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A nossa esquerda só pode ser anti-tourada

A nossa esquerda nada tem a ver com o conservadorismo da defesa incondicional da tradição, porque é uma esquerda moderna.

Depois da sua proibição na Catalunha, a tourada está rapidamente a ser enviada para o baú das más recordações do passado. Por todo o Estado Espanhol multiplicam-se os protestos para estender o fim da tourada ao resto do país, com o apoio de toda a esquerda. No sul de França, o retrato repete-se, agora que as touradas se deslocam da Catalunha para o outro lado da fronteira. Esta é também a nossa luta, na medida em que contamos com vários bastiões desta cruel tradição em Portugal.

Após um período de constante declínio, o número de espectadores das touradas aumentou bastante desde 2006, ano em que abriu a nova praça de touros do Campo Pequeno, em Lisboa. Desde então, o número de espectadores tem-se mantido relativamente constante, em torno dos 300 mil, mas em 2008 dá-se uma importante transformação: a proporção de bilhetes oferecidos aumenta para o dobro, atingindo mais de 40%.

O que temos assistido nos últimos anos, portanto, é a sustentação da tourada com dinheiros públicos, provenientes sobretudo de algumas autarquias. Segundo apurou o Movimento Anti-Touradas de Portugal, em 2009 um milhão de euros de dinheiro dos contribuintes foi usado para financiar a tauromaquia. Os maiores gastadores são a Câmara de Angra do Heroísmo, com 275 mil euros dados em vários apoios e a Câmara de Santarém, com 168 mil euros gastos na compra de bilhetes.

Estas duas autarquias têm sido importantes bases de sustentação da tourada em Portugal. Da primeira, saiu a inqualificável candidatura da Festa Brava da Terceira como Património Imaterial da Humanidade. Da segunda, saiu uma petição a favor das touradas, encabeçada por Moita Flores, seu presidente.

Numa entrevista ao Correio da Manhã, Moita Flores, de peito cheio, anunciava a guerra contra os “talibãs” que pretendem destruir a tourada. A estrela televisiva tem o descaramento de defender que a tourada não recebe apoios públicos, apesar de ser um dos seus maiores financiadores. O criminalista que sabe tudo sobre a Maddie afirma ainda que a tourada é o segundo espectáculo mais visto em Portugal, a seguir ao futebol. Será, se excluirmos todos os outros. Na realidade, até a música clássica ou o folclore contam com mais do dobro dos espectadores que a tourada, segundo os dados do INE. Estamos no domínio da fantasia, portanto.

Mas a perigosa fantasia estende-se também ao Ministério da Cultura. Em Fevereiro deste ano, a Ministra Gabriela Canavilhas decidiu criar uma secção de tauromaquia no Conselho Nacional de Cultura. O objectivo é muito claro: pretende-se dar à tourada uma aura de legitimidade enquanto actividade cultural, como se fizesse sentido falar em arte num espectáculo que consiste num ritual de tortura.

Temos assim uma coligação de interesses que usa de forma explícita o poder político para perpetuar a existência de uma tradição obsoleta, que tanto deslumbra uma certa burguesia marialva, saudosa da monarquia e omnipresente na “imprensa cor-de-rosa”. A esta burguesia opõem-se todos/as aqueles/as que vêem na tourada um resquício de um medievalismo que urge erradicar da nossa sociedade.

Em grande medida, o grau de desenvolvimento de uma sociedade vê-se pela forma como trata os seus animais. O sofrimento animal provocado por humanos não é apenas cruel, porque desnecessário – é também degradante para o próprio ser humano. A luta contra todos os maus-tratos para com animais não humanos é, portanto, uma luta humanista e deve fazer parte do património da esquerda.

A nossa esquerda nada tem a ver com o conservadorismo da defesa incondicional da tradição, porque é uma esquerda moderna. A nossa esquerda não pode agarrar-se à ideia ultrapassada de que os animais não sofrem, porque é uma esquerda científica. A nossa esquerda não pode aceitar o determinismo da hierarquização das lutas, porque é uma esquerda plural e inclusiva.

Quando pudermos olhar para trás e dizer “acabamos com as touradas”, saberemos que atingimos, uma vez mais, um novo patamar na evolução da esquerda. Iniciemos então o debate sobre estratégias para atingir este objectivo.

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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