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O novo partido de André Freire

O que impressiona no artigo de Freire é a forma da política que propõe: é uma política deserta, sem qualquer programa político, sem qualquer ideia a propor aos eleitores, sem qualquer proposta para o país senão a participação governamental do seu novo partido.

Uma esplêndida notícia: André Freire anuncia a sua disposição de impulsionar um novo partido "da esquerda radical" mas orientado para uma participação no governo de Sócrates. Fá-lo de forma algo reservada, num violento artigo de demarcação contra o Bloco de Esquerda e publicado no dia 7 de Março no Público, mas a conclusão é evidente e prometedora. Quero por isso felicitá-lo e incentivá-lo à sua obra. Esse novo partido é necessário e a sua acção clarificaria muito da ambiguidade que envolve o pensamento e as escolhas das esquerdas em Portugal.

Não me ocuparei por isso de minudências da argumentação de Freire contra o Bloco, nem da forma como reconstrói com alguma fantasia a história recente (o episódio da ruptura com Sá Fernandes é contado como se não houvesse Mota-Engil no Terminal de Alcântara, por exemplo), nem da sua ligeireza acerca das razões que determinaram a criação do Bloco e o seu sucesso (Freire ainda pensa que foi o conservadorismo moral de Guterres que criou o Bloco, como se não tivesse sido contra o liberalismo autoritário de Sócrates que o Bloco tivesse obtido o seu maior sucesso eleitoral). Deixo isso de lado, porque são só artifícios de retórica, e pouco consistentes, para explicar porque é que o Bloco não serve, segundo Freire, para a função que lhe idealizou: colaborar com o PS no governo. O que merece reflexão é este desígnio estratégico que o novo partido proposto por Freire se propõe alcançar.

A apresentação da moção de censura é enunciada por Freire como a prova provada dessa desadequação entre o Bloco e a tarefa que o politólogo lhe tinha destinado. Tiro-lhe o chapéu, porque tem toda a razão. A moção de censura prova mesmo que o Bloco não faz nem fará parte do rotativismo político que tem governado Portugal e que, em alternativa, se propõe juntar forças para um governo de esquerda que dirija uma economia contra a recessão. Na verdade, toda a actividade política e social do Bloco, as suas anteriores moções de censura, os programas eleitorais ou os textos das Convenções demonstravam isso mesmo, mas o nosso crítico ainda não o tinha percebido. Entende agora a mensagem, e decerto não perderá mais tempo a recomendar a conciliação entre a esquerda socialista e o governo de Sócrates. Mais: conclui, e bem, que para isso é preciso formar o seu novo partido para a sua velha estratégia.

Mas o que impressiona no artigo de Freire é a forma da política que propõe: é uma política deserta, sem qualquer programa político, sem qualquer ideia a propor aos eleitores, sem qualquer proposta para o país senão a participação governamental do seu novo partido. Alguém pode confundir esta orientação com a convocação de algum carreirismo, mas não: trata-se de uma ideia sobre como deve a esquerda agir a longo prazo.

A proposta parte aliás da convicção de que essa participação seria plausível e bem acomodada pelo PS, chegando a sugerir que Sócrates só governou com a direita e consolidou a política orçamental com o PSD porque a tal foi obrigado, na falta de propostas e boa vontade das esquerdas.

Ora, a falsidade desta asserção é clamorosa, tanto no passado como no presente. No passado imediato, porque Sócrates tinha maioria absoluta (e não precisava do PSD) quando desencadeou a entrega de hospitais públicos ao Grupo Mello ou ao BES, ou quando aprovou o Código do Trabalho para destruir a contratação colectiva (com o voto contra de Manuel Alegre): nunca foi por pressão do PSD que se impuseram estas medidas, mas porque Sócrates entende que é através delas que deve reconstruir a economia do país. Mais recentemente, o Bloco apresentou 15 propostas concretas para o Orçamento em negociações propostas pelo governo, e confirmou que votaria um orçamento que consagrasse a prioridade do emprego e do salário qualificado (ignoro se Freire discorda destas 15 medidas, porque nada diz sobre o que deve fazer o governo). Mas o governo virou-se naturalmente para o PSD, porque era quem lhe garantia o ataque ao Estado social e o corte nos salários.

Pensar que o PS oscila hesitantemente entre a esquerda e a direita à procura do conforto de quem lhe oferecer aliança, é ignorar completamente a história do poder económico e social em Portugal. No livro colectivo "Os Donos de Portugal" demonstramos como ao longo de todo o século XX a política concreta foi determinada pelo poder económico e pelo continuísmo da visão autoritária, desigual e liberalizadora da sociedade, e como este poder se reforçou ao longo das várias gerações das dinastias financeiras. Nele se identificam as formas de assimilação do PS e do PSD e dos seus governos a este continuismo que tomou a forma do rotativismo.

Em termos de linguagem económica dos nossos dias, isto quer dizer que o sector da burguesia que tem dominado os governos do PS e do PSD-CDS é o que produz bens não-transaccionáveis, e que por isso coloniza o Estado para garantir o apoio à banca, aos empresários das obras públicas, da especulação imobiliária, das grandes superfícies, dos casinos, dos monopólios naturais, da energia e das comunicações. É o capital financeiro.

Daí concluo que a única estratégia possível para uma esquerda socialista é vencer o centro e a direita, socavando as condições desse rotativismo, para garantir em alternativa uma maioria para a acção pública que destrua os privilégios do capital financeiro e lidere o país para uma economia de pleno emprego. Para isso é necessário ganhar a maioria para um governo de esquerda, e a convergência de todos os sectores que defendem os serviços públicos e uma economia responsável é por isso a única política que conduz à vitória.

Como fica evidente pela indignação de André Freire, ele entende que esta política é inaceitável. Propôs ao Bloco - e agora desistiu de propor - que abandonasse a sua estratégia e passasse a apoiar o governo, na esperança de melhorar alguma das suas políticas (mas em texto anterior advertiu solenemente contra qualquer esperança de modificar as posições essenciais do governo). Propõe agora ao seu novo partido que adopte essa política, que é a razão da sua criação. E veremos em breve o resultado, se este novo partido for a votos, como é sua obrigação.

Há no entanto uma dificuldade: é que esta receita já foi experimentada. E André Freire, que é politólogo, conhece essa história de fracassos de esquerdas europeias. Sabe por isso que o que está a propor já foi aplicado por gente empenhada, mas só conduziu a dois resultados: ou ao desaparecimento da esquerda ou à sua transformação em direita. O primeiro caso, o do desaparecimento, foi demonstrado em Itália: a Refundação Comunista participou no governo Prodi, com ministros e com a presidência do Parlamento italiano, e apoiou a reforma da segurança social que indignou os trabalhadores e sindicatos. Nas eleições seguintes, não elegeu um único deputado. Caso diferente é o da Alemanha: os Verdes participaram em governos (tanto com o partido social-democrata como com a direita) e, ao contrário de Itália, ganharam e continuam a crescer. Mas são hoje um partido que defende a invasão do Afeganistão e a guerra colonial, e as políticas liberais da União Europeia, convertidos ao tatcherismo. Não sobrou nada destas esquerdas, simplesmente porque abandonaram os seus programas, mentiram aos eleitores e aplicaram medidas contrárias à sua natureza. O seu insucesso ou sucesso foi o seu fim, porque abandonaram a sua política própria.

Um partido que siga este caminho tem as portas do governo abertas, isso é certo. Mas nem a vaidade do poder o isentará do balanço concreto: será um partido para participar num governo para reduzir o salário, para vender os CTT, para aumentar os impostos sobre o trabalho, para embaratecer os despedimentos, para entregar os hospitais ao Grupo Mello e para proteger a finança. E, com franqueza, meu caro André Freire, partidos desses já há, e muito competentes no seu mister. É mesmo neste novo partido que quer empenhar a sua vida?

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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