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Bloco desafia Governo a deixar cair acordo de cedência de dados aos EUA

O Governo não assinou um acordo bilateral com os EUA. Assinou, de cruz, todas as propostas e pretensões da administração norte-americana, não hesitando mesmo em desrespeitar as leis e a Constituição da República.

Inoportuno, excessivo, desproporcional, demasiado genérico, não garante a adequada protecção e qualidade dos dados e torna difícil o controlo de pesquisas sem consentimento legal.

É assim que a Comissão Nacional de Protecção de Dados se refere ao acordo que permite a cedência de dados biográficos, biométricos e de ADN de cidadãos nacionais aos EUA. Dificilmente se encontra um relatório mais arrasador e taxativo do que este.

Sejamos claros. O Governo não assinou um acordo bilateral com os EUA. O Governo assinou, de cruz, todas as propostas e pretensões da administração norte-americana, não hesitando mesmo em desrespeitar as leis e a Constituição da República.

Não existe uma única norma que garanta que os dados transmitidos não podem ser utilizados em processos que resultem na aplicação da pena de morte ou prisão perpétua, numa violação grosseira das garantias concedidas pela Constituição.

Também a lei de perfis de ADN é posta em causa quando, ao contrário do que está em vigor em Portugal, este acordo permite a recolha de ADN para crimes com pena até um ano de prisão. Doravante, e se o acordo engendrado pelo Governo for aprovado, qualquer cidadão nacional que tenha sido condenado por uma “ofensa à integridade física, simples”, “falsificação do estado civil”, ou “difamação em meio de comunicação social”, pode vir a ter ficha aberta no FBI.

Tudo perigosos terroristas, claro, ou não fosse o combate à criminalidade grave transnacional o propósito invocado pelo ministro Rui Pereira para defender o indefensável.

Se esta desconformidade e desproporcionalidade parece gritante, não se admirem, que é a norma e não a excepção em todo o texto.

O texto permite, mesmo, a cedência de documentação e informação sobre cidadãos que nunca foram condenados, através da mais que dúbia formulação que prevê a cedência de dados sensíveis a países terceiros de cidadãos que “irão cometer ou cometeram actos terroristas”.

Uma redacção jurídica destas dá para tudo, menos para o Governo manter a dignidade mínima que se exigia a quem devia defender os interesses nacionais que supostamente, e realço o supostamente, representa.

De resto, o secretismo com que o Governo tem escondido o conteúdo deste acordo é revelador do seu incómodo com o mesmo. Ao contrário do que estipula a legislação em vigor, nunca enviou o texto para consulta prévia à Comissão Nacional de Protecção de Dados.

Pior. Um ano e meio depois da assinatura do documento, a Assembleia da República continua oficialmente a desconhecer o texto assinado pelo Governo.

Digo que desconhece oficialmente, porque o mesmo está disponível, em português, num site da administração norte-americana, dando mesmo a entender que já está em vigor.

Este episódio inqualificável, onde um deputado, para conhecer um texto que terá que votar, se tem que dirigir à página electrónica das autoridades de um país terceiro, porque o ministro Rui Pereira parece ter desenvolvido uma estranha aversão a enviar as cartas ou emails que lhe competem, é o retrato mais fiel da forma lamentável como este processo foi conduzido.

Sobre a forma como o Governo lida com a transparência dos seus actos, respeito pela legislação nacional e pelo papel da Assembleia da Republica, que é a única com poder para ratificar este acordo, estamos conversados.

A todas, e têm sido muitas, as críticas que têm surgido sobre a forma como o governo conduziu este processo e permite um acordo que não defende os interesses dos cidadãos nacionais, o ministro Rui Pereira tem defendido o acordo porque, diz, “podem estar centenas de vida em risco”.

Não vale a pena agitar fantasmas onde eles não existem. Ninguém coloca em causa a necessidade de troca de informação entre as diversas autoridades criminais, nem tão pouco a necessária cooperação entre Estados com vista a evitar o terrorismo e criminalidade transnacional.

O que está em causa é bem diferente. É saber se, em nome de um suposto combate ao terrorismo, se permite a violação dos direitos mais elementares dos cidadãos e se contorna a legislação e Constituição da República para o fazer.

"Quem cede a sua liberdade em troca de um pouco de segurança não merece nem a liberdade nem a segurança". A frase, de um dos fundadores da nação norte-americana, e redactores da primeira constituição moderna, parece ainda não ter sido entendida por Rui Pereira e os seus colegas no Governo.

Agora, que toda a informação está em cima da mesa, o Bloco de Esquerda desafia o Governo a deixar cair este texto, que entrega os dados de todo e qualquer cidadão nacional às autoridades dos EUA. Vale a pena recordar que estamos a falar de um dos poucos países que não assinou a convenção internacional que regula o tratamento de dados pessoais e que não garante, através do Privacy Act, a protecção da informação pessoal de cidadãos estrangeiros.

Mas a Assembleia da República também tem um papel neste acordo e deve estar à altura das suas responsabilidades. Caso o Governo continue, contra tudo e contra todos, irredutível na sua vontade de estabelecer este acordo, lançamos o repto aos restantes grupos parlamentares para que chumbem a ratificação deste documento.

Declaração política feita na Assembleia da República a 9 de Fevereiro de 2011

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Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda. Vereadora da Câmara de Torres Novas. Animadora social.
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