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O regresso da tirania

A estupefacção da opinião pública perante estes casos é mais do que justificada. No primeiro, porque a Relação implicitamente legitima, na área da corrupção, aquilo que na linguagem quotidiana se chama "atirar o barro à parede, para ver se cola!" A partir desta decisão, qualquer pessoa está legitimada para dirigir propostas de corrupção a qualquer funcionário público, na expectativa de que este mova as suas influências ou transmita a proposta a outro, que possa dar satisfação ao pedido. Se der resultado, óptimo para quem corrompe, para quem é corrompido e para o intermediário corruptor: "o barro colou!" Se não, não há problema nenhum: como aquele a quem o corruptor se dirigiu não tinha poderes para o acto, não há crime. Tenta-se então ir "atirar o barro" a outra parede, para ver se "cola" noutro lado. Melhor desculpabilização jurídica da prática da tentativa de corrupção é difícil imaginar.

No outro caso, do exame da faculdade, o que se nota é que se utiliza a liberdade de ensinar e aprender para rebaixar e agredir um grupo social, com cujos padrões de vida ou concepções morais não se está de acordo. Colocar o casamento homossexual no mesmo contexto de análise jurídica do casamento de um humano com um animal ou entre animais é o mesmo que, por exemplo, alguém discutir preferências gastronómicas com canibais. A colocação dos casos no mesmo contexto de análise sugere que poderão existir semelhanças entre eles, ou seja, sugere que poderá haver algo de animal no casamento homossexual ou algo de homossexual no casamento com animais ou entre animais, e que só uma rigorosa análise juridica poderá separar as águas. Maior agressão aos cidadãos homossexuais é difícil imaginar.

Há muito que a desconfiança sobre o funcionamento das instituições jurídicas se estabeleceu: sintetizando as principais queixas, os tribunais não funcionam, os processos estão muito atrasados, os magistrados não fazem justiça e as leis estão redigidas de forma a proteger os transgressores e os criminosos, que tanto mais protegidos são quanto mais alto se encontram na hierarquia social ou quanto maior e melhor é a rede de relações sociais de que dispõem. E os cidadãos indignam-se contra estas situações. Mas porque é que se indignam? Porque se sentem desiludidos e pensam que, mesmo no sistema político-económico em que vivem, pode ser de outra maneira - e é esse o seu erro.

Há um elemento fundamental da perspectiva marxista do Direito, que tantas vezes se esquece: as leis são simples formulações escritas da violência de facto existente nas relações de produção, mas redigidas de forma a ocultar a verdadeira natureza dessas relações. Uma das funções do "Direito" é dar a forma escrita ao poder de facto de uma classe sobre a outra, fazendo, através da sua técnica própria de formulação e da sua linguagem específica, aparecer como socialmente consensual e justo aquilo que, na realidade, é a simples imposição dos interesses de uma classe e da sua visão do mundo. E, portanto, nunca o Direito se pode voltar contra o seu criador, a classe que é dominante na sociedade.

Mas há uma condição que tem que cumprir: para que o domínio através do Direito crie a ilusão de que é consensual e justo, as leis têm que ser formuladas e apresentadas como sendo iguais para todos. Só que há uma grande diferença entre a formulação das leis e a sua aplicação. Se as leis podem ser formuladas como sendo iguais para todos, elas já não podem é ser aplicadas de forma igual para todos, porque tal iria contrariar os interesses da classe que as faz, mas que, ao mesmo tempo, não se quer deixar enredar nas malhas das suas próprias leis.

Assim, sempre que existe o risco de os interesses da classe dominante serem prejudicados pelas leis que a própria classe fez, então, por exemplo: ou as leis são revogadas, ou simplesmente alteradas, ou os tribunais superiores dão-lhes, nos casos concretos, uma interpretação nova, ou criam-se tantas opiniões interpretativas que ninguém se entende e, na prática, permitem-se decisões infundadas e arbitrárias, ou os processos páram, ou se arrastam infindadamente, ou há prescrições dos procedimentos, ou não há tribunais instalados, ou os juízes das primeiras instâncias, as mais importantes porque mais perto dos casos concretos, são assoberbados de trabalho, despejando-se-lhes em cima processos aos milhares e forçando-os a pensarem mais nas suas carreiras do que na justiça dos casos.

Ou seja, as leis que se dão com uma mão, tiram-se com a outra. Na prática, não há leis nenhumas, apenas decisões de acordo com os interesses da classe no poder. Voltando ao princípio: se a classe dominante não quer agudizar a perseguição da corrupção, porque no fundo precisa dela, porque é através dela que se pode eximir às suas próprias leis, às leis que fez apenas com a finalidade de criar a ilusão de que Estado funciona de acordo com a legalidade, então pode interpretativamente restringir a sua aplicação. Se a classe dominante quer atingir um determinado grupo social, então pode contornar todas as proibições legais- por si mesmo criadas - da discriminação social e da difamação pessoal, transformando a sua censura moral numa - aparentemente - simples questão académica.

O que é importante é que a classe dominante nunca se quer deixar aprisionar nas suas próprias leis, porque o seu interesse não é viver de acordo com as leis que cria, mas sim sem elas ou apesar delas: o cumprimento das leis é destinado apenas aos outros, e este resultado obtém-se através da respectiva aplicação: as leis fazem-se para todos, mas não para serem aplicadas a todos.

Ora, o Neo-liberalismo actual, ao mesmo tempo que vai tomando conta dos Estados, leva ao extremo esta diferença entre as leis feitas e a sua aplicação prática. Leis e Neo-liberalismo são realidades incompatíveis e a corrupção é um exemplo desta circunstância. A corrupção aumenta porque deixa de ser uma anomalia do sistema, tornando-se no próprio sistema. O que o fenómeno da corrupção nos mostra não são apenas os seus casos isolados: mostra-nos sim o próprio sistema político Neo-liberal, perspectivado na sua tarefa inadiável de se desembaraçar de todos os obstáculos ao seu funcionamento. Dito de outra forma, de se desembaraçar a si próprio de toda e qualquer forma de obediência prática, por mínima que seja, às leis que supostamente criou para regular a actividade do Estado, libertando a classe no poder para uma actuação sem leis, o que significa, para uma actuação sem limites.

Ora, quando esta dualidade entre as leis e a aplicação das leis atinge os pontos extremos que actualmente se vivem, então deixa de se poder ver a realidade política da mesma forma que se via até então. Como já o filósofo político Leo Strauss* notava, num comentário ao dialógo de Xenofonte "Hieron", que é um diálogo sobre a tirania, a questão da tirania não se põe tanto em saber se o tirano é melhor ou pior: a verdadeira essência da tirania é o acto de governar sem leis.

36 anos depois do 25 de Abril a tirania está-nos novamente a bater à porta.

*Leo Strauss, On Tyranny - an interpretation of Xenophon's Hiero, with a Foreword by Alvin Johnson, Political Science Classics, New York,1948, p. 53.

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário em Tübingen, Alemanha
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