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Da alta velocidade ao elefante branco do Transporte de Carga

Nas últimas semanas, o Governo tem proposto a construção da ligação ferroviária eletrificada entre Sines-Poceirão-Caia(fronteira) como a solução inovadora para o aumento da competitividade das exportações. A novidade é que o Governo quer a ligação em bitola europeia e não em bitola ibérica. Esta "pequena" diferença é o novo elefante branco. Contributo de Bruno Filipe Santos, Professor da Universidade de Coimbra

Nas últimas semanas, o Governo tem proposto a construção da ligação ferroviária eletrificada entre Sines-Poceirão-Caia(fronteira) como a solução inovadora para o aumento da competitividade das exportações. Esta ligação, que deverá permitir ligar o Porto de Sines a Madrid e ao centro da Europa, surge em substituição à ligação Lisboa-Madrid em Alta Velocidade (AV). No entanto, esta proposta, já apresentada no Plano Estratégico dos Transportes, publicado em Diário da República em novembro último, não traz muito de novo ou inovador. A ligação do Porto de Sines à fronteira já está prevista desde a cimeira Luso-Espanhola de 2003 e o seu cofinanciamento por parte da União Europeia está previsto há quase uma década por ser este um dos eixos do Projeto Prioritário n.16 da Rede Transeuropeia de Transportes. Mais, o troço Évora-Caia em "via lenta" para carga fazia parte do projeto de AV Lisboa-Madrid.

A novidade das últimas semanas é que o Governo quer a ligação em bitola europeia e não em bitola ibérica, como acontece na generalidade da rede convencional em Portugal e Espanha (a bitola é a distância entre as faces internas dos carris). Esta "pequena" diferença, que é apresentada pelo Governo como sendo o fator diferenciador que servirá de charneira para o aumento das exportações nacionais e que nos irá aproximar da restante Europa, é o novo elefante branco. Se não vejamos:

- Os espanhóis não estão interessados em fazer a mudança já. Para que esta ligação a Madrid e à Europa Central tenha efeito é preciso que o Governo espanhol entenda construir do seu lado centenas e centenas de quilómetros de ferrovia em bitola europeia. Na situação económica atual, certamente que a prioridade de investimento dos espanhóis não será na migração de bitola. Primeiro, porque Madrid está mais preocupado com a ligação aos portos espanhóis, nomeadamente com o porto de Algeciras junto a Gibraltar; e segundo, porque esta ligação sempre esteve acordada em bitola ibérica (polivalente, para possível alteração de bitola no futuro), melhorando apenas a rede existente, sendo que o investimento em bitola europeia se cingia à rede de AV que Portugal abandonou. Convém referir que, pese embora a linha de AV Lisboa-Madrid estivesse prevista como mista (para passageiro e carga), esta não poderia ser usada pela carga pesada vinda de Sines por motivos técnicos (capacidade da infraestrutura) e por motivos de operacionalidade (colocar comboio necessariamente mais lentos numa linha com transporte rápido de passageiros). Por esse motivo, estava prevista do lado português a tal "via lenta" para carga em bitola ibérica, em parte paralela à linha de AV.

- Os operadores de transporte ferroviário de carga não estão interessado nesta ligação em bitola europeia, por motivos diversos. O primeiro prende-se com a atual frota do operadores nacionais, que está inteiramente adaptada à bitola ibérica e seria necessário um investimento considerável na aquisição de novas locomotivas e vagões adaptados a esta nova ligação. Segundo, porque o mercado destas empresas é essencialmente o mercado ibérico, onde toda a rede ferroviária está em bitola ibérica. Depois, porque a ligação a Madrid, nas condições de negócio atuais, não é uma ligação muito atrativa para as operadores - Madrid é um grande centro de consumo mas pouco produz fazendo com que os vagões estejam condenados a virem praticamente vazios de Madrid. E ainda porque existindo já uma ligação entre o Porto de Sines e a fronteira espanhola (passando pelo Entroncamento! e tendo troços com desníveis impraticáveis), a preocupação de investimento por parte dos operadores centra-se sobretudo no melhoramento da linha existente e na redução da distância, não numa mudança de bitola.

- O custo do transvase na fronteira Francesa não é o verdadeiro problema do mercado de exportação. O aumento de competitividade com a eliminação do transvase da bitola ibérica para a bitola europeia, que atualmente acontece junto à fronteira francesa, parece ser pouco mais do que um mito. Dando o exemplo da ligação entre Portugal e a Alemanha, de onde vem parte da matéria prima para a Autoeuropa, esta demora entre 3 a 4 dias. O transvase na fronteira francesa demora entre 2 a 3 horas e custa pouco mais de 20€ por unidade de carga, num transporte que custa centenas de euros por unidade. Sabendo que este tipo de transporte de carga é muito mais sensível ao custo de transporte do que ao tempo em trânsito, a situação atual de necessidade de transvaso parece não ser o problema. Para além disso, o problema de interoperacionalidade entre as redes vai para além da diferença de bitola, passando também por diferenças na alimentação elétrica das locomotivas e dos sistemas de sinalização e controlo. E estes problemas começam logo na fronteira espanhola.

- As empresas exportadoras têm pouco a ganhar com este projeto em bitola europeia. É inegável a necessidade de melhorar a ligação entre o Porto de Sines e a fronteira Espanhola, para aumentar a atratividade internacional deste porto. No entanto, as empresas de exportação nacional pouco beneficiam com isso. Como estas não se localizam em Sines, o máximo partido que podem tirar desta ligação é usarem-na para fazer chegar os seus produtos ao Porto de Sines (e exportarem por via marítima) ou para colocarem os seus produtos por terra no mercado europeu (em particular, em Espanha). No entanto, para chegarem a esta nova linha em bitola europeia, as empresas terão de o fazer por camião ou por via ferroviária em bitola ibérica. Logo, de qualquer das formas, vão ter a necessidade de proceder a um transvase. No caso de quererem exportar pelo Porto de Sines ou para Espanha, terão de fazer um transvase desnecessário com a ligação em bitola ibérica. No caso de quererem exportar além Pirinéus, o que irá acontecer é uma substituição do transvase que atualmente é feito junto à fronteira francesa por um transvase realizado em território português. A adicionar a isto, deve-se ainda dizer que um grande parte da produção de exportação nacional se localiza no norte do país, sendo que a ligação de Sines pouco poderá acrescentar à competitividade dessas exportações.

Estamos por isso perante mais uma solução apresentada por este governo que é uma não solução. Mal estudada e revelando pouco conhecimento da situação atual, é mais uma ideia que soa bem na opinião pública mas que na prática não funcionará. É claro que Portugal teria a ganhar com a mudança para a bitola europeia em toda a península. Mas essa mudança é ainda uma utopia, pois terá necessariamente de envolver investimentos massivos na infraestruturação ferroviária, fazendo chegar as ferrovias em bitola europeia a toda a península, nomeadamente à porta das indústrias exportadoras. De outra forma, a questão do transvase continuará presente para além Pirenéus e aparecerá para os movimentos ibéricos.

A proposta de construção de um eixo isolado, provavelmente sem ligação do lado espanhol, não é por isso o mudar do paradigma. Não soluções como esta são na verdade, mais uma vez, o adiar da reflexão verdadeiramente estratégica sobre os investimento necessários e possíveis para a nossa rede ferroviária de mercadorias. Depois de décadas de investimento em estradas, depois de um projeto megalómano de AV (chegou a ter 5 linhas!), fica por fazer o melhoramento da nossa rede em bitola ibérica, incluindo a ligação existente entre Sines e a fronteira, fica por resolver o quase total estrangulamento da linha do norte para mercadorias, fica por discutir a convergência de operacionalidade entre Espanha e Portugal, e continua-se à espera do melhoramento do eixo ferroviário de mercadorias entre o norte de Portugal e Espanha, passando em Vilar Formoso ou um pouco a norte, esse sim fundamental para as exportações nacionais.

Bruno Filipe Santos, Professor da Universidade de Coimbra

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