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A terceira guerra do Iraque, por Ignacio Ramonet

Barack Obama, num exemplo típico de denegação freudiana, declarou: “Como comandante em chefe, não permitirei que os Estados Unidos se vejam envolvidos noutra guerra no Iraque”. Ou seja, começou a terceira guerra do Iraque. Por Ignacio Ramonet.
Barack Obama, num exemplo típico de denegação freudiana, declarou: “Como comandante em chefe, não permitirei que os Estados Unidos se vejam envolvidos noutra guerra no Iraque”

No passado dia 11 de setembro, uma data mais que simbólica – o presidente de Estados Unidos, Barack Obama, dirigiu-se à nação para anunciar a sua nova estratégia militar contra o Estado Islâmico (EI) que, segundo ele, representa uma “ameaça para todo o Médio Oriente”. Obama disse que as forças norte-americanas irão atacar o EI “esteja onde estiver”, inclusive na Síria1. Esta nova estratégia passa pelo lançamento de ataques aéreos “sistemáticos” contra os jihadistas2 e pelo aumento do número de especialistas militares norte-americanos enviados para o Iraque para apoiar as tropas iraquianas em questões de formação militar, informações e equipamento.

Obama acrescentou que o exército norte-americano não participaria em ofensivas terrestres contra o EI, e que Washington não tem intenção de lutar contra os jihadistas “sozinhos”. “A força norte-americana – clarificou – pode marcar uma diferença decisiva, mas não podemos fazer pelos iraquianos o que eles têm que fazer por si próprios, como também não podemos ocupar o posto dos aliados árabes para garantir a segurança da sua região”.

Barack Obama, que foi eleito em 2008 como crítico da invasão do Iraque de 2003 ordenada pelo seu antecessor George W. Bush, assegurou que não estava a enviar de novo tropas para o terreno. E, num exemplo típico de denegação freudiana (die verneinung), declarou: “Como comandante em chefe, não permitirei que os Estados Unidos se vejam envolvidos noutra guerra no Iraque”. Ou seja, começou a terceira guerra do Iraque.

A primeira, mais conhecida como “Guerra do Golfo” (1990-1991), foi liderada pelo presidente dos Estados Unidos George H. Bush à cabeça de uma coligação de trinta e quatro países que se opuseram, sob autorização da ONU, à invasão de Kuwait pelas forças iraquianas de Saddam Hussein. Terminou com a derrota do Iraque e a evacuação do Kuwait.

A segunda (2003-2010) foi desencadeada pelo presidente George W. Bush (filho do anterior) na atmosfera de paranoia que se seguiu aos atentados do 11 de setembro de 2001 e sob o falso pretexto de que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa”. A ONU não autorizou essa guerra. As forças iraquianas foram derrotadas em poucas semanas mas nunca se conseguiu a paz; o Iraque mergulhou num caos de violência do qual ainda não saiu.

Como nas duas anteriores, e depois de quase vinte e cinco anos de confrontos, esta nova guerra não atingirá o seu objetivo. Primeiro porque nunca se ganhou uma guerra unicamente com bombardeamentos aéreos, e segundo porque, simplesmente, os objetivos desta guerra não estão nada claros.

Como nas duas anteriores, e depois de quase vinte e cinco anos de confrontos, esta nova guerra não atingirá o seu objetivo. Primeiro porque nunca se ganhou uma guerra unicamente com bombardeamentos aéreos, e segundo porque, simplesmente, os objetivos desta guerra não estão nada claros

De que se trata? De derrotar o Estado Islâmico? Mas se ainda não se conseguiu vencer nem sequer a Al Qaeda, da qual o EI é uma caricatura ainda mais monstruosa e mais radical... Tratar-se-á por acaso de preservar a unidade do Iraque? Mas então, por que começar a ofensiva atual armando em massa os peshmergas curdos que anunciam publicamente a sua intenção de se separar e de proclamar a independência do Curdistão iraquiano? Ou talvez se trate, como se pretendeu em 2003, de estabelecer uma democracia autêntica no Iraque. Mas então, porque se tolerou, até há muito pouco tempo, que Nuri Al Maliki, primeiro-ministro iraquiano de 2008 a 2014, conduzisse uma política escandalosamente discriminatória a favor dos xiitas e contra os sunitas, empurrando estes para os braços do EI?3.

Por outro lado, a grande coligação constituída em torno dos Estados Unidos para atacar o EI, e que supera os quarenta países4, aparece como demasiado heterogénea e até contraditória. Um dos seus pilares, por exemplo, a Arábia Saudita é uma das piores ditaduras do mundo, com milhares de presos políticos nas suas masmorras, com pena de morte para os homossexuais, discriminações aberrantes contra as mulheres, com uma conceção do Islão (o wahhabismo) do mais retrógrada e integrista que existe, e sobretudo é um país que financiou durante anos o Estado Islâmico antes de descobrir, como o Dr. Frankenstein, que o monstro que criou lhe fugiu das mãos. Ou o Qatar, outra horrível ditadura, que financia a Irmandade Muçulmana em todo o mundo islâmico, incluindo o Hamas, a organização palestiniana que governa Gaza e que os Estados Unidos e a União Europeia incluíram (ainda que esta decisão seja discutível) na lista oficial das “organizações terroristas”. Não há contradição em querer fazer a guerra aos terroristas do EI aliando-se com países que financiam abertamente outro terrorismo islâmico?

É óbvio que a decisão do presidente Obama de começar uma nova guerra no Médio Oriente modifica também a estratégia global dos Estados Unidos em matéria de conflitos e de prioridades geopolíticas. Washington tinha decidido iniciar um amplo movimento para uma nova deslocação para a Ásia, onde se encontra o seu principal adversário para o século XXI, a China, e onde está hoje (e ainda mais amanhã) o centro económico do mundo. Segundo os grandes “tanques de pensamento” norte-americanos, a Europa já não precisa (apesar da situação no leste da Ucrânia) de uma presença militar importante norte-americana. E ainda que as complicações do Médio Oriente continuem a ser inextricáveis, já não põem em perigo a segurança estratégica dos Estados Unidos já que, graças ao petróleo e ao gás de xisto descobertos em território norte-americano, a dependência dos hidrocarbonetos do Médio Oriente deixou de ser significativa.

Os bárbaros não podem ganhar. Esperamos isso, pelo menos, mas não esqueçamos a advertência de Ibn Khaldun (1332-1406), inventor da sociologia e da filosofia da história, quando nos recorda o que é a história: o relato de impérios abatidos pelo furor dos bárbaros...

Por isso, desde a sua chegada ao poder, o presidente Obama prometeu terminar com as guerras no Médio Oriente e retirar as tropas do Iraque e do Afeganistão. Agora vemos que isto foi feito de forma demasiado rápida, superficial, sem consolidar politicamente o terreno abandonado. Lançando-se, entretanto, em operações improvisadas (o ataque contra a Líbia e a tentativa de derrubar Bachar al Assad em 2011) que tiveram consequências nefastas, dispersando arsenais militares numa região já demasiado armada e estimulando a emergência de milícias jihadistas de novo tipo, mais radicais ainda que a Al Qaeda.

Assim o entende o analista paquistanês Ahmed Rashid, autor de Paquistão diante do abismo. “A Al Qaeda está um pouco antiquada”, admite Rashid, “está a ficar para trás; o EI vai mais longe, são mais extremistas”. Mais radicais porque, segundo o escritor, procuram de pistola em punho limpar a sua terra de cidadãos xiitas e apagar a fronteira que separa o Iraque e a Síria para levantar o seu novo califado. “A Al Qaeda”, diz Rashid em referência à rede que Ayman al Zawahiri ainda comanda, “crê nos Estados, quer que permaneçam”. Jihadistas, membros da Al Qaeda ou talibãs partilham ideias, querem o seu califado, o império da lei islâmica, mas cada um à sua maneira. “Os talibãs do Afeganistão, por exemplo”, aponta, “não querem matar todos os xiitas como o EI”5.

Esta mobilização intensa da violência, esta nova barbárie, este radicalismo atrai, estranhamente, jovens jihadistas do mundo inteiro, e em particular, dos países ocidentais. O ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Laurent Fabius, alertou que são cinquenta e um os países de onde procedem os jihadistas para se juntar ao EI. Só de França foram mais de novecentos...

Os bárbaros não podem ganhar. Esperamos isso, pelo menos, mas não esqueçamos a advertência de Ibn Khaldun (1332-1406), inventor da sociologia e da filosofia da história, quando nos recorda o que é a história: o relato de impérios abatidos pelo furor dos bárbaros...6

Artigo de Ignacio Ramonet publicado, por Le Monde Diplomatique em espanhol . Tradução de Carlos Santos para esquerda.net


1 O presidente Obama ordenou, no passado dia 23 de setembro, o bombardeamento das bases do EI na Síria. Para que estes ataques não sejam ilegais, o presidente precisava, segundo eminentes juristas internacionais, o acordo do Congresso, e sobretudo, para respeitar a legalidade internacional, a aprovação do Conselho de Segurança da ONU, que não teria obtido por causa do veto da Rússia e da China. Aparentemente, antes de iniciar os bombardeamentos, Washington informou Damasco, e as autoridades sírias declararam que “não se opunham à ação internacional contra os terroristas”.

2 De facto, desde 7 de agosto passado, os Estados Unidos já estavam a bombardear objetivos do EI no Iraque.

3 A eleição de Haider Al Abadi, também xiita, em substituição do autoritário Al Maliki, no passado dia 14 de setembro, poderá mudar as coisas se o novo primeiro-ministro convencer a comunidade sunita de que cessarão as discriminações contra ela. O objetivo é que os sunitas se incorporem na guerra contra o EI.

4 Na Conferência Internacional sobre a Paz e a Segurança no Iraque do passado dia 15 de setembro em Paris, estiveram representantes, na sua maioria ministros dos Negócios Estrangeiros, dos seguintes países: Alemanha, Arábia Saudita, Bahrein, Bélgica, Canadá, China, Dinamarca, Egito, Emiratos Árabes Unidos, Espanha, Estados Unidos, França, Holanda, Iraque, Itália, Japão, Jordânia, Kuwait, Líbano, Omã, Qatar, Noruega, Reino Unido, República Checa, Rússia e Turquia. Além disso, também prometeram ajudas: Albânia, Austrália, Estónia, Dinamarca, Polónia, Japão, Suíça, Noruega, Finlândia, Hungria, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Nova Zelândia e Coreia do Sul. Ao todo, a coligação liderada pelos Estados Unidos para combater os jihadistas do Estado Islâmico (EI) supera, pois, os 40 países.

5 El País, Madrid, 21 de junho de 2014.

6 Leia-se Gabriel Martinez-Gros, Brève histoire des empires. Comment ils surgissent, comment ils s’effondrent, Seuil, Paris, 2014.

Sobre o/a autor(a)

Jornalista. Diretor da edição espanhola do Le Monde Diplomatique. Foi diretor da edição francesa entre 1990 e 2008.
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