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A praxe integra

A verdadeira crítica à praxe está na forma como se ergue a sua hierarquia e pela forma como integra, usando mecanismos de exclusão e subserviência.

Já decorre o novo ano letivo. Quer isto dizer, que as ruas se encheram de estudantes que orgulhosamente vestem o seu traje negro, fazendo-se acompanhar dos novos alunos que, nem sempre tão orgulhosamente, se expõem ao ridículo.

É impossível ter uma discussão séria sobre a tradição académica sem admitir um facto importante: a Praxe integra. E tão importante quanto este facto, é desconstrui-lo.

A entrada no Ensino Superior é marcada, para muitos estudantes, por uma mudança de cidade, saída de casa dos pais e afastamento de grande parte dos amigos da escola básica e secundária. Para muitos, significa integrar uma instituição de dimensões maiores, com mais estudantes e com um funcionamento significativamente mais impessoal, quer por parte dos professores, quer por parte dos funcionários. Tudo isto cria insegurança e ansiedade nos novos estudantes.

São estas inseguranças e ansiedades que a Praxe pretende explorar, apresentando-se como a solução única para quem quer fazer amigos na faculdade, ter acesso a apontamentos das cadeiras mais difíceis ou simplesmente obter ajuda para encontrar uma sala de aula no edifício. Para além de tudo isto, está associada à instituição da Praxe uma imagem de vida social ativa que extravasa as paredes da universidade e invade as noites e festas da cidade.

Mas, olhando bem para o que acontece nas universidades em cada novo começo de ano letivo, observo que a praxe não é voluntária, não é uma escolha real e o traje não é um instrumento de equidade social nas universidades.

Os estudantes são encontrados ainda no meio da sua ansiedade por gerir; em muitos casos, a Praxe tem início no primeiro dia em que os estudantes visitam a nova universidade. Aliados aos muitos mitos e medos que têm de nunca vir a conhecer pessoas – que naquele contexto parecem ser plausíveis, visto que acabaram de entrar num edifício novo e todos os rostos são desconhecidos -, os estudantes não acreditam ter a opção de dizer “não” ao (normalmente) gigante grupo de estudantes vestidos de negro que se aproxima e, apelidando-os de “Besta”, lhes ordenam histericamente que não os olhem nos olhos. Assim tem início a Praxe e depois torna-se muito complicado dizer “não quero fazer este jogo”; ninguém quer ser o primeiro a pôr em causa qualquer ordem ou mesmo a estrutura hierárquica que, já agora, não faz sentido existir, tendo em conta que o objetivo final é a integração (que deveria ser feita entre pares e não segundo uma lógica hierárquica de cima para baixo).

Para os corajosos que dizem não, há muitas vezes represálias (que têm efeitos mais psicológicos do que práticos porque inevitavelmente, ao fazer-se parte de uma turma, criam-se laços com essas pessoas, mesmo que não se tenha ido à praxe). Nem por isso essas represálias devem ser menosprezadas, até porque os seus efeitos psicológicos podem ser devastadores. Ninguém reagiria bem ao ouvir um auditório em uníssono gritando “não seremos amigos daquela pessoa” ou, em situações de bullying menos visíveis, ser alvo de risos e piadas sempre que passasse perto de membros da Praxe. Tudo isto na Universidade, que deveria ser um espaço onde os estudantes se sentissem confortáveis e seguros.

Mas a Praxe tem ainda outra dimensão. Por serem as estruturas mais populares nas universidades, dominam, regra geral, o poder associativo, liderando as associações de estudantes. Sob uma chantagem psicológica e hierárquica, mandados pelos “estudantes-mais-velhos-e-sábios”, a instituição praxística leva os estudantes mais novos a perder as suas próprias posições e opiniões, arrastando-os até às reuniões gerais de alunos (ou assembleias magnas) a votar-tipo-carneirinho-em-rebanho, chumbando propostas que procuram uma maior justiça social. Observando as federações académicas e a posição da maioria das associações de estudantes ligadas à praxe nos ENDA’s, encontramos uma instituição que não está disposta a usar o seu poder de mobilização para contestar fortemente e abertamente a austeridade, os cortes de financiamento no ensino superior, na acção social e na qualidade de ensino.

A Praxe sobrevive ainda, pois ligado ao ingresso no Ensino Superior está ainda um forte sentimento de orgulho, que nasce do facto de o seu acesso ainda não ser possível para todos os estudantes que o queiram fazer. As universidades são ainda reservadas a uma elite – e cada vez mais assim será, dado que o número de bolsas será novamente reduzido - que tem capacidade financeira para pagar as propinas, a alimentação, os manuais e todos os outros custos inerentes à frequência de um curso superior. O traje académico – exclusivo a quem participa na praxe -, é o símbolo máximo da pertença a uma instituição de ensino superior.

A crítica à Praxe é transversal à sua instituição, não se confina ao tipo de “brincadeiras” que dela fazem parte (nem as mais inocentes, nem as mais excessivas – seja do ponto de vista físico ou psicológico, já que muitas são machistas, homofóbicas, racistas, etc). A verdadeira crítica está na forma como se ergue a sua hierarquia e pela forma como integra, usando mecanismos de exclusão e subserviência.

Não acredito que a melhor forma de combater a Praxe seja proibindo-a. O melhor caminho será a construção de alternativas reais, que atraiam os estudantes, através da desconstrução dos mitos que se criam à volta da entrada no Ensino Superior. Só quando os estudantes forem informados de que a sua vida social, académica e emocional não depende da Praxe, a participação nela poderá ser considerada uma escolha real. Até lá, resta-nos o combate.

Sobre o/a autor(a)

Estudante do Ensino Superior. Membro da Coordenadora Nacional de Estudantes do Bloco de Esquerda.
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