Está aqui

Quando o estágio não rima com salário

A expansão dos estágios é um fenómeno global que acompanha a precarização do trabalho.

Agosto é um mês de férias. Mas para mais de um milhão e quatrocentos mil portugueses este é um mês igual a tantos outros, pois não há trabalho do qual se possa descansar, nem há salário com o qual se possa desfrutar. O desemprego não tira férias – mesmo que o Governo tenha, cinicamente, lançado foguetes por uma descida sazonal do desemprego. Uma descida que, como sabemos, é patrocinada por salários de miséria (segundo o INE, Portugal só cria empregos com salários inferiores a 310 euros). Dessa imensa multidão de desempregados, muitos aproveitam o Verão para tentar fazer com que Setembro aconteça. Tentam encontrar um emprego. Nessa busca não há quem não se tenha deparado, nos sites e em entrevistas de emprego, com a oferta de um estágio. Vale a pena pensarmos um pouco sobre este fenómeno.

 

A praga dos falsos estágios:

Há dois anos os trabalhadores precários obtiveram uma pequena vitória, os estágios extracurriculares (ditos profissionais) não remunerados passaram a ser proibidos por lei. Embora algumas profissões tenham ficado de fora (arquitetos e advogados), a lei ditou o que já era evidente para todos: o estágio é um trabalho e quem trabalha tem de receber um salário. Ora, passados dois anos, sabemos que a lei está longe de ser cumprida. Basta passar os olhos pelo site dos Precários Inflexíveis ou pelo Ganhem Vergonha para conhecer inúmeros casos de ofertas pretensamente desafiadoras –“oportunidade de ser integrado numa equipa dinâmica e jovem”, de “desenvolver as suas capacidades profissionais”, de “trabalhar num ambiente competitivo e inovador”, de “fazer parte de um projeto de sucesso” ou o clássico “possibilidade de celebração de contrato no final do período de estágio” – tudo isto se estiver disposto a trabalhar de borla ou, quando muito, com um subsídio de alimentação.      

Com a criação do Impulso Jovem (estágios financiados pelo IEFP) surgiu uma nova modalidade de estágio, cruel na sua essência e criminosa na sua aplicação. Muitas empresas usam a promessa desse estágio financiado para aliciar profissionais a trabalhar de graça. É o caso da LocalvisãoTV, que promete conceder o estágio, mas apenas após 3 ou 4 meses de trabalho sem remuneração. Estes casos multiplicam-se pelo país e demonstram como um programa pode ter efeitos contrários ao planeado quando é aplicado às pressas e em formato propaganda por um Governo feito em frangalhos.

 

Os recém-licenciados e as ordens profissionais.

Todos os anos milhares de alunos concluem os seus cursos superiores e procuram o primeiro emprego. Mas alguns, a juntar à dificuldade estrutural do desemprego, têm de enfrentar mais um problema: a realização de um estágio imposto pela sua ordem profissional. Escritórios de advogados e gabinetes de arquitetura têm à sua disposição, todos os anos, milhares de profissionais que podem contratar sem custos. Outras ordens, como a recém-criada Ordem dos Psicólogos, impõem um estágio de 12 meses que, apesar de ser contemplado pela lei (logo, que tem de ser remunerado) empurra os recém-licenciados para situações de trabalho não pago – muito veem-se obrigados a declarar-se como trabalhadores independentes para driblar a lei e serem aceites pela empresa.

Isto acontece porque a chantagem é forte. Sem estágio não há acesso ao exercício pleno da profissão. E essa força vem do limbo de poder alimentado pelas ordens e pelo Estado na obrigação da realização do estágio; as ordens defendem a sua legitimidade na imposição do estágio como salvaguarda da qualidade no exercício da profissão, mas não têm a capacidade de supervisionar os mesmos, já o Estado faz vista grossa ao abuso generalizado. Durante um ano, estes estagiários são excluídos do sistema publicamente regulado dos cursos superiores, pois contrariamente aos estágios curriculares não podem sequer aceder às bolsas de ação social, e entregues a uma estrutura corporativista das ordens profissionais que alegam que se os estágios fossem pagos muitos licenciados não teriam acesso aos mesmos. Este é um argumento ideológico e manco. Ideológico, pois assenta numa crítica surda ao sistema de ensino publicamente regulado – os cursos massificaram a profissão e não asseguram a qualidade do ensino, portanto, a ordem tem a legitimidade de intervir. Manco, pois tenta maquilhar a barreira e filtragem efetiva que o estágio representa no acesso à profissão e encobrir a lógica da exploração: sem estes estagiários muitos escritórios e empresas teriam de contratar e pagar mais trabalhadores para fazer o trabalho.   

 

Trabalho, logo salário.

A expansão dos estágios é um fenómeno global que acompanha a precarização do trabalho[1]. O seu uso abusivo é um desdobramento do afrouxamento das leis laborais, que subverteu os mecanismos já existentes – em Portugal qualquer trabalhador já é sujeito a um período experimental de 90 dias, após o qual o patrão pode optar por não celebrar o contrato. O aumento do desemprego gerou também uma competição macabra pelo acesso ao trabalho, no qual a súplica pelo salário, qualquer que ele seja, é sujeita a períodos prolongados de “promessa de emprego” como vimos. Em face deste alastramento devemos ter argumentos e soluções robustas que defendam quem vive do trabalho. Apresento três:

Primeiro: a democracia é mais forte que a tecnocracia; o sistema público de ensino superior é o regulador que emana das escolhas das pessoas e que assegura a excelência e competência das profissões. A ele deve caber a decisão da imposição de um estágio curricular como requisito da formação, regulando-o à medida da condição própria do estudante (tanto em matéria de horários e apoios), e a regulação do acesso à profissão. O trabalho é um meio para o desenvolvimento e melhoria de uma população que planeia as suas políticas públicas, não um fim que tenta limitar o acesso ao conhecimento prático e assim tornar mais valiosa a posição de uma classe profissional.

Segundo: em muitos casos, os estágios, pela sua utilização intensiva e rotativa numa só empresa, alimentam o desemprego em vez de combatê-lo, uma vez que dispensam a entidade patronal da contratação de trabalhadores assalariados; o problema do desemprego não é a falta de formação dos trabalhadores (temos a geração mais qualificada de sempre) mas sim a destruição da economia imposta pela austeridade da troika e do governo.

Terceiro: os estágios extracurriculares devem ser pagos, sem exceção – só isso pode evitar a iniquidade entre um licenciado mais seguro financeiramente, que consegue suportar um ano sem salário, e um licenciado pobre, que não consegue. Sem a organização dos atuais e futuros trabalhadores precários, os estudantes, travar esta nova praga e impor um travão à exploração assente na política de austeridade será cada vez mais difícil.  


[1] Recentemente, a produtora norte-americana Fox Searchlight Pictures foi condenada em tribunal por não ter pago a dois estagiários que trabalharam na produção do filme O Cisne Negro. Essa decisão tem avivado o debate sobre esta questão nos E.U.A. 

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo, dirigente do Bloco de Esquerda e ativista contra a precariedade.
Comentários (2)