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E se lhe chamássemos, simplesmente, Cartão de Cidadã?

A recente polémica em torno da proposta de alteração da designação do documento de identidade, o Cartão de Cidadão, reclama que, sem estridência, pensemos nos desafios políticos que, enquanto ativistas sociais, ela nos coloca.

Neste meu contributo não me referirei às críticas sobre a oportunidade política da proposta, pois recuso uma visão etápica do processo de transformação social. Defendo que, em democracia, todas as batalhas pela igualdade são prioritárias. Debruçar-me-ei, por isso, naquilo que creio ser importante para a discussão: o papel e o poder da linguagem na forma como dizemos o mundo e nos dizemos no mundo.

A linguagem organiza e dota de sentido o mundo em que nos movemos, mas essa organização e sentido não são neutros, são, pelo contrário, valorativamente marcados, traduzindo formas e relações de poder.

A linguagem traduz e reproduz os valores da cultura dominante de um determinado tempo histórico. A forma como pensamos os conceitos e as categorias que dão sentido e significado ao mundo são fornecidos pela linguagem, sendo que esta não resulta de nenhum processo natural de significação, mas é antes uma construção humana permeada por relações de poder e pelas marcas do tempo histórico.

O contexto da linguagem do tempo histórico presente é um contexto patriarcal, onde todas e todos somos socializados/as e onde o poder não se encontra igualmente distribuído. É neste contexto que as mulheres aprendem a dizer-se, a conhecer o mundo e a pensar-se a si próprias enquanto pessoas.

Uma das mais claras manifestações do poder da linguagem revela-se, precisamente, no facto de a experiência masculina ser representada como se fosse universal, isto é, comum a todas as pessoas, assumindo, assim, o papel de referente para toda a humanidade. Neste sentido, o masculino apresenta-se como género neutro. Todavia, precisamente porque a experiência a que se reporta é apenas a masculina, devemos assumir a designação de falso neutro.

Masculino e feminino linguísticos relacionam-se a partir da visão de uma diferença considerada inferioridade ou carência. E a relação que se estabelece entre o feminino e o masculino é de subalternidade, na medida em que o masculino emerge como termo genérico, não específico, capaz de integrar e absorver o feminino. Ou seja, o masculino é dominante e o feminino é dominado (ou derivado).

O masculino é tomado como género não marcado, como medida do humano e, como tal, sempre entendido como género de referência. A este processo Luce Irigaray1 chamou economia do mesmo, no sentido em que há uma redução que toma o Outro pelo Mesmo.

Quando o masculino é aceite como género neutro e não marcado, toda a diferença se converte no seu simétrico adversário. Deste modo, não encontramos na linguagem a expressão de sujeitos diversos em posição de igualdade. Encontramos, antes, subjetividades marcadas por uma diferença entendida como inferioridade, onde o masculino corporiza o poder e o feminino a margem de poder, o discurso marginalizado.

Da mesma maneira, a utilização do masculino como universal neutro não permite às mulheres saberem se estão ou não a ser nomeadas, o que exige um esforço de permanente exegese discursiva. Quando, por exemplo, Rousseau escreveu O Contrato Social, um dos documentos de referência das democracias ocidentais, expressou-se no masculino. Porém, honra lhe seja feita, Rousseau referia-se, efetivamente, apenas aos homens, uma vez que da sua proposta contratualista estavam excluídas as mulheres. Este permanente exercício de exegese, de saber se o masculino nos inclui ou não, de saber se uma obra é linguisticamente sexista ou “apenas” misógina é cansativo e injusto.

Engendrar um processo de eliminação da linguagem sexista é, em última análise, uma batalha pela democracia. O que se pretende é instaurar uma nova ordem linguística, inscrita na partilha do espaço, do tempo, do protagonismo e do poder, capaz de desafiar a hegemonia masculina e a ilusão da neutralidade e naturalidade das palavras. A nova linguagem será, então, um espaço em que as múltiplas subjetividades se podem dizer e expressar em posição de igualdade e sem derrogação.

Termino o questionamento desta história de invisibilidade feminina com uma provocação, que tem apenas como objetivo o exercício de nos colocarmos no lugar do Outro (da Outra, neste caso). Poderá o feminino incluir o masculino? Por que razão o masculino é neutro e o feminino é marcado? E se lhe chamássemos, simplesmente, Cartão de Cidadã? Sentir-se-iam todas as pessoas incluídas nesta designação?

Sou cidadã deste país e quero que, na linguagem, a marca do tempo histórico que é o meu seja essa mesma: a do combate por uma linguagem inclusiva, onde a diversidade se possa dizer e reconhecer.


1 IRIGARAY, Luce (1977), «Pouvoir du discours, subordination du féminin», in Ce sexe qui n’en est pas un, Paris: Minuit, 67-82.

Sobre o/a autor(a)

Editora, ativista feminista, membro do coletivo feminista A Coletiva
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