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Rendimento Básico Incondicional: uma crítica

Desistir da exigência do pleno emprego é anunciar a morte do direito ao trabalho.

Que cada cidadão receba uma quantia do Estado, individualmente, incondicionalmente, independentemente da sua situação financeira, familiar ou profissional. Esta é a proposta que a “Iniciativa de Cidadania Europeia para o Rendimento Básico Incondicional1” tem promovido em abaixo-assinado nos últimos meses. Um milhão de assinaturas obrigam a Comissão Europeia a analisar a proposta e a promover a sua discussão no Parlamento Europeu. Num tempo em que a Europa se verga pela força da burguesia financeira, com a destruição do emprego a atingir um ritmo catastrófico, a ideia de garantir a cada cidadão um rendimento básico, que assegure os mínimos da sua sobrevivência e dignidade, tem, na sua aparência, o mérito de despertar a possibilidade de um modelo alternativo. Discuti-la é o que nos propomos a fazer de seguida.

Rendimento Básico e a luta pelo Pleno Emprego.

O Rendimento Básico Incondicional (RBI) é apresentado, em primeiro lugar, como uma defesa contra a armadilha da pobreza decorrente da ausência de emprego ou dos salários muito baixos2. O facto de todos, sem exceção, terem direito, eliminaria o constrangimento e o estigma social associados aos beneficiários de apoios sociais condicionais (como é o exemplo do RSI). A liberdade emanada do aumento de autonomia financeira resultaria ainda numa desmercadorização da força de trabalho, dotando os indivíduos de uma maior capacidade negocial em face ao patrão. O RBI seria então, duplamente, uma política ativa de consumo e uma arma política contra o mercado.

Acontece que, tal como concebido e assumido – os proponentes defendem um valor não inferior a 60% do rendimento médio mensal – o RBI teria um impacto mais significativo entre os pobres e os desempregados. Como afirma Mona Chollet3, “a primeira consequência de uma renda básica é eliminar o desemprego como um problema – tanto como questão social quanto como fonte de ansiedade do indivíduo –, seria possível economizar, de início, as somas envolvidas na busca do objetivo oficial do pleno emprego”. O argumento encerra toda uma concepção: o desemprego é a causa da exclusão que importa colmatar com um rendimento e não uma consequência das escolhas económicas e políticas, da desigualdade assente na exploração de classe.

A imbricação da proposta de RBI com as teses que advogam o fim do trabalho – ou da relação salarial se quisermos usar os termos de Jeremy Rifkin – torna-se assim evidente a partir da contraposição que os seus defensores estabelecem com as políticas de criação de emprego. Yoland Bresson, defensor de uma “renda de existência contra a exclusão”, sumariza a questão, "o pleno emprego salarial terminou; outro contrato social deve ser proposto; outro objetivo: a plena atividade". A extensão deste pensamento revela-se perigosa. Se a relação salarial se apaga inexoravelmente de que adianta organizar politicamente a sua defesa? Apresentar o RBI como solução estratégica para esta questão arrisca-se, uma vez mais, por resultar numa naturalização das relações laborais tal como nos são impostas, o que de resto se pode constatar por algumas referências dos seus defensores – “O RBI facilita a vida das pessoas que se sentem atraídas por trabalhos que são mal pagos ou que têm uma produtividade baixa4”.

Em suma, os proponentes do RBI recusam o caráter utópico da proposta, afirmando a sua plena aplicação como uma possibilidade real e efetiva, mas ao fazê-lo enredam-se numa narrativa que nega a mais imediata das possibilidades: a criação de emprego. Ora, o que a crise total deste último quinquénio (2008-2013) revela é que a urgência do emprego, da sua criação e da sua socialização, ressurge em força, confrontando os campos políticos em disputa. Ao contrário do afirmado pela crítica mais superficial, o sistema não fica incólume à destruição acelerada do «trabalho vivo»5, e nunca foi tão visível o facto de as vias de desmercadorização do trabalho diminuírem nas suas possibilidades políticas à medida que o desemprego aumenta e a política de austeridade se agudiza. A indagação que permanece, e que André Gorz mais seriamente realçou, é perceber até que ponto a noção de «trabalho abstrato»6 –pilar da teoria do valor-trabalho – terá de se atualizar de forma a providenciar uma análise mais acurada das novas formas de exploração laboral, num tempo em que «o custo social do trabalho se afasta, cada vez mais, da medida mercantil de seu custo imediato»7. A hipótese do desaparecimento do trabalho não se confunde, portanto, com a busca de uma melhor análise da sua crise sob a forma mercantil e capitalista dos nossos tempos.

A todos o que não é de todos.

Não abandonemos ainda a ideia. Falemos agora do seu modelo e dos seus resultados. O RBI pressuporia, numa segunda linha de argumento, o abandono dos apoios sociais condicionais (bolsas de ação social, subsídio de desemprego, complemento solidário para idosos, abono de família, RSI) mantendo-se, no entanto, o atual regime de pensões. Deste modo, a instauração do RBI como um direito universal resultaria num mesmo tratamento por parte do Estado quando comparado a outras áreas sob a sua responsabilidade, como é o caso da educação ou da saúde pública. Temos dúvidas que assim seja. Observar o Estado como um mero “distribuidor” de receitas e despesas encerra uma perigosa concepção liberal, primeiro porque recusa que é no trabalho e no salário direto que se decide a distribuição da riqueza e depois porque nega a relação de forças incrustada nos serviços públicos, num tempo em que o salário indireto socializado que sustenta estes serviços sofre o ataque austeritário. A quotização dos salários ainda é a mais forte das solidariedades no contexto atual, por isso se torna o alvo central do capital.

Mas onde essa diferença se torna patente é precisamente no modelo de financiamento do RBI. Assumindo a existência de várias propostas concentramo-nos em duas que nos parecem ser as dominantes entre os proponentes. A primeira, apresentada pelos autores do documentário suíço-alemão A renda básica, passaria por uma reforma do sistema fiscal que assentaria no aumento do IVA – trabalhadores e patrões unificados na figura do consumidor. Sendo o IVA um imposto indireto está claro de ver que o ônus desta solução recairia sobre os salários, sobretudo os mais baixos, pressionando os custos de produção e penalizando quem recebe menos.

A segunda solução, avançada por Philippe Van Parijs, um dos principais ideólogos do RBI, vai mais além. Segundo este, a sustentabilidade do RBI assentaria na reequação do imposto sobre o trabalho. Os muito pobres teriam de pagar menos e os muito ricos pagar mais, mas como estes últimos são minoritários na sociedade a solução só poderia passar, também, por um aumento do imposto sobre os menos pobres. Como o próprio explica: “Os trabalhadores que recebem salários modestos, cuja alíquota de imposto marginal precisaria ser aumentada, estão também entre os principais beneficiários da adoção de um sistema de renda básica, uma vez que a tributação maior de seus salários ficaria abaixo do nível da renda básica que eles passariam a receber.”8. Retira-se, portanto, ao salário o que se quer acrescentar em alocação universal. A pretensão igualitária do RBI esbarra no seu modelo politicamente regressivo: atacar os salários dos enfermeiros ou dos professores para submetê-los à dependência do Estado, repartindo esse valor com os mais ricos é uma forma de dar a todos o que não é de todos.

 

A política é feita de escolhas.

Num momento de crise do capitalismo e da ideologia que nega todas as outras possibilidades de produção e organização social, é importante que todos apresentem as suas propostas, mas é também necessário que se discutam as implicações de cada um desses caminhos. Desistir, como fazem os defensores do RBI, da exigência do pleno emprego é anunciar a morte do direito ao trabalho. E – tomemos Portugal como exemplo – quando vemos que mais de metade da população ativa está desempregada, precária ou emigrada e que, por esse motivo, vive desesperada, verificamos que quem vive do seu trabalho ainda e só através desse trabalho consegue ter uma vida digna.

Por isso, mais do que uma reinvindicação parcelar, devemos apresentar propostas que permitam unificar as lutas de trabalhadores, precários e desempregados, como o direito ao trabalho. Nesse campo, a redução do horário de trabalho sem redução dos salários como medida de combate ao desemprego permitiria melhorar no imediato a vida de quem não tem trabalho e distribuir a riqueza produzida. Um movimento popular pela redução dos horários do trabalho poderia unir lutas e atacar a mecânica da austeridade.

Neste momento, essa batalha pela defesa do emprego e dos salários está acesa e tem um nome: o combate à precariedade. Se a austeridade é o motor de criação de desemprego e precariedade para baixar os salários, a abertura de um campo político que a recusa é o que pode organizar uma alternativa de poder. O aumento do salário mínimo, proposta que conta com enorme maioria social, é outra luta que pode ser ganha e que teria reflexo imediato nas condições de vida de quem trabalha.

A regressão social que vivemos, com o desmantelamento do Estado Social e com a redução de salários e de direitos, faz aparecer alternativas que fogem ao confronto com o capitalismo e com a exploração do trabalho que o sustenta. A fraternidade que tecemos nas lutas diárias em que nos encontramos impõe-nos a exigência das escolhas: é melhor não irmos por aí.


Notas:

1 - http://www.rendimentobasico.pt/

2 - Entrevista a Roberto Merrill – Dinheiro Vivo, 16.11.2013

3 - Uma utopia ao alcance das mãos (Maio, 2013) 

4 - Rendimento básico: incondicional?, Monde Diplomatique, ed. portuguesa, Abril 2013, p.10-12.

5 - Conceito usado pela análise marxista que busca separar o trabalho no tempo presente da produção (relação de assalariamento) do «trabalho morto», trabalho passado acumulado, incorporado à maquinaria e à técnica produtiva. Uma relação que Gorz limitou sob a noção de «composição orgánica do trabalho».

6 - Por trabalho abstrato entende-se o processo pelo qual o produto do trabalho adquire condição de permutabilidade, estebelecida de forma desligada do seu conteúdo específico como valor de uso, permitindo a objetificação do trabalho social num valor de troca universal e que, na moderna economia capitalista, está dependente da relação de assalariamento, na qual o produto é alienado do seu produtor.

7 - Daniel Bensaïd (1999), Trabalho e Emancipação. http://danielbensaid.org/Trabalho-e-Emancipacao?lang=fr

 

Sobre o/a autor(a)

Adriano Campos é sociólogo e ativista precário. Ricardo Moreira é engenheiro florestal e dirigente do Bloco.
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