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Cuidado, a civilização está ameaçado

A proposta da deputada Sandra Cunha, do Bloco, de substituir o título do Cartão do Cidadão por Cartão da Cidadania provocou um frémito de discussões e de insultos que pareceria atestar da inexistência de tema mais candente. Muitos ódios políticos se ergueram esgrimindo a questão, como se fosse decisiva para o dia seguinte da República. PSD e CDS enxamearam as redes sociais de escárnio e maldizer. Os quezilentos viram nisto um maná dos céus. Muitos comentadores descortinaram a oportunidade de fazerem brilhar a sua mundividência. Pareceria portanto que, faltando assunto, este é o mais importante para tantas emoções. Mas não, arrisco-me a pensar que é somente testemunho do machismo de capoeira que ilustra alguns dos nossos mais preclaros espíritos.

A proposta, em si mesma, é afável e evidentemente modesta, seguindo aliás a preocupação expressa por entidades oficiais desde há muito (PSD e CDS incluídos, com a sua resolução ministerial de 8 de Março de 2013 sobre a inclusão e o esbatimento da discriminação de género, bem sei que era uma homenagem festiva do vício à virtude no dia próprio, e para esquecer depressa), procurando uma pequena mudança que ajuda a muitas mudanças para corrigir para a normalidade o que tem sido anormal e muitas vezes boçal na linguagem e nos costumes.

Houve quem reconhecesse o assunto e a proposta, que é contida nos seus efeitos e imerecedora de tanta atenção, como houve quem assinalasse que o estranho é a persistência da linguagem sexista, que representa uma história secular de patriarcado e divisão. Na verdade, o mofo do argumento passadista já não bate certo com a realidade. Com franqueza, alguém ainda tem pachorra para ouvir um historiador falar “dos feitos do homem ao longo de milénios”, ou um reitor universitário perorar aos seus “investigadores” num laboratório que só tem mulheres? A utilidade de uma linguagem inclusiva resultaria óbvia se algum destes espíritos estivesse a ensinar uma turma de 25 mulheres e dois homens, pois acharia estranho dizer-lhes “os alunos”, como aliás também acharia estranho usar a expressão muito mais adequada estatisticamente, “as alunas”. Talvez usasse mesmo “as alunas e os alunos”. Por isto, nesta questão de linguagem só vale a prudência, o reconhecimento da realidade, o cuidado na utilização das palavras.

Valendo então isto o que vale, o pânico argumentativo é mais revelador dos argumentadores do que do argumento, como se comprova pelas quatro classes de razões para que nada se faça, estamos tão bem como estamos.

O primeiro argumento é o isso-pode-ser-verdade-mas-não-vale-a-maçada. Foi o argumento de Luísa Meireles: a discriminação existe mas talvez não passe por aqui, logo não vale a pena, nada mudará na vida das pessoas. É o argumento do deputado comunista Jorge Machado: como há outras coisas mais importantes (e há), recusamos esta (Ferreira Fernandes explica como isto é superiormente inteligente). Não há que esquecer que o argumento serve sempre, pois também havia coisas mais importantes do que a paridade entre homens e mulheres e esse partido votou contra, tentando debalde que a paridade fosse recusada.

É um argumento que surpreende e é algo misterioso: se é pouco importante, não tem que ser razão para recusar; se é errado, é razão para recusar. Mas é errado? O país fica pior se a mulher deixar de ser chamada de “cidadão”? A solução, evidente, muda alguma coisa, mesmo que muito pouco: à Maria deixamos de chamar pela alcunha de José, sempre fica mesmo Maria como no seu nome.

O segundo argumento é o trauliteiro. Pedro Marques Lopes chama a isto uma “patetice” e não se contém, perguntando, na boa mitologia trolha, “e trabalhar, pá?”. Camilo Lourenço, no mesmo estilo bonacheirão, declara que isto é “tanto disparate que até dói” e que haverá um custo monstruoso (o argumento foi repetido por outras pessoas, certamente na santa ignorância de que substituir um título por outro nos próximos cartões que sejam impressos tem um custo suplementar que é zero). José Milhazes, este indignado, chama a isto “a mais indecorosa das posições”, ele gosta muito do seu mundo sem mudanças. Nuno Melo, entre tão distinta gente, vem também bombardear a ideia de Sandra Cunha, por ser “simplesmente ridícula” e custar “milhões de euros” – inimputável nas contas, o eurodeputado também se esqueceu que aprovou a proposta do seu governo para substituir “direitos do homem” por “direitos humanos” em nome da linguagem inclusiva. Vital Moreira junta-se-lhes para explicar que esta proposta é “totalitária”, pois nada menos do que isso: a liberdade é chamar “cidadão” à Maria, e chamar-lhe Maria é uma desfaçatez totalitária.

E, claro, tinha que reaparecer o nosso perseguido, o nosso Salman Rushdie, saindo da caverna onde se escondeu depois da fatwa dos alentejanos sequiosos de sangue e que até o atacaram com um cante, o inefável Henrique Raposo. Desta vez, cometeu uma graçola sobre a “esganiçada geringonça”, usando para tanto a aleivosia gramática de que foi capaz. Tenho pena do Raposo, porque ele ainda não compreendeu que o Expresso o exibe para o ridicularizar, apresentando-o no circo da opinião como o papagaio amestrado que repete a sua litania misógina, ainda por cima chamando à chicana um “ensaio”.

O terceiro grande argumento é o linguístico. Foi Henrique Monteiro quem se encarregou dele. Escreve o nosso comendador que há “substantivos uniformes” e por isso assunto arrumado: “uma criança não é uma menina, uma testemunha não é uma mulher”. Compreendo o enlevo com a sua própria palavra, mas não seria melhor pensar antes de escrever? Uma “criança” é um menino ou uma menina, pela certa. Monteiro certamente reparou que não há a palavra “crianço” (existe, no entanto é só na croniqueta do Raposo, mas não lhe ligue muito). Ora, em contrapartida existe “cidadão” e “cidadã”. Já agora, essa é a diferença entre “cartão do cidadão” e “cartão de cidadania”: no primeiro caso refere-se uma parte, na segunda refere-se o todo, precisamente porque só o segundo termo é um “substantivo uniforme” (até o Nuno Pacheco repete a graçola de sugerir acabar com o masculino e o feminino nos substantivos, o que parece giro mas é pouquinho como argumento, não é mesmo?). A Maria, que eu saiba, não é “cidadão”, é “cidadã”. O Mário é “cidadão”, não é “cidadã”. Se ambos tiverem um cartão de cidadania, parecerá normal porque será normal.

Em quarto lugar tivemos direito à teoria política. No Observador, pois então onde poderia ser. Paulo Tunhas, um escritor que atribui a Eduardo Cunha, o presidente do parlamento brasileiro (e um “gangster” segundo o New York Times), a “aparência de um sábio estóico”, delicia-se a explicar-nos que “na semana passada, almocei em casa de velhos e muito bons amigos. Em frente a uma bela lampreia, e, depois, na companhia de uma mousse de chocolate como já não comia há séculos, a conversa girou em torno de alguns dos costumeiros delírios da política nacional. (…) Também houve grande galhofa” – esta por causa do Cartão de Cidadania. Um perigo, evidentemente. Na mesma linha, José Manuel Fernandes alerta o país: se mudamos o título do Cartão de Cidadão, a República colapsa e um dia destes acordamos nas mãos da esquerda. Às armas, cidadãos (e mesmo cidadãs), a Pátria estremece de perigo.

Quanto pânico por coisa tão simples, tão fácil e tão pequena. Ele é o país em perigo, ele é a lampreia e a mousse de chocolate atravessadas por um delírio, ele é o substantivo uniformizado, ele é a malta que não quer é trabalhar, ele é o afundamento dos cofres públicos – abriu-se o baú das tormentas bíblicas.

A todos estes comentadores, permito-me alertar para perigo muito mais grave. Meus amigos, não estão a ver a floresta, à conta de só olharem para a árvore. O furacão destruidor está a chegar à costa e vocês a beberricarem cocktails. O perigo, o verdadeiro perigo, está na terra onde tudo se decide e até me custa dizer-vos o que tanto susto vos vai causar, espero que estejam sentados: a nota de vinte dólares vai passar a ter a figura de uma mulher. Já os vejo a estremecer de pavor: pois é mesmo uma mulher (e negra, é a ditadura do politicamente correto, e escrava, que coisa horrenda). Foi assim que se perdeu Troia: olharam para o cavalo e não viram o horror que vinha escondido nas entranhas.

A notícia que não estão a perceber é a pior de todas: já deixaram o Cavalo de Troia instalar-se entre nós. A civilização está perdido.

Artigo publicado em blogues.publico.pt a 22 de abril de 2016

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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