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As crianças e o crime: crónicas de uma luta entre a Grécia e o FMI
A troca de galhardetes entre gregos e troikanos é alimentada a tweets, comentários, conferências de imprensa e comícios. Com o aprofundar da evidência que as “instituições” não negoceiam o corte nas pensões (o que deixa antever porquê o debate sobre a insustentabilidade da Segurança Social em Portugal), finalmente o governo grego tirou as luvas e lançou ao FMI uma acusação que não é tão costume ouvir: de ter uma atitude criminosa e responsabilidade criminal.
No final da reunião do Eurogrupo, Christine Lagarde, presidente do FMI respondeu que era preciso “recomeçar o diálogo, mas com adultos na sala”. É seguro que Lagarde, como a maioria dos negociantes dos credores, não está habituada a lidar com políticos que têm uma espinha e que respeitam os mandatos para os quais foram eleitos. Depois de anos a pôr e dispor de governos, políticas e futuros, o FMI assusta-se por ter de lidar com pessoas e não com lacaios.
Cruzando argumentos, e levando a sério o que foi dito de parte a parte, vejamos: 1. Tsipras tem 40 anos, é adulto há mais tempo do que aquele que foi menor; 2. Varoufakis tem 54 e Tsakalotos, o terceiro negociador, tem 55, também um adulto. Por outro lado as atividades do Fundo Monetário Internacional desde a sua fundação em 1944, podem ser avaliadas no que diz respeito a atitudes criminosas e responsabilidades criminais.
O FMI funciona desde os anos 70 como salva-vidas da banca. Financiou as dívidas dos bancos europeus e americanos através de “bailouts” à América Latina, cujo dinheiro saía diretamente para a banca privada ocidental. Criminoso? Talvez ainda não. Os “ajustamentos estruturais”, políticas do FMI, são iguais desde a primeira vez que foram implementadas, financiadas pelo FMI na ditadura de Pinochet. O FMI sempre prestou ótimos serviços a ditaduras sangrentas: emprestou dinheiro a Marcos na Filipina, Suharto na Indonésia, Baby Doc Duvalier no Haiti, Mobutu no Congo ou Videla, na Argentina. Em 92 implementou um pacote de privatizações no Ruanda, emprestando ao presidente Habyarimana, que usou o dinheiro para iniciar o genocídio que matou mais de um milhão de pessoas no Ruanda.
No final, o FMI exigiu o pagamento do empréstimo de volta. Com juros. Começa a entrar o criminoso? As intervenções de FMI e Banco Mundial fizeram a esperança média de vida na Rússia cair de 65 anos para 57 desde 1992, e cair 15 anos desde 1980 na África Subsahariana. Das instituições para as pessoas, compõe-se o ramalhete. O ex-presidente do FMI Strauss-Kahn foi agora absolvido de violação, mas o antecessor Rodrigo Rato está preso por fraude no Bankia. Christine Lagarde está sob investigação pela entrega de 285 milhões de euros de dinheiros públicos ao magnata Bernard Tapié, enquanto era ministra de Sarkozy.
Pondo na balança quem é o quê e quem fez o quê, dos gregos nada há a apontar, enquanto o currículo da troika dos credores é uma galeria e depois da América Latina, Ásia e África, o FMI veio ao saque na Europa. O poder sem controlo da troika na Europa ficará na História como um patético exemplo da subserviência à banca e à finança, pondo em causa todas as bases da sociedade.
Artigo publicado em p3.publico.pt em 19 de junho de 2015
Comentários
Houve um tempo em que a
Houve um tempo em que a esquerda latinoamericana (a brasileira mais agudamente eu me lembro porque sou de cá) bradava em vão "Fora FMI" e "Pela Auditoria da Dívida 'Eterna' Brasileira". Chamavam-nos loucos, diziam que éramos irresponsáveis, que apenas não queríamos pagar o que devíamos (e não se pagar o devido é uma falha moral séria no sistema em que vivemos). Impôs-se contra nós o "Consenso" de Washington (de Washington, porque nós não estávamos lá para discutir). Consenso da ponta da pirâmide, imposto à base. Aí da Europa o povo muitas vezes alheio ou mal informado acreditava na imprensa. Somente agora, que o saque do FMI bate às portas da Europa, a consciência da monstruosidade do neoliberalismo começa a despertar.
Sonhamos com o dia em que todos, pobres e ricos, nos unamos para proteger o nosso futuro comum contra a ambição dos "podres de ricos". Por pobres que sejam, as pessoas não saem de seus países para enfrentar terras estrangeiras, com outras línguas e costumes e paisagens, se estiverem em relativa segurança em seus lares originais. As hordas de imigrantes são fruto da pobreza e do desespero, não do desejo de destruir as conquistas alheias.
Sutil ironia que caiba à Grécia, berço da democracia, o protagonismo nesse momento histórico. Esperemos que os gregos triunfem, mesmo que precisem recorrer ao apoio de governos autoritários (como a Rússia).
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