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Espantosa ilusão

Os "Panama Papers" são apenas uma árvore miúda que cresceu em floresta cerrada: contam-se cerca de uma centena de paraísos fiscais legais.

Não é tanto o que o poderoso trabalho de investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas revela que me causa surpresa. O mais surpreendente é como o Mundo parece acordar para uma realidade global mais do que velha e usada, até ao desgaste, florescimento e queda, por parte significativa das maiores empresas mundiais que bem conhecemos pelo nome próprio. O que me espanta é a ilusão. O fascínio poderia entregar-se ao regaço pelo ajuste de contas, pelo grito de revolta dos oprimidos ou por um perfil de exigência que se faz tarde. Infelizmente, há algo que parece sobrepor-se: a surpresa pelos factos, uma espécie de duas letras que coabitam em interjeição num ah prolongado pela consoante. Como se não fosse assim há décadas. É nestes momentos em que a surpresa nos desilude porque não se percebe o carácter da excitação. Qual o espanto com os "Panama Papers" (PP)? Ao alcance de barco, avião ou pensamento, a Madeira aqui tão perto.

Os próximos dias tratarão de clarificar a percentagem de "lusitanismo" nos PP. Se a Mossack Fonseca tem nome português que não seja só um prolongamento do nome de família da antiga série do Gato Fedorento. Os PP são apenas uma árvore miúda que cresceu em floresta cerrada: contam-se cerca de uma centena de paraísos fiscais legais. Não será por acaso que os projectos do Bloco de Esquerda sobre o enriquecimento ilícito, a zona franca da Madeira ou sobre a obrigatoriedade de relatoriamento das transferências para offshores foram sempre olhados com indiferença ou negação. Até que se esgotem ovos e iogurtes nas grandes superfícies.

Consequências. O Parlamento islandês foi rodeado por 10 mil pessoas, vidros pintados a ovos e iogurte. O primeiro-ministro islandês pede a demissão, sendo evidente que sua "morte política" já acontecera ao vivo e a cores numa entrevista de queixo caído. Parentesco. Quase em simultâneo, perante a ausência de Rui Rio, Passos Coelho acendia uma fogueirinha no enregelado Congresso do partido em Espinho, lançando Maria Luís Albuquerque na corrida para a sua sucessão interna. Com as devidas distâncias, não há qualquer ilegalidade primordial nos offshores ou na Arrow Global: o contexto que os aproxima é a ausência de vergonha.

Vamos até ao fim, mesmo? Deseja-se a ocidentalização dos PP e o fim da sua "selectividade". Apontar à Rússia, Irão, Paquistão ou Coreia do Norte é deixar as potências da OCDE a salvo. E não podemos esquecer que a maioria das pequenas ilhas de paraísos fiscais são meras dependências de forças como os Estados Unidos, Reino Unido ou Suíça. Até agora, quase todos - União Europeia, inclusive - coabitaram com os offshores globais perante a indiferença. Bernie Sanders já se levantava contra o "Panama Free Trade Deal" em 2011. Mas quando David Cameron é agora confrontado com o envolvimento da sua família, responde com o seu não envolvimento pessoal. Erro crasso. "É tudo o que tenho", diz ele. "Para dizer", acrescento.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 6 de abril de 2016

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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