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Melhor uma bofetada que um murro

Martim Neves foi, durante um dia, um vídeo viral nas redes sociais. Não quero discutir a su intervenção nem o seu empreendedorismo; quero sim discutir a máxima 'é melhor pouco que nada' ou 'é melhor mau que coisa nenhuma', principalmente quando ela é aplicada aos salários.

Martim Neves foi, durante um dia, um vídeo viral nas redes sociais. Não porque era um jovem empreendedor a explicar a sua ideia de negócio no Prós e Contras, mas sim porque era um jovem defensor da teoria de que é 'melhor pouco que nada'. Foi isso mesmo que ele foi defender nesse programa televisivo, que é melhor um mau salário do que estar desempregado. E apesar do cinismo e também sadismo da ideia, de imediato a direita se levantou para aplaudir tamanha tese de tamanho jovem.

Não quero discutir a intervenção do Martim Neves nem o seu empreendedorismo; quero sim discutir a máxima 'é melhor pouco que nada' ou 'é melhor mau que coisa nenhuma', principalmente quando ela é aplicada aos salários.

É uma máxima que não faz sentido nem na política nem na economia, porque nem uma nem outra deveriam ser instrumentos para administrar o menos mau mas sim para garantir que todos tivessem acesso ao bom; no entanto, é uma máxima que alguns querem popularizar, por isso tentaram criar um facto mediático em torno dessa afirmação no Prós e Contras. Rapidamente se esgotou a pólvora ao fogo de artifício.

O pensamento económico que caracteriza a direita austeritária redunda, hoje, nessa mesma máxima. Para além da patacoada do empreendedorismo, é comum ouvir-se dizer que 'hoje em dia as pessoas têm que se sujeitar ao que há' e que 'já é muito bom a fulana tal ou o cicrano tal ter emprego', ainda que seja mal pago ou não tenha reconhecidos uma série de direitos. O objetivo dessa doutrinação é o de fazer baixar salários e as reivindicações dos trabalhadores. Para isso instalam-se mecanismos:

A criação de um desemprego estrutural na sociedade de forma a pressionar os que estão empregados a aceitar a degradação das suas condições e de forma a chantagear os poucos que vão entrando no mercado de trabalho, de forma a que estes abdiquem de tudo ou quase tudo só para terem um emprego;

A criação de outros instrumentos que doutrinam e ensinam os jovens a aceitar como normal o pagamento de salários bem abaixo do tabelado. Falemos, por exemplo, do tão badalado Impulso Jovem, que teve como mentor um ministro já demitido e tem como embaixador um empreendedor de coisa nenhuma.

Esse impulso jovem prevê o financiamento de vários estágios profissionais com uma duração de até 12 meses e prevê como valores de bolsas de estágio 419€ para jovens com níveis de qualificação 1 e 2 (portanto, bolsas abaixo do salário mínimo nacional); 503€ para jovens com qualificações de nível 3; 545€ para nível 4 de qualificações; 586€ para nível 5 e 691€ para licenciados, mestrados e doutorados. A estes valores subtraem-se as obrigações tributárias e contributivas, o que mostra como este programa também procura ensinar os jovens a trabalhar por baixos salários.

Claro, poder-se-á dizer que isto é apenas um estágio, mas a realidade é outra. Estes jovens são tratados pelas empresas como verdadeiros trabalhadores. E são-no, de facto. São obrigados a trabalhar em exclusividade para a empresa e com horário de 8 horas por dia. Em muitas das empresas, associações e até autarquias são colocados com tarefas de responsabilidade direta e não como estagiários. Tudo isto por salários muito abaixo dos que deveriam ser praticados.

Pior ainda são os atrasos cada vez mais comuns do IEFP no que toca ao pagamento de reembolsos às empresas e instituições o que, na prática, coloca muitos destes estagiários em situação de salários em atraso. Deve ser também para os preparar melhor para o mercado de trabalho. Mas segundo a máxima de que partimos, é melhor isto que nada. Mas não seria melhor o justo que isto?

É que, sabes, Martim, quando falamos de salário e da sobrevivência das pessoas que vivem do trabalho, não podemos descer o argumento ao nível do Bangladesh, devemos elevá-lo ao nível das justas aspirações de qualidade de vida que cada um de nós tem. Ah, e já agora, empregar operários têxteis pelo salário mínimo não é nenhum favor que o patrão, benemérito, está a fazer. Ou de onde achas que vem o dinheiro do patrão? Talvez cada um desses funcionários produza, por mês, 1000€ ou 2000€. Se recebe 485€, para onde vai o resto, Martim?

Sobre o/a autor(a)

Doutorando na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e investigador do trabalho através das plataformas digitais. Dirigente do Bloco de Esquerda
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