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Sans espoir

São dois irmãos e vivem num carro debaixo de uma ponte em Paris. Primeiro disseram que não. Com o tempo, os sorrisos foram substituindo a desconfiança e o receio iniciais.

São da Roménia, país que abandonaram há oito anos rumo a Itália. Nunca foram ricos mas com os pais empregados nunca faltou teto nem comida. Tudo mudou quando perderam os empregos. Perderam depois a casa, perderam tudo. O pai ficou na Roménia com outro irmão. Em Itália viveram durante cinco anos com a mãe, uma irmã e outro irmão, tentando refazer a vida desfeita no país onde nasceram. Chegaram a ser proprietários de uma pequena pizzaria. O negócio faliu, a família ruiu e depois de um ano a percorrer a Itália em busca de emprego, Gabriel, o mais novo dos irmãos, partiu sem rumo em busca de uma vida melhor. Viajou de comboio até onde o dinheiro que tinha o levou. Parou em Paris.

Chegou em Outubro de 2012 com 24 anos. Conta que os primeiros tempos foram muito difíceis. Não conhecia ninguém, não falava a língua e não tinha dinheiro. Dormiu na rua, no chão, por cima dos respiradouros do metro em busca de calor. Passou muito frio e muita fome. O irmão mais velho, Christian, juntou-se a ele quatro meses depois. Conseguiram comprar um carro por 100€ que agora lhes serve de casa.

Falam mal francês. Perguntam se podem falar em italiano. À volta de uma chávena de café contam a história toda. Respondem o melhor que conseguem. Têm o olhar triste e na face, as rugas, apesar de jovens, desvendam a rudeza da vida que levam. Falam baixo e cada palavra carrega o peso do desespero que os habita. “Nunca vai melhorar” diz o mais novo. “Pode melhorar para as outras pessoas, mas nunca para pessoas como nós, que vivem assim na rua. Para nós acabou”. Gabriel, 26 anos, já não acredita numa vida melhor. Os olhos azuis estão húmidos e baixa a cabeça. Christian, de 32, diz que não podem sonhar. “Para isso é preciso estar pelo menos no nível zero e nós estamos abaixo de zero. Muito abaixo.”

Sobrevivem procurando nos caixotes de lixo tudo o que possa ser vendido no mercado negro. Existe toda uma economia paralela em torno dos resíduos parisienses. Todos os dias, entre o momento em que são colocados na rua e a recolha pelos serviços camarários, centenas de pessoas procuram sustento nos caixotes de lixo. Não há regras. Quem chega primeiro apanha os artigos mais desejáveis. “Chega para comer” dizem-me. Comem uma refeição quente por dia a troco de 2€ no albergue dos exilados políticos não longe do local onde têm o carro. Para a higiene vão aos balneários públicos ou às piscinas. Não sobra nada pelo que não conseguem sequer alugar um quarto. De qualquer forma, para alugarem um quarto é-lhes exigido recibos de rendimento. Mas para os terem é preciso trabalho e para arranjarem trabalho pedem-lhes uma morada. Vivem presos num ciclo vicioso e não sabem como sair.

Já trabalharam pontualmente em pequenas obras por intermédio de amigos. São pagos “ao negro”. Não há contratos de trabalho. Não há direitos. Não conseguem arranjar emprego porque são romenos. “Ninguém dá trabalho a romenos”. E explicam porquê: “as pessoas pensam que todos os romenos são roms, ciganos. Aqueles que roubam e mendigam. Tomam-nos todos por iguais. E ninguém nos dá trabalho. Há muito racismo em França.”

Não têm projetos nem esperam nada. Assente está apenas a ideia de se manterem em França. “Ir para onde? A Roménia para nós morreu. Acabou” explica Gabriel. “A Itália também.” Não conhecem mais nada e sabem que a Europa está a afundar-se. Com a mãe e os irmãos que ficaram em Itália não falam. O pai, na Roménia, não sabe que os filhos vivem num carro há quase dois anos. Confessam que inventam uma vida melhor para lhe contar. Não o querem preocupado. Está velho e doente.

Desde 2011 o número de sem abrigo aumentou 50% em França. Atualmente cerca de 141.500 pessoas vivem na rua das quais 30.000 são crianças e jovens. Os serviços de apoio estão esgotados.

Gabriel e Christian vivem assim. Um dia de cada vez. Não há lugar para sonhos ou projetos. A Roménia faz parte da União Europeia desde 1 de Janeiro de 2007 mas a União Europeia falhou-lhes. Uma Europa onde a livre circulação encontra barreiras a cada esquina, onde impera o racismo e a xenofobia, onde o trabalho passou de direito a luxo, uma Europa onde milhares de pessoas vivem na rua e perderam toda a esperança é a prova de que este projeto faliu. É preciso fazer reset e começar de novo. Com a liberdade, a solidariedade e a igualdade por valores intrínsecos. Daqueles mesmo para cumprir. Uma verdadeira Europa dos Povos onde ninguém viva na rua, onde ninguém tenha fome, onde todos tenham a mesma dignidade e as mesmas oportunidades.

História verídica publicada com o consentimento de Gabriel e Christian.

Sobre o/a autor(a)

Feminista e ativista. Socióloga.
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