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Salvar as Repúblicas

As Repúblicas são lugares ímpares com um lastro histórico que importa realçar. Acontece que a Nova Lei do Arrendamento Urbano veio ameaçar fortemente a continuidade destas casas comunitárias.

Em certa medida, todos os textos são pessoais. Mas este é um bocadinho mais pessoal do que os outros. Habitei numa República coimbrã durante parte significativa da minha vivência como estudante universitário. O que se segue é um lugar-comum, mas cá vai: a minha formação teria sido muitíssimo mais pobre sem essa experiência. Aí “adquiri competências” – para utilizar a novilíngua dominante – que não poderia desenvolver nas salas de aula. Aprendi a gerir em coletivo aspetos pequenos (ou grandes) do quotidiano. Defrontei-me com a sempre tensa fronteira entre o nosso espaço privado e a vida que fazemos em comum. Compreendi a responsabilidade que era viver num espaço que é nosso mas que também é de muitos outros, desde logo dos que por lá passaram. Ter sido repúblico na Real República do Bota-Abaixo é uma daquelas coisas que nos mostra que nem tudo o que é relevante vem inscrito no CV.

Muitos estudantes terão tido experiências semelhantes noutros espaços. As Repúblicas são, no entanto, lugares ímpares. Desde logo, carregam um lastro histórico que importa realçar. Constituindo um elemento fundamental da tradição estudantil até à década de 1950/60, elas foram, a partir desses anos, um baluarte central de um outro tipo de tradição. Uma tradição democrática e contestatária, na qual se cruzaram a irreverência juvenil, a renovação cultural e a crítica política.

Há uns anos, o arquiteto (e repúblico) Luís Paulo Sousa defendeu mesmo – num artigo publicado no jornal Arquitectos – que o modelo das Repúblicas se deveria generalizar pelo país, através do apoio dos poderes públicos a cooperativas de habitação estudantil sustentadas e autogeridas. Pela sua capacidade de contornar a especulação imobiliária e pelas características de responsabilização pessoal, de fomento da vivência coletiva e de contacto intergeracional, este era “o tipo de alojamento estudantil de que Portugal precisa”. Muito recentemente, a bem-sucedida candidatura da Universidade de Coimbra, Alta e Sofia a Património da Humanidade da UNESCO fez referências claras às Repúblicas como parte do património imaterial a preservar.

Acontece que a Nova Lei do Arrendamento Urbano veio ameaçar fortemente a continuidade destas casas comunitárias. A República 5 de Outubro fechou as portas esta semana, depois de em Agosto ter sido alvo de um aumento de renda de mais de 6000%. Segundo afirma agora o Conselho das Repúblicas, das 26 repúblicas existentes há pelo menos mais 6 em risco de encerrarem nos próximos tempos. Há dois dias, em Assembleia Magna, os estudantes de Coimbra aprovaram a realização de uma petição, a apresentar à AR, que visa introduzir uma exceção na lei do arrendamento que busque salvar as Repúblicas desta condenação à morte.

Espera-se que esta - e outras iniciativas que se entendam realizar - consigam reverter a tendência assustadora que temos pela frente. É que as Repúblicas de Coimbra fazem falta: pela memória que conservam, pelo presente que carregam e pelo futuro que prometem.

Sobre o/a autor(a)

Historiador, doutorado em História, investigador do CES/UC.
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