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O segredo do Bloco

De onde veio a energia que fez do Bloco a força da esperança?

O caminho do Bloco de Esquerda para os 10% de votos talvez tenha começado em Atenas, em janeiro, quando Catarina Martins e Marisa Matias estiveram com Alexis Tsipras, empenho total na primeira tentativa de governo de esquerda na era da austeridade. Em julho, a Grécia chegou despojada à cimeira do ultimato e foi vergada a um novo memorando com a troika. O revés é profundo, mas o Bloco assume-o: a lição grega é que, para terminar o pesadelo da austeridade, um governo tem de resolver a dívida e portanto estar mandatado para uma eventual rutura com a moeda única. Catarina disse-o com todas as letras e a acusação de "colagem ao Syriza", lançada contra o Bloco, não colou no povo de esquerda. Fomos transparentes na solidariedade ativa e transparentes fomos no balanço da experiência grega até à data. Na Europa, não há facilidades para quem quer um futuro com dignidade. Jogo limpo.

Gente de verdade. A proposta do Bloco também se afirmou no contraste com a cultura publicitária dos partidos tradicionais. Agosto foi o mês da compra de imagens, da falsificação de estatísticas de emprego e de retratos de pessoas que, afinal, eram outras. Pelo contrário, o Bloco deu expressão a desempregados de carne e osso. O tema fotográfico regressaria ainda nos debates, quando Costa e Passos tentaram retirar os seus partidos da selfie do memorando, tirada em 2011. Nesses momentos, o Bloco falou simples, para todos aqueles que um dia gritaram "Que se lixe a Troika" e esqueceram de vez o centrão. Essas pessoas existem: no domingo, dos votos perdidos pelos partidos da coligação, houve meio milhão que o PS não conseguiu conquistar.

Desafio e afeto. Para a descolagem do Bloco nas últimas semanas, muito contribuíram dois fatores. Por um lado, o desafio lançado ao PS provou a disponibilidade do Bloco para transformar no concreto a situação política. Perante um António Costa balbuciante, Catarina enunciou claramente as condições de partida do diálogo para uma maioria de esquerda que responda à dívida e termine a austeridade. Por outro lado, a presença de Catarina no contacto de rua, fora do habitual cenário parlamentar, criou uma nova dimensão afetiva na campanha - o “Furacão Catarina”, uma liderança feminina, preparada e certeira, capaz de a todos tratar como iguais, sejam os veteranos da velha política, que derrotou no confronto, sejam as pessoas de baixa condição, que procurou sem receio e que lhe retribuíram essa proximidade com testemunhos fortes e expressões de afeto e encorajamento. De novo, gente de verdade.

"Ideal europeu". Na segunda-feira, ao pré-anunciar num debate televisivo um entendimento com a direita para a viabilização do governo, Ferro Rodrigues explicava o impasse do PS com o “ideal europeu” que Bloco e PCP não partilhariam. Diferente no tom, Ferro Rodrigues mal se distingue de Cavaco no conteúdo, ao reduzir o país aos seus “compromissos internacionais”. Depois da última febre privatizadora, o “ideal europeu” ordena agora o assalto à segurança social e aos serviços públicos... e as ambiguidades do PS vão-se esclarecendo à direita. A única “linha vermelha” é a do telefone alemão.

A austeridade europeia está a transformar o regime e a alternância avariou-se. Apesar do desempenho do Bloco, o campo à esquerda está ainda longe, em dimensão e unidade, de poder disputar uma maioria de governo. Preparar essa disputa e constituir, com noção de urgência, essa comunidade de debate e proposta, convergência e luta - eis o passo que conta.

Estes 10% de votos, o melhor resultado de sempre do Bloco, inspiram esse passo. São a força da esperança.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda. Jornalista.
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