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Já não há sexismo?!

A igualdade na lei não chega para transformar a vida real. Hoje, em Portugal, as mulheres ainda despendem mais quatro horas do que os homens em trabalho não pago.

Esta semana foi divulgado um estudo da OCDE, "Society at a Glance 2011", que aponta Portugal como um país onde prevalecem desigualdades reveladoras de uma sociedade ainda muito marcada estruturalmente pelo sexismo e pela desigualdade de género, no que diz respeito à distribuição dos papéis sociais.

Portugal é então um dos países onde há mais diferenças de género no que toca à divisão das tarefas domésticas. A análise inclui 26 países da OCDE e, ainda, China, Índia e África do Sul.

Em 29 países analisados, Portugal surge como o quarto onde a diferença entre mulheres e homens é maior, no que respeita a trabalho não pago. São elas quem mais o faz, acarretando uma jornada dupla de trabalho. Só na Índia, no México e na Turquia é que esta diferença é maior. Em Portugal, as mulheres passam quase quatro horas mais do que os homens em trabalho não pago. Os homens gastam, por dia, pouco mais do que uma hora e meia.

E, se juntarmos o trabalho pago e não pago, então Portugal é o segundo país, a seguir à Índia, onde a disparidade é maior entre homens e mulheres, sendo sempre elas quem trabalha mais.

O estudo conclui que em todos os países as mulheres asseguram mais trabalho não pago do que os homens. Um dado curioso: nos nórdicos a diferença é pouco mais de uma hora, mas a média ronda as 2,5 horas por dia, e, mesmo na Noruega ou na Dinamarca, países onde há maior equilíbrio neste campo, são as mulheres quem mais dedica tempo ao trabalho não pago. 

Os autores do estudo apontam também dois aspectos que merecem alguma reflexão:

O primeiro é sobretudo o reiterar de uma conclusão que não é nova e que diz que à medida que as mulheres vão sendo cada vez mais activas no mercado de trabalho pago, existe uma transferência do trabalho não pago para os homens, ou seja, que quanto maior é a taxa de emprego das mulheres, mais repartida é a divisão do trabalho não pago. Bom, sabemos que isto não é uma regra, embora, de facto, a inserção das mulheres no mercado de trabalho tenha trazido maiores possibilidades de emancipação e transformação. O problema é que tal não é uma condição necessária, apenas suficiente, e por isso muitas das vezes o que acontece é a acumulação de duas jornadas de trabalho, o pago e o não pago. 

O segundo aspecto tem a ver com a predominância de mulheres nos trabalhos part-time. Os autores dizem que em países com uma relativa falta de oportunidades para trabalho em part-time, particularmente no sul da Europa, as crianças são um factor importante para as mulheres saírem do mercado de trabalho. 

Ora, na apresentação destes últimos dados encontra-se uma rasteira perigosa que em muitos países europeus tem pontuado o discurso liberal-conservador de apologia à flexibilização e precarização do trabalho. Apontar a falta de empregos part-time como causa da saída das mulheres do mercado de trabalho é virar do avesso o discurso sobre a emancipação das mulheres. Elas vão para casa para cuidar dos filhos e aí ficam exactamente porque lhes é dito que esse é o seu papel principal, apenas conciliável com um trabalho em regime de part-time. Isto é atribuir às mulheres o estatuto de trabalhadoras menores, arredá-las da sociedade civil e sobretudo deixá-las obviamente muito dependentes financeiramente (trabalhar a meio-tempo implica ganhar meio salário), para não falar da precariedade e da vulnerabilidade em relação ao desemprego. Isto implica a reiteração de um modelo de organização social no qual as relações de poder estão viciadas à partida porque se baseiam no sexismo e resultam da definição normativa dos papéis de género. 

Voltando ao trabalho não pago convém esclarecer que este inclui o doméstico, como cozinhar, limpar e jardinagem, tratar de crianças e de outros membros ou não da família, o voluntariado e ir às compras. O que o distingue do lazer é o facto de poder ser feito por uma terceira pessoa paga para o efeito. As actividades, como jogar ténis ou ver um filme, que não podem ser feitas por uma pessoa paga, são consideradas lazer.

Com a dupla jornada de trabalho as mulheres são então exploradas duas vezes, sendo que num dos casos a escravidão laboral é absoluta. O trabalho não pago exercido maioritariamente pelas mulheres é essencial do ponto de vista da organização social mas encontra-se excluído do sistema de produção. Serve sobretudo para assegurar a participação dos homens na sua vida activa, seja enquanto trabalhadores ou cidadãos. Note-se que sublinhar este aspecto não implica a apologia do trabalho doméstico assalariado ou da maternidade assalariada. Até porque isso não alteraria a relação de desigualdade e muito menos potenciaria a desconstrução dos papéis e do próprio género. 

Este estudo confirma que o sexismo é ainda um dos critérios de organização da nossa sociedade, que então resiste conservadoramente alicerçada na desigualdade de género. O Direito garante apenas uma igualdade virtual entre homens e mulheres. A sua plena actualização na realidade permanece em potência. A ampliação das suas condições de possibilidade está na nossa acção colectiva, mas também na individual.
 

Sobre o/a autor(a)

Investigadora e doutoranda em Filosofia Política (CFUL), ativista, feminista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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