de dominação. Segundo Marx, a ideologia seria então uma forma de representação de consciência, impondo-lhe uma visão do mundo dominada pelo capital. Seria desse modo uma forma de legitimação de poder, tomando o interesse particular pelo geral e impondo a afirmação universalista e eternizada de um modo de apropriação do valor do trabalho. A alienação é a explicação da dominação dos 99% pelo 1%, nos termos do discurso dos movimentos sociais do século XXI ou de Piketty.

Só que isto não é consensual, como podia ser? Louis Althusser, o estruturalista que teve os seus momentos de glória no último quartel do século XX, rejeitava este conceito de alienação como sendo idealista, como uma contaminação filosófica que perturbava o pensamento marxista, retirando-o da pureza científica, como se Marx ficasse reduzido a um moralismo, a uma virtude condenatória da injustiça original. No entanto, essa rejeição levava Althusser, na sua mecânica celestial, a ignorar a força do capitalismo, que é a conjugação da sua capacidade organizadora das relações sociais com a vertigem mitificatória que as sustenta.

Roland Barthes, em contraste, preocupava-se com os sinais e perturbações da modernidade. Para isso, retomou a teoria da alienação nas suas Mitologias, para concluir que o universal burguês é a expressão da ideologia auto-justificativa: “O estatuto da burguesia é particular, histórico: o homem que ela representa será universal, eterno (…). Enfim, a ideia primordial de um mundo perfectível, móvel, produzirá a imagem invertida de uma humanidade imóvel, definida por uma identidade infinitamente recomeçada.” Ou, por outras palavras, o mundo burguês é a fantasia da eternidade, é um mundo que cria uma indústria de comunicação baseada na mitificação. É uma alienação que representa o seu próprio poder.

Alienado, é o trabalho que produz

Questiona Marx: "Como os valores de troca das mercadorias não passam de funções sociais delas, e nada têm a ver com suas propriedades naturais, devemos antes de mais nada perguntar: Qual é a substância social comum a todas as mercadorias?”. E responde num texto de Para uma Crítica da Economia Política: “É o trabalho. Para produzir uma mercadoria, tem-se que investir nela, ou nela incorporar uma determinada quantidade de trabalho. E não simplesmente trabalho, mas trabalho social. Aquele que produz um objecto para seu uso pessoal e directo, para o consumir, cria um produto, mas não uma mercadoria. Como produtor que se mantém a si próprio, nada o relaciona com a sociedade. Mas, para produzir uma mercadoria, não só tem que criar um produto que satisfaça a uma necessidade social qualquer, como também o trabalho nele incorporado deverá representar uma parte integrante da soma global de trabalho invertido pela sociedade. Tem que estar subordinado à divisão de trabalho dentro da sociedade".

É portanto o trabalho a origem das mercadorias, e portanto da acumulação de capital, e portanto da organização do poder de classe, a estrutura da sociedade capitalista moderna.

Esse é o hieróglifo da modernidade: o trabalho é a criação de valor, o centro do processo produtivo, mas é trabalho alienado, estranhado de si próprio, porque produz um mundo de mercadorias que se opõe ao trabalhador enquanto consumidor. Este retrato, no entanto, vive um paradoxo, pois define o trabalho pela sua falta de representação social, pela sua negação, ou seja, pela sua subjugação.

É preciso passar da antropologia para a história e da história para a estratégia para buscar respostas a este enigma, porque é que a enorme expansão do trabalho ao longo destes dois séculos é subjugada pelo crescimento do mundo das mercadorias, ou porque é que o trabalho, que tudo produz, ainda não é nada. 

Artigo publicado na edição de abril da Visão História.

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