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De como puxar o PS para qualquer coisa de cívico

A convenção realizada no passado fim de semana foi um êxito para o Livre-Tempo de Avançar. O projeto e o programa merecem ser discutidos porque são um contributo importante para a clareza que é indispensável no futuro imediato.

A convenção realizada no passado fim de semana foi um êxito para o Livre-Tempo de Avançar. O partido deixa de ser uma empresa unipessoal, passando a envolver várias pessoas com peso público, mas reforça o controlo mediático pelo seu líder, apresentando também um projeto estratégico e um programa para o país. Ambos, o projeto e o programa, merecem ser discutidos porque são um contributo importante para a clareza que é indispensável no futuro imediato.

O projeto estratégico: “puxar” o PS

Quando o Livre ou o Tempo de Avançar se apresentaram, marcaram orgulhosamente uma diferença que justificava a cornucópia de cisões que deu origem a um e a outro: queriam criar uma “esquerda do meio”, destinada a participar no governo do PS. Da fragmentação nascerá nada menos do que um governo, anunciaram.

Havia um risco nesta marca, que era ser entendida pela opinião pública como a criação dos Verdes do PS, noção que o sucessivamente exibido entusiasmo de António Costa só ajudou a consolidar. “Estão numa relação”, escrevia um jornal, registando que Tavares recusava que houvesse “linhas vermelhas” de distinção entre o seu partido e o PS. “Não interessa traçar linhas vermelhas, importa abrir caminhos verdes”, reforçava uma dirigente.

Esta “relação” criou um acantonamento, porque os jornalistas passaram a só ter interesse em inquirir como avançam as negociações, quem vai ser secretário de Estado, que compromissos foram obtidos – o que de todo inviabiliza a aspiração eleitoral. Para responder a esse risco, o Livre procurou na sua convenção afirmar uma desconfiança aguerrida em relação ao PS, chegando mesmo a criticar a indefinição de Costa, de modo a gerar um espaço político próprio.

Fica no entanto encurralado entre duas opções que considera inconvenientes: se for muito crítico em relação ao PS ou se definir objetivos que o PS não possa aceitar, não só nem fará parte do governo como demonstrará que o Bloco ou o PCP têm razão; se, em contrapartida, definir uma plataforma muito colada à do PS, os eleitores não descortinarão nenhuma razão para o voto no Livre. Esta convenção era importante precisamente para perceber como navegaria entre estes dois escolhos, definindo a apresentação do partido e o seu programa.

A aliança para um governo com o PS, afinal o desígnio da “esquerda do meio”, é um caminho perigoso porque se arrisca a ser continuista em relação à austeridade e seguidista em relação ao poder na União

Para mais, os seus dirigentes – como toda a gente da esquerda à direita – têm a perceção da desagregação de alguns dos sistemas políticos europeus, de Itália a Espanha e Grécia, passando por França, e sabem que a austeridade, a continuar, é uma bomba de pavio curto. Nesse mapa, a aliança para um governo com o PS, afinal o desígnio da “esquerda do meio”, é um caminho perigoso porque se arrisca a ser continuista em relação à austeridade e seguidista em relação ao poder na União.

Como é evidente nos casos de sucesso eleitoral (ou pré-eleitoral) que marcam a Europa, o Syriza e o Podemos romperam com esse continuismo e têm em comum que ambos recusaram ou recusam terminantemente qualquer compromisso com os partidos situacionistas, o PASOK e o PSOE, mesmo em termos que só podem surpreender muitos dos eleitores de esquerda em Portugal. Daniel Oliveira, que pudicamente declara que “ainda não somos o Syriza”, descobre entretanto que “em Espanha, o Podemos apresenta um programa económico social-democrata, sendo muito cuidadoso na forma como fala do euro e da Europa. O radicalismo democrático associa-se a uma crescente moderação programática”, mas sabe certamente que o Podemos renega qualquer entendimento com o PSOE.

Num artigo recente de divulgação do seu partido, Oliveira esquece-se deste detalhe, apesar de o Podemos o considerar essencial e de o Syriza o levar ao ponto de excluir do seu governo qualquer das duas forças do centro, as do partido socialista europeu.

Era aliás essa suspeita que levava Rui Tavares, num passado recente, a criticar o hoje incensado Syriza e a apoiar uma sua cisão, a Esquerda Democrática. Este partido participava no governo da troika com o PASOK e a direita (e perdeu todos os deputados nesta última eleição) e recebia para tal a bênção do líder do Livre. A “esquerda do meio” esteve mesmo no governo na Grécia (e não gostou, aliás desapareceu nas eleições recentes).

“Puxar o PS”, a estratégia da “esquerda do meio”, já foi bastas vezes tentada em Portugal e teve, aqui como noutros países, o mesmo resultado. Apesar disso, os dirigentes do Livre justificam-na com a urgência republicana ou constitucional, como a única política que a curto prazo pode salvar Portugal. Ora, descontado o histórico, esse argumento corresponde à preocupação de muitos dos que sentem a desgraça da austeridade. É popular porque é um discurso fácil – mesmo que seja de difícil execução. Diferente será então saber se tem o caminho aberto.

Segurança, ou a resignação da tristeza

Foi por isso que me surpreendeu a profunda tristeza que se entrevê no enunciado estratégico mais completo deste projeto: o texto de Daniel Oliveira no Expresso, já citado atrás. O autor, sempre expressivo nas suas posições, afirma-se aqui com um hino à resignação.

O argumento é este: se és socialista, ou seja, se procuras uma alternativa socialista ao capitalismo (se as palavras querem dizer alguma coisa), esquece o que disseste e o que propuseste. O capitalismo é o horizonte inultrapassável destes anos e, portanto, “na decadente Europa deste início de século, o papel da esquerda não será o de propor uma sociedade nova. Será o de defender muitos adquiridos civilizacionais de prosperidade e bem estar aos trabalhadores, e de reinventar a democracia e o Estado social num mundo globalizado”. Ficamos por um capitalismo humanizável, que se lembre do Estado Providência com o qual conviveu quando os movimentos de trabalhadores impuseram civilização. Sociedade nova, nada. Era tão bom que o tempo voltasse para trás.

Mais: mudança será, mas poucochinho. Será uma “mudança com mínimos de segurança”, porque “é o que pode ser”. Os leitores notarão que este argumento da “segurança” é um pau de dois bicos: a maioria do eleitorado pensou que a “segurança” em 2011 era Passos Coelho e a sua fraternidade com a troika, e o que obteve foi a insegurança da punção dos salários e pensões; como antes tinha pensado que a “segurança” era Sócrates; e como tem pensado nestes quase quarenta anos que a “segurança” é a alternância ou, agora, obedecer a Merkel. “É o que pode ser”.

A pergunta dos tempos de hoje é radical: será que se pode viver ou trabalhar com “segurança” sob o Tratado Orçamental ou os cortes perpétuos nos “adquiridos civilizacionais”? Como todos sabemos que essa é a questão que exige solução

No entanto, a pergunta dos tempos de hoje é mais radical: será que se pode viver ou trabalhar com “segurança” sob o Tratado Orçamental ou os cortes perpétuos nos “adquiridos civilizacionais”? Como todos sabemos que essa é a questão que exige solução, acho a resposta de Oliveira ainda mais contrastada com a sua exuberância tradicional. É que ele nos explica que se adquire “segurança” com uma “crescente moderação programática”: “Em Portugal, como noutros países, há movimentos de esquerda que acreditaram que este é o momento para radicalizar o discurso económico. Pelo contrário, este é o tempo de começar a ocupar o espaço deixado vazio pelos partidos socialistas e social-democratas”. Eu, que não vejo nenhum problema de discurso – porque os há para todos os gostos – mas que entendo um gravíssimo problema de alternativas, acho por isso preferível preocuparmo-nos mais com a qualidade das soluções do que com os artifícios da sedução pelo discurso. E desconfio de que nenhum “discurso” ocupa duradouramente qualquer “espaço deixado vazio” porque, no fim do dia, alguém vai sempre exigir medir as políticas dos governos pelo que fazem mesmo. É sempre da prática que vêm as ideias justas, como dizia um filósofo oriental.

Mas há apesar de tudo uma história nesta reclamação de uma “crescente moderação programática” para que seja “o que pode ser”, tudo em “segurança”, e talvez isso explique o incómodo e a tristeza. É que, quando nos anos muito recentes a pergunta era que solução é que pode salvar Portugal, a resposta de Oliveira não era a “esquerda do meio” a “ocupar o espaço deixado vazio pelos partidos socialistas e social-democratas”. Era outra: “eu não sou político. E posso defender que, enquanto a austeridade no quadro do euro não cria um único factor que nos permita sair da crise, uma saída do euro poderia fazê-lo” (bold original), escrevia em maio de 2012.

Mais explicado: “E qualquer debate sério sobre as alternativas à austeridade acaba numa pergunta incómoda: se a situação se continuar a agravar na Europa - em Espanha e Itália, para começar - deve Portugal sair do euro? Claro que a melhor solução passa por uma alteração de rumo na Europa. Mas se tudo ficar na mesma? Como poderemos forçar uma renegociação da dívida, no quadro atual, se a saída do euro for um tabu?” (bold original). Acrescento que, nesse mesmo período, eu distanciei-me e critiquei este argumento, porque preferia concentrar toda a força na proposta da reestruturação da dívida e porque achava que os defensores da saída do euro não tinham apresentado uma posição consistente para responder a cada uma das dificuldades da decisão – mas Daniel Oliveira tinha razão, não era nunca possível atacar a dívida e a austeridade sem preparar o recurso da saída do euro.

Continuemos com o tabu que não pode ser. Um ano depois, novo artigo no mesmo sentido: “ou a União Europeia reestrutura de forma profunda o seu funcionamento - a moeda, as funções do BCE e os tratados assinados -, o que passa por uma mudança política nos países mais ricos, ou países como Portugal e Grécia (e até a Espanha) terão de abandonar o euro (já que não é provável que a Alemanha e outros o façam)” (março de 2013, bold original). Ou mudam os tratados e todo o “funcionamento”, ou não resta nada senão a saída do euro.

Ainda mais explicado: “A opção europeísta - com a qual ideologicamente simpatizo - tem o problema de depender de outros (sabendo-se que as principais mudanças dependem de uma unanimidade na Europa). (...) A opção soberanista tem dois problemas: não pode ignorar os riscos políticos de uma saída do euro e não pode escamotear os efeitos imediatos de tal opção, que passam pela certeza de um primeiro impacto bastante acentuado na economia e nas condições de vida das pessoas. Seja qual for a opção, ela é composta de enormes perigos. Não vejo é qual seja a terceira via. O que me parece pouco sério é que se continue a contestar o caminho da austeridade fugindo a este debate” (mais uma vez, bold original).

Com esta convicção, Oliveira aprovou um texto (político, de um movimento político, “eu que não sou político”), do Fórum Manifesto, o grupo político de que faz parte junto com Rui Tavares, e que apontava para a preparação para a saída do euro nas negociações sobre a dívida, tudo isto em dezembro de 2013, há portanto nada mais do que um ano:

Esta opção significa assumir, de forma plena e de princípio, todas as consequências que se associam a um processo negocial com a Troika, incluindo a saída do euro. Mais: apenas assumindo a disposição para ir até às últimas consequências, em resultado de uma convicção consciente e firme sobre a impossibilidade de permanecer num sistema monetário que apenas nos destina a um empobrecimento sem fim, qualquer negociação poderá comportar margens de sucesso.

É esse o problema que se coloca em relação ao euro. O euro é, no actual quadro de correlação de forças políticas, irreformável: correspondeu e continuará necessariamente a corresponder à construção de um fosso intransponível entre centro e periferia europeia, que obrigará a um processo de subdesenvolvimento das economias mais fracas da União. E é justo afirmar que, mesmo que muito mudasse em Portugal e na Europa – e era preciso que muito mudasse em Portugal e na Europa – não há, dentro do euro, futuro para um crescimento económico do país que seja socialmente sustentável.”

Se o euro “é irreformável”, se “continuará necessariamente a corresponder à construção de um fosso intransponível entre centro e periferia europeia, que obrigará a um processo de subdesenvolvimento das economias mais fracas da União” – leia-se bem, o euro cria um fosso intransponível e obriga a um processo de subdesenvolvimento – então é mesmo preciso “ir até às últimas consequências”.

Por isso, o tabu insuportável, tal que era “pouco sério fugir ao debate”, era ignorar que “enquanto a austeridade no quadro do euro não cria um único factor que nos permita sair da crise, uma saída do euro poderia fazê-lo” (bold original). E aqui temos uma política, bastante radical por sinal. E até um “discurso” sobre essa política. A minha conclusão é esta: se um político tão moderado como Daniel Oliveira chegou à conclusão de que o caminho europeu, que preferia, se tornou inviável e que a saída do euro é a solução que resta, mesmo que difícil, isso não demonstra que o “discurso económico” ficou obrigado a sair da armadilha das regras do euro e da União Europeia e dos seus tratados? Que o “discurso” se teve que “radicalizar” porque a realidade assim o impôs?

Para um acordo com o PS, todo esse “discurso” [sobre a saída do euro] fica antes da porta da entrada. Ora, por isso mesmo, o “discurso” sobre o tabu passou a ser tabu no Livre, como se verificou na convenção do fim de semana

Nada disso, escreve agora o mesmo autor. Passaram poucos meses sobre a resolução formal e cerimonial que pugnava pela saída do euro “irreformável”, mas agora chegou o tempo da “segurança”, porque “é o que pode ser”, e é preciso moderar o “discurso pragmático”, para “ocupar o espaço da social-democracia”.

De facto, um governo Costa-Tavares (ou mais alguém) pode ser defendido de muitas formas, menos em nome da resposta ao tal tabu. Antes de mais porque António Costa, limpidamente e sem permitir equívocos, tem tornado claro que prossegue todos os compromissos, a começar pelos que lhe são impostos pelo Tratado Orçamental, e que nem quer ouvir falar em reestruturação da dívida porque “lhe batem com a porta” em Bruxelas. Para um acordo com o PS, todo esse “discurso” fica antes da porta da entrada. Ora, por isso mesmo, o “discurso” sobre o tabu passou a ser tabu no Livre, como se verificou na convenção do fim de semana.

Afinal, quem puxou quem?

Um programa à medida

Com estas inquietações, a leitura das “linhas programáticas” aprovadas na convenção do fim de semana revela a escolha do Livre sobre os seus dois riscos existenciais e como corrigiu o passado dos “discursos radicais” que nele se juntaram.

nas questões que decidem o “discurso económico”, ou seja, como vamos viver, as "linhas programáticas" do Livre - Tempo de Avançar parecem ser desenhadas para se acomodarem ao que o PS tem dito ou pode vir a dizer

Essas “linhas” incluem muitos temas bem desenvolvidos, com ideias fortes e propostas consistentes (os direitos dos imigrantes, a igualdade de género, a saúde pública, a escola, o apoio à investigação científica) mas, nas questões que decidem o “discurso económico”, ou seja, como vamos viver, parecem ser desenhadas para se acomodarem ao que o PS tem dito ou pode vir a dizer. Creio que isso se torna evidente em dois planos principais: na questão do Tratado Orçamental e do euro e na proposta do sistema eleitoral.

duas resoluções políticas da convenção, um “documento de orientação política” e um de “linhas programáticas”. O primeiro define o partido como o “que pugne por outro rumo europeu, de nações e cidadãos mais iguais, incompatível com o Tratado Orçamental”. É um bom começo. Mas nada se diz sobre como se resolve o problema da incompatibilidade: afinal, o Estado português é signatário do Tratado (foi mesmo o primeiro signatário) e está obrigado a cumpri-lo. Como é que vai aparecer este “novo rumo europeu”?

Acrescentando alguma névoa, o texto diz depois que “Não é possível pôr fim à austeridade, cumprir os requisitos do Tratado Orçamental, servir a dívida até o último cêntimo e recuperar a economia e a sociedade” – o que, numa versão anterior por um dos promotores mais destacados desta proposta, queria dizer que se poderia aceitar o Tratado se a dívida fosse aliviada. Nada mais é esclarecido e fica sempre a dúvida sobre o que se deve fazer para não “cumprir os requisitos do Tratado”, forma diplomática em que cabe a “leitura inteligente” de Costa, cabe a rejeição do Tratado, cabe a resignação à norma, cabe tudo e o seu contrário.

Abra-se então o texto das “linhas programáticas”. Lá é que devia estar a solução para a dívida e a questão do Tratado europeu, dado que não se trata já de uma declaração política genérica, mas de respostas concretas e, aliás, bastante detalhadas. Desilusão: a única referência ao Tratado é a reivindicação de “desendividar, não nos termos previstos no Tratado Orçamental, mas com uma reestruturação da dívida”. Se não é nos “termos previstos no Tratado”, e claro que não pode ser, o que se faz ao Tratado e em que “termos” é que se procede? Não pergunte, não há resposta.

Há em todo o caso uma reivindicação de reestruturação da dívida: “Em todo o caso, na ausência de uma solução multilateral para o problema das dívidas públicas na UE, o Estado português deve desencadear, preferencialmente em articulação com outros países, o processo de renegociação da dívida. Assumindo por princípio a procura negociada de soluções, o governo não pode aceitar, nem mesmo nestas circunstâncias, a chantagem de bloqueio do acesso dos bancos ao financiamento do BCE ou de exclusão do euro”. Certo. Mas não se esclarecem os leitores ansiosos sobre qual reestruturação ou com que objetivos, pois esse é um mistério (comum a outros partidos de esquerda, que enunciam o objetivo sem se preocuparem com propostas concretas). O Livre-Tempo de Avançar, que sabe ser meticulosamente preciso por exemplo na proposta de política pública de investigação científica, sabe também ser meticulosamente nebuloso em tudo o que diz respeito à reestruturação da dívida.

Chega-se à conclusão óbvia de que a “Agenda para a Década”, de António Costa, é mais crítico do euro do que o Livre no seu documento programático. Como o tinha feito na sua Moção, Costa ataca as “deficiências da União Económica e Monetária”, portanto do euro (que disso tire consequências são contas de outro rosário), mas o Livre preferiu o silêncio

E, sobretudo, não há resposta para a pergunta antiga de Oliveira: e se a Europa não sai da austeridade, como se pode evitar a saída do euro, porque “o que me parece pouco sério é que se continue a contestar o caminho da austeridade fugindo a este debate”.

Aliás, os leitores mais exigentes notarão que não existe nenhuma crítica ao euro, o tal “euro irreformável”. A única alusão hieroglífica é esta: “A prevalência da ortodoxia monetária tem de ser revertida para uma economia política da reconstrução institucional, material e relacional da Europa, com um novo papel para a política monetária, a política orçamental comunitária e a política fiscal, que valorize o investimento, a circulação de recursos entre regiões europeias, em favor das mais desfavorecidas e da superação dos grandes bloqueios nacionais, designadamente os que decorrem da dívida pública e dos desníveis de qualificação e bem-estar”. A palavra euro, salvo erro, não existe no texto, a não ser para reclamar a “não exclusão do euro”.

Chega-se à conclusão óbvia de que a “Agenda para a Década”, de António Costa, é mais crítico do euro do que o Livre no seu documento programático. Como o tinha feito na sua Moção, Costa ataca as “deficiências da União Económica e Monetária”, portanto do euro (que disso tire consequências são contas de outro rosário), mas o Livre preferiu o silêncio sobre a vexatia questio. Ou seja, o vituperado tabu.

com a proposta de um círculo nacional para eleger uma parte dos deputados, tudo é possível quanto à forma de eleger os restantes, incluindo os famigerados uninominais – essa é exatamente a proposta de António Costa

Finalmente, quanto ao sistema eleitoral, as linhas programáticas são uma esfinge: “Defendemos um sistema eleitoral que inclua um círculo nacional, para que nenhum voto seja desperdiçado”. E nem uma palavra mais. Ou seja, isto é compatível com um regime de círculos uninominais ou com qualquer outro sistema. Ainda há poucos meses, Rui Tavares tinha-se oposto com fortes argumentos aos círculos uninominais e fica estranho que prefira nada dizer agora sobre o assunto. Nada, nem uma palavra sobre o tema. No entanto, alguns dos jornais que reportaram a convenção escreveram que a proposta era uma estranha “eleição preferencial uninominal”, que não sei o que seja. Em todo o caso, com esta proposta de um círculo nacional para eleger uma parte dos deputados, tudo é possível quanto à forma de eleger os restantes, incluindo os famigerados uninominais – essa é exatamente a proposta de António Costa.

Para estar no governo de António Costa, é preciso aceitar a lei de António Costa e os que moderam o “discurso pragmático” sabem-no melhor do que ninguém.

Um programa que não faz contas

Duas notas finais sobre o programa. É compreensível que um partido que iniciou há um ano a sua vida tenha um longo caminho a percorrer quanto a elaboração programática. Outros com muito mais anos, incluindo décadas, têm do mesmo modo o seu percurso a fazer. Mas o Livre candidata-se para pôr a “esquerda do meio” no governo dentro de oito meses. Dentro de oito meses. Por isso, a leitura das suas propostas será sempre feita à luz do compromisso do secretário de Estado que as vai cumprir ou, pelo menos, que as vai discutir com o seu ministro.

E há duas que se destacam. Uma é esta: “Defendemos também a existência de um rendimento básico, assente numa filosofia de assunção da cidadania e não de assistencialismo. Tal como a educação, a saúde, a proteção social, também um rendimento básico deve ser incondicionalmente atribuído a todos os cidadãos. A introdução deste instrumento deverá ser precedida de uma avaliação dos seus pressupostos, da sua articulação com outras medidas de combate à pobreza e da sua sustentabilidade”. Tudo muito subtil: a “introdução” do rendimento deve “ser precedida por uma avaliação dos seus pressupostos”. É confuso, não é? O partido propõe uma medida porque certamente “avaliou os pressupostos” e por isso o Livre define muito bem a sua proposta: rendimento básico, incondicional, pago a todos os cidadãos sem exceção (mas não diz quanto). Mas vai querer, uma vez no governo, avaliar os “pressupostos” do que propôs apesar de ter avaliado em tempo útil esses mesmos “pressupostos”, porque claro que não se fazem propostas sem cumprir essa condição.

Ora, avaliemos os “pressupostos” então, sem esperar pelo dia mágico da chegada ao governo. Se o rendimento básico pago incondicionalmente pelo Estado a cada pessoa for de 1000 euros por mês, ou 14 mil por ano, então a despesa orçamental é de 140 mil milhões de euros. A “esquerda do meio” vai ter de multiplicar a cobrança de impostos por quatro, e ainda assim não sobra nada para pagar salários a polícias, professores ou médicas (a resposta frequente de defensores da ideia, que estudaram os seus “pressupostos”, é que isso não é problema, porque o mercado se ocupa da saúde e da educação), ou para pagar pensões na segurança social, ou subsídios de desemprego. Também haverá gente a achar estranho que se pague os mil euros por mês a um Ricardo Salgado que recebe prendas pessoais de 14 milhões, do mesmo modo que se paga ao idoso que tem 250 euros de pensão, mas a proposta é assim mesmo, as diferenças sociais são abolidas por uma proclamada universalidade da multidão em que todos são tomados por iguais, por mais desiguais que sejam.

Não exageremos, mil euros pode ser “discurso económico radical”, e experimentemos em vez disso colocar o “rendimento básico incondicional” em 500 euros por mês, abaixo do salário mínimo. Ainda assim, a despesa é de 70 mil milhões, o dobro do que se cobra em impostos hoje. Como se paga isto? Duplicando os impostos? Cobrando outros a outra gente e quem é essa gente? Pedindo empréstimos? Que despesas do Estado se deixam de pagar? De facto, vale a pena pensar nos “pressupostos”. Para um partido de governo, a coisa parece crua e é fácil adivinhar que este “discurso” vá ser rapidamente “moderado”, pragmaticamente.

O segundo tópico programático que chama a atenção é este: “O objetivo da redução da dependência das importações pode envolver também instrumentos fiscais (nomeadamente IVA), modalidades de licenciamento de estabelecimentos e políticas de contratação pública de bens e serviços, todas elas discriminando entre bens e serviços consoante a origem do valor acrescentado incorporado”. Não sei se “a origem do valor acrescentado incorporado” se refere aos setores económicos onde foi produzido ou se se refere a origem nacional versus estrangeira. Em qualquer caso, um curso rápido sobre legislação comunitária e tratados europeus, por exemplo sobre as regras do IVA, demonstraria que esta proposta carece de aprovação da Comissão e é incompatível com as regras europeias atuais. Voltamos ao mesmo: para se fazer esta promoção da substituição de importações por discriminação fiscal, é preciso não cumprir as regras europeias.

Este exemplo demonstra como, para se mover um milímetro a política contra a austeridade, chocamos logo com os tratados da União Europeia. Pois é, o “euro é irreformável”. Mas, para ir para o governo com o PS, se tudo isto não é um “discurso”, a “esquerda do meio” precisa de aceitar o euro, o Tratado Orçamental, a não reestruturação da dívida, o que quer dizer a austeridade.

Manual para puxar o PS

Foi longo o caminho até aqui e foi num ápice. A lei eleitoral pode ser a de António Costa, com os seus famigerados círculos uninominais. A exigência de anulação do Tratado Orçamental passou ser substituída pela esperança de “desendividar sem ser nos termos do Tratado Orçamental”, mas não perguntem nem como nem quanto.

O “euro irreformável”, o “tabu”, o tal sobre o qual era “pouco sério fugir ao debate”, passou a ser a natureza das coisas. Tudo porque “é o que pode ser”. Esqueça tudo o que disse e tudo o que foi a sua esperança. Agora chegou o tempo de “moderar o discurso económico” e de “ocupar o espaço da social-democracia”.

Infelizmente, pode-se ser moderado em “segurança”, mas os tempos radicalizaram a vida da União Europeia. Quem hoje manda, lá onde está o poder, não permite devaneios, só há austeridade.

Quem puxa quem e para onde?

Artigo publicado em blogues.publico.pt a 6 de fevereiro de 2015

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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