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É tempo de derrubar o Cavaquistão

Durante os dez anos em que Cavaco Silva foi Primeiro-Ministro, abriram-se muitos dos buracos que hoje assolam as contas públicas e a economia portuguesa.

Quando Cavaco Silva se tornou Primeiro-Ministro, eu tinha apenas quatro anos. Posso dizer que foi uma figura que influenciou fortemente o meu percurso político, ao ponto de me ter decidido envolver na vida política aderindo ao partido que usava como slogan “Não lhes dou cavaco”. A revolta contra o autoritarismo desta figura levou muitas/os jovens da minha geração a juntar-se à esquerda e a lutar contra o conservadorismo balofo de um governo que reanimou muitos fantasmas do Salazarismo. Vale a pena, portanto, voltar um pouco atrás no tempo.

Durante os dez anos em que Cavaco Silva foi Primeiro-Ministro, abriram-se muitos dos buracos que hoje assolam as contas públicas e a economia portuguesa. Esta foi a era das privatizações, criando o precedente para que empresas públicas lucrativas passassem para as mãos de privados a um preço desvantajoso para o Estado. Foi também a era da destruição da agricultura, pela via da seu sacrifício no altar do livre mercado.

Outra novidade trazida pelos seus ministros Eduardo Catroga e Ferreira do Amaral foi a execução de obras públicas por parcerias público-privadas. A primeira parceria foi realizada para financiar a Ponte Vasco da Gama, tendo a sociedade privada respectiva, a Lusoponte, ficado com o exclusivo da concessão de qualquer ponte construída sobre o Tejo durante cinco décadas. Deste contrato ficou a memória de uma derrapagem nos custos de 400 milhões de euros e dos protestos contra as portagens na Ponte 25 de Abril, violentamente reprimidos pela polícia, que matou um dos manifestantes. Ferreira do Amaral viria a ser contratado pela Lusoponte e Eduardo Catroga surgiu recentemente como o porta-voz do PSD no acordo entre os dois maiores partidos do qual saíram as políticas de austeridade.

A era de Cavaco Silva foi marcada também pelo combate ao Código de Trabalho saído da revolução de 1974 e pela introdução do pagamento de propinas no ensino superior. Estas reformas neo-liberais conduziram o país a fortes protestos e Cavaco teve várias oportunidades para mostrar o seu lado musculado. As imagens de estudantes, trabalhadores e até polícias a serem espancados e violentados pela polícia de intervenção são suficientes para mostrar o carácter do político conhecido por frases como “deixem-me trabalhar” ou “eu nunca tenho dúvidas e raras vezes me engano”.

O economista que se apresenta como paladino do controlo das contas públicas foi ainda pioneiro no esbanjamento de dinheiros públicos em obras inúteis, como a Expo 98 ou a barragem do Alqueva. O dinheiro que escasseava para o transporte ferroviário abundou para o transporte rodoviário e assim foram encerrados 770km de caminhos-de-ferro, para dar lugar a um país alcatroado de Norte a Sul.

Chegamos então a 2010 com uma escolha entre um candidato presidencial defensor activo das políticas de austeridade e do desmantelamento do Estado Social e um candidato que defende os direitos do trabalho, os serviços públicos e a solidariedade social. De um lado, Cavaco Silva, o rosto da crise neo-liberal e do conservadorismo. De outro, Manuel Alegre, um candidato suficientemente comprometido com o progressismo para frequentemente se revoltar contra o seu partido.

Dia 23 de Janeiro, temos uma última oportunidade de varrer de vez com o atraso de vida que ocupa o Palácio de Belém da nossa vida política. As pessoas que enfrentam hoje o custo da austeridade programada não nos perdoariam se caíssemos no sectarismo isolacionista e nos recusássemos a construir uma solução para a crise, escolhendo antes a construção do nosso partido. As pessoas que lucram com a crise muito nos agradeceriam se defendessemos o voto em branco, na medida em que melhoraria a probabilidade de Cavaco Silva ser eleito à primeira volta. Daí que o Bloco de Esquerda tenha apoiado a candidatura de Manuel Alegre. Nem outra coisa seria de esperar de um partido que se constituiu para disputar maiorias sociais pela melhoria das condições de vida de quem enfrenta diariamente a voracidade da chamada “economia de mercado”.

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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