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Morte assistida vs Cuidados Paliativos: Desfazer equívocos

Desde que nascemos há uma certeza que nos assiste: um dia, iremos morrer. Mas, apesar desta inevitabilidade, a morte arrasta consigo debates intensos. Artigo de Cristina Andrade.
Foto de Paulete Matos.

A natural evolução da sociedade tem originado também uma maior capacidade crítica da população quando procura cuidados de saúde, reivindicando o direito ser parte ativa e informada, decidir com consentimento informado, podendo aceitar ou rejeitar tratamentos. Este é um processo determinante na dignificação das pessoas que cada vez mais querem ser parte das decisões que as implicam e não recetores passivos de terapêuticas.

Indo ao encontro deste desígnio, desde há dois anos que é possível em Portugal efetuar o testamento vital, ou seja, registar de forma livre e esclarecida os cuidados de saúde que se deseja ou não receber, em caso de incapacidade para expressar essa vontade pessoal e autonomamente. Esta medida, que teve na sua origem um projeto do Bloco de Esquerda, vai no sentido certo: respeito pelas pessoas e pelas suas decisões.

Também determinante no respeito pelas pessoas e pela sua doença é o acesso a cuidados paliativos. Ciente desta realidade, o Bloco de Esquerda há muito que diligencia para seja efetivada não só uma rede nacional de cuidados continuados (que integra unidades com características diversas) como também pela existência de cuidados paliativos. Neste sentido, já em 2010 foi apresentado um projeto pela criação de uma rede nacional de cuidados paliativos; este projeto foi rejeitado. Algum tempo depois, o Bloco propôs a instalação de uma unidade de cuidados paliativos pediátricos no edifício do hospital de crianças Maria Pia, no Porto, que iria ficar desocupado. Esta proposta, que permitiria providenciar uma resposta inexistente para uma realidade dura mas real que é a das crianças com cancros terminais, foi rejeitada.

Neste momento, de acordo com os dados mais recentes da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), existem apenas 278 camas de cuidados paliativos no país, das quais 41 são na zona norte, 69 no centro, 139 na região de Lisboa e Vale do Tejo, 19 no Alentejo e 10 no Algarve. É pouco. Muito pouco. E muito mal distribuído pelo país. A esta desigualdade não é alheia a opção que tem vindo a ser efetuada de entregar a rede nacional de cuidados continuados ao setor social e ao privado, em detrimento do setor público. Aliás, no último ano, os acordos com privados cresceram 10% (representando cerca de 18% dos acordos e cerca de 20% das camas) enquanto os acordos com o Serviço Nacional de Saúde decresceram 42%.

É inquestionável a premência de aumentar a capacidade de resposta no âmbito dos cuidados paliativos, privilegiando o setor público e a adequada distribuição no território. Mas é também verdade que, mesmo no dia em que a rede seja capaz suprir a procura, ela não vai nunca colmatar a necessidade de dar resposta àquela pessoa que, perante uma doença incurável e um sofrimento intenso decide, livre, informada e conscientemente não fazer esse caminho.

Poder-se-á questionar se é legítimo que uma pessoa possa decidir em consciência sobre a sua vida e, consequentemente, sobre a sua morte? Creio que sim.

Também por isso, creio que não contribui para a clareza do debate referir os cuidados paliativos como se se tratassem de uma alternativa à morte assistida. Não são e também não são mutuamente exclusivos. Pelo contrário, respeitam e dignificam as opções que cada pessoa faz perante a sua vida, a sua doença, os tratamentos que recebe ou que não aceita receber, os cuidados paliativos que quer ter ou o sofrimento que não quer ter. Há pessoas que querem poder fazer a opção de não viver com o sofrimento intolerável advindo de uma doença degenerativa e terminal. É legítimo tomarem essa decisão. Não são mais nem menos do que ninguém. Não são mais nem menos resilientes. Não são mais nem menos lutadores. São pessoas que fazem opções conscientes sobre a sua vida. E a dignidade das suas escolhas deve também ser respeitada.

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