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Discutir a praxe
Em 2005, quando entrei na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, passei a ir à praxe, o que me pareceu na altura uma decisão acertada. Vinha de uma escola secundária nos arredores do Porto, daquelas “de fim de tabela dos rankings”, onde são poucos os que conseguem entrar no ensino superior. Com 18 anos e sem conhecer praticamente ninguém numa faculdade com oito mil estudantes, onde tudo era distante e impessoal, a praxe foi o espaço de socialização possível que fazia parecer tudo um pouco mais acolhedor e me dava ânimo para enfrentar as quase três horas diárias de transportes públicos que era obrigado a fazer para estudar.
Desde cedo ouvi que a “praxe é para quem está!”, que “só quem a vive é que a compreende”, que, apesar de tudo o que ouvimos nos telejornais sobre o terror das praxes, “a praxe do nosso curso é melhor que as outras”. Intrigou-me particularmente uma frase que me ficou na memória desde então: “em praxe não se pensa, executa-se”. Durante algum tempo acreditei que a praxe não tinha de ser sinónimo de submissão e, por isso, juntei-me a alguns colegas da praxe para combater essa ideia. Mais cedo ou mais tarde, todos acabámos por sair (ou ser expulsos) com um diagnóstico claro: a praxe não se reforma.
A “obediência cega” faz parte da matriz militarista da praxe, que é imposta “de cima para baixo”. Apesar de haver muitos estudantes “praxísticos” com espírito crítico e subversivo (ao ponto de nos cruzarmos com eles nas manifestações estudantis anti-austeritárias), a praxe continua a ser dominada por uma elite altamente conservadora e reacionária. Ela chega ao comum dos estudantes como um conjunto de brincadeiras para ajudar à integração no ensino superior. Quase como um jogo ou “uma realidade paralela” em que são simuladas relações de poder livremente consentidas, que aparentemente terminam assim se despem os trajes. Mas logo se ouve o discurso (engendrado pelas elites e reproduzido pelos mais novos) da praxe enquanto escola de vida que nos ensina a sobreviver num mundo de hierarquias, porque “um dia, quando tivermos um emprego, também vamos ter um chefe”. Para além disso, a praxe é mascarada de um certo charme humanista que lhe é conferido por uma cultura de mistificação dos sentimentos e dos afetos, as tais coisas que ”só quem está é que compreende”, mas que, no fundo, são bem conhecidas por nós: agrado pela perceção do nosso crescimento pessoal durante o percurso académico, alegria pelas amizades feitas, satisfação por concluir um curso superior depois de tantas adversidades e de um esforço financeiro (cada vez maior) por parte das famílias, etc…
É sobre esta linha difusa entre a ficção e a realidade que as praxes se desenrolam. As emoções e os afetos, os sentimentos de pertença e os efeitos dos grupos e das multidões, só servem para aumentar a confusão entre “o jogo” e a realidade. A praxe torna-se uma bomba-relógio num espaço onde tudo é ficção, exceto as consequências, e multiplicam-se os casos de praxes que correm mal.
Muito pouco se sabe ainda sobre os acontecimentos da praia do Meco. Aparentemente, um grupo de estudantes foi surpreendido por uma onda durante uma sessão de praxe. Após a homenagem feita aos jovens no último fim de semana, o silêncio que persiste à volta deste caso foi enfatizado pelas famílias que compreensivelmente anseiam por perceber o que se passou naquela madrugada de Dezembro. À justiça cabe apurar os factos e as responsabilidades. A nós cabe-nos fazer uma discussão séria sobre a praxe académica, porque se há coisa que já podemos concluir dos acontecimentos da praia do Meco é que afinal a praxe não diz respeito apenas “a quem está”.
Comentários
Uma instituição é feita,
Uma instituição é feita, acima de tudo, de pessoas. Ora, se os "veteranos" (alunos com mais inscrições que o necessário para acabar o curso, que ocupam o topo da hierarquia praxista) são "quase por definição" imbecis, o que é que isso diz sobre a praxe? Como é que uma instituição que promove imbecis (estou a citar) ao topo da sua hierarquia pode ser descrita como saudável?
Podemos admitir até que os imbecis são uma minoria. Que são raros os casos de estudantes que chegam ao ponto de achar uma boa ideia sujeitar outros estudantes a praxes que põem em risco a sua vida. Mas o facto permanece que as ações desses casos raros são legitimados pela praxe, tanto que estamos a falar de indivíduos que chegam ao topo da hierarquia. Participar na praxe é ser cúmplice desta legitimação do crime, é fortalecer uma instituição que legitima o abuso. Quando consideramos que é (obviamente) possível estudantes criarem momentos de convívio sem hierarquias militaristas, torna-se impossível encontrar um motivo razoável para a existência da praxe.
Completamente de acordo ;) (e
Completamente de acordo ;)
(e já agora, o colher de electro em 2005 era um tipo impecável - dos tais que não ficaram lá tempo suficiente)
Ricardo, Acho que ninguém
Ricardo,
Acho que ninguém concorda que a praxe legitima o crime ou o abuso do poder. Casos como os do Meco deviam ser investigados como qualquer outro.
Mas não acho que seja razoável proibir uma determinada actividade consensual entre adultos só porque há alguns (poucos!) casos de abuso.
Posso fazer paralelos com dezenas de outras instituições. Vou escolher os sindicatos. Um sindicato na sua génese serve para defender os direitos dos seus associados, e tem muitas vezes resultados positivos (p.ex., intermediação das negociações entre empregador e empregados). Mas também há abusos (p.ex., piquetes de greve que impedem trabalhadores de trabalhar contra a sua vontade muitas vezes com violência, destruição de propriedade da empresa, negação dos direitos dos cidadãos a usufruir de serviços públicos).
O teu raciocínio, a ser válido, implicaria também a proibição dos sindicatos. E olha que mesmo eu que sou ultra-neo-liberal-de-direita-capitalista-selvagem seria contra isso ;)
Eu andei na Feup e fui
Eu andei na Feup e fui ameaçado por vários e só me "safei" quando parti uma garrafa e ameacei o dux, conde ou que quer que o queiram chamar.
Durante o meu percurso na feup sempre contrairei a praxe defendendo os pobres caloiros que por necessidade de "integração" eram humilhados pelos mentecaptos. Acredite ou não.Talvez o episódio anterior tenha granjeado uma fama que me permitiu acabar com os abusos que presenciei.
paguei uns copos a alguns e garanto-lhe que ficaram bem mais satisfeitos do que com os rituais bestas a que se estavam a sujeitar.
Nos vários fóruns de discussão leio expressões como: superiores, respeito pelos doutores, integração no espírito da universidade.
Isto é tudo uma hipocrisia. Nunca, na minha vida, pré-universidade tinha alguma vez ouvido falar de praxe e nos meus quase 50 anos continuo a ter as minhas amizades das 4 escolas por onde passei.
Concordo plenamente com o artigo. A praxe só serve para relembrar que as hierarquias existem e que o "superior" não é aquele que fez por merecer mas aquele que alinha com o sistema.
Já agora, sábia que na Suécia a praxe é proibida por ser considerada "bullying".
Não sei se já reparaste
Não sei se já reparaste nisso, mas os piquetes de greve nunca mataram ninguém. Será porque não há uma hierarquia militarista entre sindicalistas e trabalhadores? Será porque os trabalhadores não tem de passar por um ritual de humilhação pública para se integrarem num sindicato? Pois, será por isso e por todas as diferenças entre um espaço de democracia e um espaço de ditadura.
Não participei na praxe,
Não participei na praxe, aliás activamente combati a praxe pois a considerei uma prática anacrónica e distante dos valores em que acreditava e acredito, algo elitista e para-militar, destinado a desenvolver algo que devia ficar escondido nos gabinetes de psicanálise. Fomos poucos, em Eng. Electrotécnica (sim tb na FEUP), que me recorde ao fim do ano éramos 3 ou 4 (em 120 entrados...) que não tinham comprado o indispensável traje (tão adequado à ingestão de bebidas em Maio). Sim claro até de professores recebi "recados" nas aulas, era um gajo com a "mania que era diferente".Por isso não a discuto, é dever cívico dos estudantes que entram dizer NÃO QUERO.
Miguel, Em 2003 quando entrei
Miguel,
Em 2003 quando entrei na FEUP fui de livre vontade à praxe. Ao contrário de ti, vim de uma escola central do Porto e por isso entrei na faculdade com um grupo grande de amigos - isto para fizer que fui à praxe porque achava divertido, e não por ter qualquer tipo de pressão social.
Em 2005, quando tu entraste, ofereci-me para ser o responsável pela praxe do meu curso. Aprendi imenso, penso que não terei ensinado grande coisa...mas sobretudo penso que terei ajudado a proporcionar alguns bons momentos a quem me acompanhou. Tenho bons amigos da praxe. Tenho bons amigos fora da praxe. Nunca me passou pela cabeça incentivar alguém a fazer alguma coisa que não quisesse. Nunca ameacei ninguém com as consequências de não ir. Enfim, acho que no geral foi uma experiência positiva para todos.
Tenho pena que a tua experiência tenha sido menos boa, e que de facto haja gente que veja a praxe como uma fonte de poder que apenas serve para alimentar egos desequilibrados. Conheço todos os "colheres" de 2005, e é com alguma tristeza que confirmo que alguns deles eram uns imbecis (já para não falar dos "veteranos", que o são quase por definição), dos tais que "não pensam, executam".
Mas penso que estás a generalizar o que não é generalizável. A praxe, na sua essência, é uma actividade saudável que de facto contribui para a experiência da faculdade. O problema não está na instituição em si, mas sim nas pessoas que dela abusam. É assim na praxe, nas AEs, nas empresas, nos casamentos, no governo...enfim, em todo o lado onde há abusos.
Venham daí alternativas e diálogo - quem sabe, pode ser que até consigas "reformar a praxe" pela apresentação de uma alternativa que convença gente suficiente ;)
Miguel, Já se confirmou que
Miguel,
Já se confirmou que estavam em sessão de praxe? A última coisa que ouvi que associava era que estavam trajados. Agora, que a história está muito mal contada e que há quem não queira que ela seja esclarecida isso é claro. Para infelicidade das famílias e dos amigos.
António,
Conheço o Miguel há uns bons anos apesar de só o conhecer a sério desde que entrámos juntos para engenharia electrotécnica na FEUP em 2005 e juntos "frequentamos" a praxe durante o ano de caloiros e os restantes que se seguiram.
Mas a minha experiência inicial foi diferente da dele. Entrei na faculdade convencida a não ir à praxe porque não estava para ser humilhada. O meu namorado convenceu-me a, pelo menos, experimentar e foi mais para não ter de o aturar que acabei por ir ver como era. Tenho a dizer que a praxe me cativou, fui caloira o resto do ano e, chamemos-lhe doutora, nos anos que se seguiram. Como podes ver, também fui para lá para me divirtir. E, tanto quanto sei, também o Miguel lá estava porque se divirtia.
No entanto, passa o tempo, uma pessoa passa para o lado de ver "como as coisas são feitas" e a aperceber-se da podridão que lá existe. Fui uma das que acabou por sair.
Não sou contra a praxe, não vejo problema nenhum em que exista e até acho saudável, dentro de certos limites obviamente. Mas acho que é uma ilusão demasiado grande alguém pensar que ela pode ser reformada. Existe muita coisa errada na sua forma interna de funcionamento e não há ninguém com sentimento de "reforma" que consiga lá ficar tempo suficiente para criar a mínima das ondas.
Nada desta situação tem directamente a ver com quem é colher. Quanto muito diria que tem mais a ver com quem não é. Agora, a culpa do nosso sentimento nada tem a ver com o colher do nosso ano (por mim falo mas julgo que o Miguel concordará).
João,
1º Conheço muita gente que não comprou o traje, muito mais que os 3 ou 4 que dizes... Aliás, conheço até quem o quisesse comprar e não o fez por motivos económicos.
2º São 200 a entrar não 120...
Convivi bastante com a Inês
Convivi bastante com a Inês nos tempos de faculdade e discutimos muito sobre estas questões.
A grande conclusão é que a essência da praxe não se muda, independentemente do juízo "moral" que façamos das pessoas que "estão à frente". A hierarquia, a submissão, as constantes referências para se "cumprir ordens" em vez de "pensar" fazem parte da genética da praxe.
Acho que a faculdade é um local de pensamento, de confronto com o poder, de insubmissão constante, de formação de cidadãos com espírito crítico. A forma como se recebem os alunos deve reflectir isso e não o seu contrário. Por isso (e não podendo ser reformada) a praxe não faz sentido.
É verdade, que os casos que se sucedem de agressões são protagonizados por pessoas concretas e não pela praxe enquanto instituição. Mas o que quis transmitir no texto, é que a praxe cria as condições para que tal seja possível, ou seja, que gente mais frustrada abuse e que gente mais tímida (apesar de adulta) não seja capaz de dizer "não". Por isso a praxe também deve ser responsabilizada por todas estas ocorrências.
No caso da praia do Meco, como disse, está tudo por saber porque há alguém que se recusa a contar. E há um conjunto de gente que fez um pacto de silêncio, como se fizessem parte de uma "sociedade secreta". Ora, é importante abrir, discutir, pôr em causa, mudar e, já agora, garantir que entrar para o ensino superior em Portugal não é entrar numa "sociedade secreta".
Por último, resta-me dizer que me agrada ver que este texto chegou a muita gente que está/esteve na praxe e que foi capaz de gerar discussão lá dentro. Não nego que era esse o principal objectivo.
Estudei na FEUP, quando
Estudei na FEUP, quando entrei na faculdade nunca imaginaria que algum tipo mais pequeno que eu me falasse alto, nem sequer ao ouvido. Nas praxes da FEUP posso garantir que nao havia violência, nao havia maus tratos nem incompreensão, só quem nao fez o percurso pode ter uma visão deturpada. Sempre fui ate onde quis ir, nunca fui obrigado a nada. Agora, lobos e ovelhas haverá sempre em qualquer situação, no meco nao eram caloiros, eram pessoas que sabiam ao que iam e entraram na brincadeira, um dia iam fazer o mesmo a outros colegas, porque iam adorar a experiência. O problema é que correu muito mal, foi triste. Podia ter acontecido numas ferias quaisquer, numa brincadeira de amigos. Ha sem duvida que investigar mas chamar à causa de praxe é arranjar uma explicação errada para caso,na memoria ficará sem duvida que nao se pode andar a fazer rituais junto ao mar, precipícios, nao se pode brincar com coisas serias!!!
Eu frequentei 2 universidades
Eu frequentei 2 universidades diferentes, a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, por um ano, e depois a Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. Estive na FEUP também, mas na altura já tinha pouco tempo para praxes.
Em 2000, quando fui para a UTAD, estava ainda presente o caso de algumas praxes exageradas, como uma aluno que foi deixada no Marão e outros abusos, como pessoas externas à UTAD a praxar caloiros, por não existir a obrigação de estar trajado para se poder praxar. Muitas das praxes que fiz - e que eram relativamente comuns - passavam por limpar a casa e fazer jantar para os "doutores". Outras implicavam actividades mais lúdicas e plenas de parvoice. Mas também conheci a cidade, grande parte dos alunos dos diferentes cursos que me praxaram - ao ponto de conhecer pessoas em quase todos os cursos - e diverti-me imenso. E isso foi o que me ajudou, uma vez que até então, a minha vida tinha sido na cidade do Porto, e era um em 80 alunos vindos de diferentes parte do Norte do país. Existia sempre o medo de não pertencer, não conhecer, de ficar excluido. É para quem não é local, é um medo real. No entanto, nunca ninguém foi colocado em perigo, ameaçado ou perseguido por não participar em todo o que era pedido.
Quando vim para a UP, a situação era ainda mais soft, pois quem não queria ir, não ia e pronto. No entanto, havia um certo "olhar de lado" para quem não alinhava, pelos mais velho. Eu fui, novamente, por opção para me integrar e criar amizades. Foi em 2001 e ainda este ano nos encontramos todos em 3/4 jantares por ano, casamentos, aniversários e etc. Quando chegou a minha vez de praxar, apliquei o bom que me ensinaram e exclui tudo o que fosse parvo. E pelo que vi nos anos seguintes assim foi. Da mesma forma que "controlavamos" os que abusavam ou queriam abusar dos caloiros.
Mais do que um problema da praxe, é um problema das pessoas. Quem tem necessidade de alimentar o ego, de exercer posição de controlo, de sentir-se bem ao rebaixar os outros, vai aproveitar as oportunidades, seja na praxe, no emprego, no jogo de futebol com os amigos. Os conceitos de união, amizade, espirito de grupo que me tentaram sempre passar na praxe foi o que sempre tentei valorizar e passar aos que vinham depois de mim. Isso, e aproveitar o tempo do primeiro ano para se divertirem, porque dali para a frente a vida ia complicar.
Este caso está por explicar e portanto há muito que se desconhece sobre a praxe. Mas enquanto os participantes que organizam pensaram mais na sua diversão do na dos caloiros, e os caloiros se limitarem a dizer que sim a tudo, casos como este vão continuar a suceder. Tal como num emprego, é preciso saber dizer não ao abuso e aproveitamento dos superiores. Andar na faculdade também serve para crescer, não só para tirar um canudo.
E para terminar, só uma achega à questão do traje. Presumo que todos saibam, mas o traje é um uniforme dos estudantes universitários, cujo objectivo era evitar a distinção entre os alunos. Tal como uma simples farda. A subversão do conceito inicial é o mesmo que acontece em todas áreas da sociedade.
O que é que esse
O que é que esse acontecimento tem a ver com um caso de praxe que correu mal? Eles não estavam a praxar, juntaram se para organizar a praxe, e praticamente uma desculpa para se juntarem, podia ser por outro motivo qualquer, tem muita coisa que se pode pegar contra a praxe, mas este não é um deles. Depois a frase de alguns até tem sentido crítico e até vão a manifestações anti austeridade. Que frase mais parva!
Ahh, a Praxe... Aquele bode
Ahh, a Praxe... Aquele bode expiatório que nunca morre, e nunca responde quando é provocado. Odiada por todos aqueles em que tocou que não tinham espinha para bater o pé no chão e dizer "não faço, não está certo!". O perfeito saco de pancada.
Já sentia saudades de algum ódio gratuito.
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