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O masculino genérico: uma questão gramatical ou um debate ideológico?

Quando surge o tópico da linguagem inclusiva há sempre alguém que faz qualquer comentário que desvaloriza o direito à representação linguística da identidade. Insisto na importância de eliminar o uso do masculino genérico ou do falso neutro. (texto publicado em abril de 2015)

Quando, numa conversa entre várias pessoas, surge o tópico da linguagem inclusiva há sempre alguém que diz que é uma questão meramente gramatical, ou que a igualdade de género já é uma realidade porque está na lei, ou faz qualquer outro comentário que minimiza e desvaloriza o direito à representação linguística da identidade e o direito a uma igualdade entre mulheres e homens real e efetiva.

Esta 'liberdade gramatical' constitui um importante mecanismo de reforço de um modelo em que o homem se torna a medida do humano, a norma ou o padrão. O uso do masculino genérico hierarquiza as relações de género, colocando as mulheres numa posição subalterna à dos homens em todas as áreas do pensamento

O sistema gramatical de género em Portugal tem como norma a concordância de género simétrica, que prescreve o uso do género gramatical masculino para designar o sexo masculino e do género gramatical feminino para designar o sexo feminino. Essa igualdade é desfeita quando ao valor do género gramatical masculino se junta o outro valor, dito genérico, que permite, por extensão, que o género gramatical masculino se possa aplicar também aos seres humanos do sexo feminino, possa designar também as mulheres.

Esta 'liberdade gramatical' constitui um importante mecanismo de reforço de um modelo em que o homem se torna a medida do humano, a norma ou o padrão. Neste modelo patriarcal, encobertas na referência linguística do masculino genérico, as mulheres tornam-se praticamente invisíveis na linguagem, mas mais do que uma mera sub-representação linguística das mulheres o uso do masculino genérico hierarquiza as relações de género, colocando as mulheres numa posição subalterna à dos homens em todas as áreas do pensamento.

Maria Isabel Barreno realizou, em 1985, um estudo sobre a discriminação das mulheres em que procedeu à análise do discurso escolar e das imagens dos manuais utilizados no ensino secundário, concluindo que estes revelam uma assimetria de poder, quer na descrição da vida profissional, quer social de mulheres e homens que sumariza na expressão 'falso neutro'. O falso neutro denuncia a utilização do masculino genérico, isto é, o uso do género gramatical masculino para designar o conjunto de homens e mulheres. Um exemplo é a utilização frequente das expressões “o Homem” ou “os homens” como sinónimos de a “a Humanidade”. Segundo a autora “As palavras não são escolhidas arbitrariamente. Homem corresponde a ser humano por se ter achado, na sociedade patriarcal em que nasceu e/ou se formou o latim, que ele era o legítimo e bastante representante do ser humano – a mulher já estava, então, na sombra do doméstico, da família: reduzida a 'companheira', a procriadora sem direitos.”1

Insisto na importância de eliminar o uso do masculino genérico ou do falso neutro. Também porque a linguagem é um dos elementos chave da transmissão da cultura; porque há muito a representação linguística da identidade é um direito; e ainda porque promover a igualdade entre mulheres e homens é uma das tarefas fundamentais do Estado e um dever de cidadania

Graça Abranches escreveu, em 2011, que é um erro pensar que as práticas discursivas sexistas existem desde o princípio dos tempos e que são uma parte constitutiva da estrutura básica das línguas. Segundo a autora “(...) as justificações dadas pelos gramáticos para a introdução e obrigatoriedade do uso do masculino genérico estavam invariavelmente ligadas a crenças sobre o que deviam ser as relações apropriadas entre homens e mulheres na sociedade (os primeiros deveriam sempre ter “precedência” sobre as segundas), e não a quaisquer convicções de natureza científica sobre a gramática, a etimologia ou qualquer outro fenómeno primariamente linguístico. São exemplos paradigmáticos de “discurso ideológico” em estado puro: a linguagem deve expressar a lei natural da superioridade masculina, e por isso se determina o uso obrigatório do masculino genérico.”2

Paula Silva e Luísa Saavedra, no guião de educação, género e cidadania, referem a importância de reconhecer o carácter discriminatório da linguagem e escrevem que “É importante ter consciência de que a alteração do uso da linguagem, embora não mude, por si só, a hegemonia masculina, pode, no entanto, permitir identificar posições alternativas. (…) Neste sentido, defender a utilização de uma terminologia não sexista pode mudar a percepção dos significados atribuídos às mulheres e aos homens. A linguagem, ou o discurso, dá-nos a possibilidade de provocar mudanças, (…) Este poder, exarado na linguagem, que transporta representações sociais dominantes no que se refere às questões de género, expande-se aos materiais pedagógicos e didácticos, como sejam os manuais escolares.”3 E também na produção legislativa e na comunicação social e institucional.

Assim, e retomando a reflexão sobre o sexo da cidadania, insisto na importância de eliminar o uso do masculino genérico ou do falso neutro. Também porque a linguagem é um dos elementos chave da transmissão da cultura, através da qual se orientam e dinamizam os papéis sociais; porque há muito a representação linguística da identidade é um direito; e ainda porque promover a igualdade entre mulheres e homens é uma das tarefas fundamentais do Estado e um dever de cidadania.

Defender a utilização de uma linguagem não sexista e o direito à representação linguística da identidade das mulheres é um pequeno passo mas um passo essencial para a assegurar a igualdade efetiva entre mulheres e homens

Em abril de 2015, são pelo menos 5.515.578 as cidadãs que não veem reconhecidos, plenamente, os seus direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação, nem sequer a uma vida livre de violência.

Defender a utilização de uma linguagem não sexista e o direito à representação linguística da identidade das mulheres é um pequeno passo mas um passo essencial para a assegurar a igualdade efetiva entre mulheres e homens.

Uma sociedade que se polarizou em torno de um acordo ortográfico entre dois países bem podia deixar de se escudar na gramática e debater o uso sexista da linguagem. E não, não é apenas uma questão gramatical, mas sim um debate ideológico e uma questão de direito, dos direitos das mulheres.


1 BARRENO, Maria Isabel (1985). O Falso Neutro: Um estudo sobre a discriminação sexual no ensino. Lisboa, Instituto de Estudos para o Desenvolvimento. pp.84

2 ABRANCHES, Graça (2011). Como se fabricam as desigualdades na linguagem escrita. Cadernos Sacausef. Lisboa, n. 8. p.33

3 SILVA, P. & SAAVEDRA, L. (2009). Género e currículo. Em Teresa Pinto (coord.), Guião de educação, género e cidadania. 3º ciclo do ensino básico. Lisboa, Comissão para a Cidadania e Igualdade do Género. p.68

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Sobre o/a autor(a)

Licenciada em Relações Internacionais. Ativista social. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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