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No princípio, era a mentira

A existência de armas de destruição maciça na posse de Saddam foi a grande justificativa para a invasão. Só que elas nunca foram encontradas, porque nunca existiram. Primeiro capítulo do livro “A Globalização Armada – As aventuras de George W. Bush na Babilónia”, de Francisco Louçã e Jorge Costa, edições Afrontamento, 2004.
Soldado americano no Iraque. Foto de Lance Cpl. Melissa A. Latty, wikimedia commons

Nas vésperas do ataque ao Afeganistão, em finais de 2001, o mundo ficou mais esclarecido. O tempo era de conversão à guerra contra o terrorismo, mas havia alguém que nunca se enganara: “Ao contrário da quase totalidade dos comentadores europeus, eu nunca subestimei o Presidente Bush nem a Administração Bush. Nunca andei a passar e-mails com as suas gaffes gramaticais e lexicais ou a rir-me com o seu sotaque texano”1. Imaculado, José Manuel Fernandes alista-se no pelotão do teclado para uma longa comissão. Um ano e meio depois, com os marines a chegar a Bagdade, o diretor do Público toca as trombetas da “libertação” e segue em frente: “Se ontem não consegui evitar uma lágrima furtiva – a mesma lágrima furtiva que nunca reprimo quando revejo a cena da Marselhesa no “Casablanca”, ou a imagem de Francisco Sousa Tavares, no Largo do Carmo, falando à multidão que cercava o quartel onde se refugiara Marcelo Caetano – não deixo por isso de saber que a batalha não está terminada, que são imensas as dificuldades e as incógnitas ainda pela frente” (P, 10/4/2003). Primeiros conselhos: “Mais do que preocupar-se em organizar rapidamente eleições no Iraque, a coligação deve começar por criar um ambiente liberal. A sua palavra-chave é liberdade, não democracia”.2

Ao longo desses meses, mais de um ano, as armas de destruição maciça andam na boca de toda a gente. Mas quando cai a estátua de Saddam e à sua volta não se encontram os prometidos arsenais, o discurso muda.

A guerra passa a ser justificada por tudo: a economia de mercado, as reservas petrolíferas, a democracia, o julgamento de Saddam, o povo curdo, a defesa de Israel. Mil razões florescem onde antes só havia WMD, Weapons of Mass Destruction, armas de destruição maciça.

A anunciar a guerra, Bush insistia: “A informação reunida por este e por outros governos não deixa qualquer dúvida de que o regime do Iraque continua a possuir e a esconder algumas das mais letais armas jamais inventadas” (FT, 24/6/2003). Já antes, em plena Assembleia da República, o primeiro-ministro português se mostrava certo das certezas norte-americanas: “O Iraque tem armas de destruição maciça, biológicas e químicas, e pode estar na iminência de possuir armas nucleares” (AR, 20/9/2002). Já com a ocupação consolidada, Donald Rumsfeld vai mais longe: “Sabemos onde estão as armas. Estão na área à volta de Tikrit e Bagdade, a leste, a oeste, a norte e a sul” (FT, 24/6/2003). Sabiam onde, sabiam quais, tinham a certeza. E foram buscá-las.3

O consenso da mentira

À medida que passam as semanas de ocupação, os governos da mentira vão-se descosendo. Paul Wolfowitz dá uma entrevista histórica à revista Vanity Fair, reproduzida no Público: “A verdade é que, por razões que têm muito que ver com a burocracia dos Estados Unidos, acordamos numa questão em que toda a gente pudesse concordar, que foi a das armas de destruição maciça como razão central, mas [silêncio] houve sempre três preocupações fundamentais. Uma eram as armas de destruição maciça, outra era o apoio ao terrorismo, a terceira era o tratamento criminoso do povo iraquiano”. E Wolfowitz continua, fazendo o balanço das suas próprias razões: “A terceira, por si só, como disse antes, é uma razão para ajudar o povo iraquiano mas não é uma razão para pôr as vidas dos rapazes americanos em risco, certamente não na escala em que o fizemos. A segunda questão da ligação ao terrorismo é a que provocou mais desacordos entre a burocracia” (P, 4/6/2003).

José Manuel Fernandes e José Pacheco Pereira indignam-se com o sentido que o mundo inteiro, carregado de preconceito anti-americano, atribui à confissão de Wolfowitz. Para eles, a expressão “razões burocráticas”, tornada célebre em poucas horas, está isolada do seu contexto... Fernandes recoloca-a no sítio, mas no esforço esquece a segunda parte da citação. Compreende-se a vertigem. Durante o bombardeamento de Bagdade, o editorial do Público era um verdadeiro formulário de adesão ao movimento neoconservador. Partindo de Clausewitz – “a guerra é o prolongamento da diplomacia por outra forma –, o diretor do Público assume-se: “Este ponto de vista aproxima-me do pensamento estratégico dos neoconservadores. Não tenho problema em o admitir – até porque os neoconservadores norte-americanos são bem diferentes dos conservadores clássicos europeus”. Sublinhada a diferença, esclarece a linhagem: “Entre Rumsfeld, o político, e Wolfowitz, o académico – cujo pensamento não deve amalgamar-se como é comum fazer na Europa –, prefiro o idealismo e a visão geoestratégica do segundo ao realismo puro e duro do primeiro” (P, 26/3/2003). A guerra infinita ganhou o seu wolfowitziano português. Mas o subsecretário da Defesa não ajuda nada: no mesmo dia em que é defendido pelos seus partidários portugueses, as suas palavras numa cimeira sobre segurança em Singapura são divulgadas pelo Guardian: “Vejamos as coisas com simplicidade. A diferença mais importante entre a Coreia do Norte e o Iraque é que, economicamente, nós não tínhamos qualquer escolha no Iraque. O país nada num mar de petróleo” (G, 4/6/2003). Wolfowitz não disfarça as palavras, nem cuida dos contextos invocados pelos seus publicistas.

Na hora das bombas, os neoconservadores nem tentavam esconder que o objetivo era dar mais poder ao dono do mundo – “prefiro que seja o mais benigno dos impérios que a humanidade conheceu, o império americano, a tomar nas suas mãos a liderança. E a levar aonde for necessário o exemplo da sua democracia, das suas instituições e do seu modo de vida” (JMF, P, 26/3/2003). Mas, com o passar das semanas sobre a invasão, as justificações para a guerra vão-se tornando “uma questão incómoda”. “Mas, ainda que o mistério persista”, escreve José Manuel Fernandes, “os motivos para a guerra não desaparecem, pois, mesmo sem arsenais, Saddam possuía forma de os obter, e esse é que era o perigo: a eventual convergência entre um regime com capacidade para construir armas de destruição maciça e terroristas com vontade de as largarem em qualquer grande cidade do Ocidente» (editorial, P, 30/5/2003). O mistério persistia mas vai-se dissipando: era uma mentira.

José António Saraiva, diretor do Expresso, poupa-se à canseira de mistérios: a inexistência de armas de destruição maciça “não pode ser usada como argumento contra a invasão por uma razão óbvia: essa constatação só pode ser feita depois da invasão” (editorial, Exp, 3/5/2003). Entre Maio e Agosto, Saraiva recua ainda mais. Afinal, “as armas de destruição maciça [foram] apenas o pretexto para a invasão. A sua 'razão formal'”. Para história da carochinha, carochinha e meia: “A questão essencial teve (e continua a ter) a ver com o terrorismo. Imagine o leitor que vivia num sítio problemático, perto de um reduto de marginais que um dia lhe assaltavam a casa, matando um membro da família. O que faria, se tivesse meios para combater os marginais? Ficaria à espera de ser de novo assaltado ou iria ao encontro deles, tentando neutralizá-los?” (Exp, 30/8/2003). Acredite, se ler no Expresso.

As coisas pioram um bocado quando uma das mentiras de maior impacto público usadas na justificação do ataque ao Iraque – o Iraque está a adquirir urânio em África para desenvolver armas nucleares – implode a partir de informações vindas de dentro da própria diplomacia da Coligação e dos seus serviços secretos.

A mentira africana

A história do programa nuclear iraquiano é um emaranhado de fraudes. O relatório “National Intelligence Estimate” (Avaliação Nacional de Inteligência), elaborado pelos serviços secretos norte-americanos em outubro de 2002, refere aquisições iraquianas de urânio na Nigéria. Para a fabricação desse documento foi preciso passar por cima do relatório do antigo embaixador Joseph Wilson IV, enviado à Nigéria pelo governo norte-americano em janeiro de 2002 para investigar as supostas vendas de material radioativo. No regresso, Wilson garantia que tudo não passava de uma fraude. Mas a história sobreviveu. Aliás, a única consequência das informações de Wilson foi que, sempre que se referiu ao suposto programa nuclear iraquiano, Bush tomou a precaução de remeter para a Grã-Bretanha a origem das alegações: “O governo britânico teve informações de que Saddam Hussein tentou comprar recentemente grandes quantidades de urânio em África” (NYT, 8/7/2003). Em março de 2003, nas vésperas da invasão, a Agência Internacional de Energia Atómica declarava que os documentos eram forjados, enquanto o ex-embaixador da Nigéria em Itália, Adamou Chekou, garantia que nunca os vira nem fora contactado para esclarecimentos, apesar de a sua assinatura falsificada estar nos documentos de prova. No meio da tempestade, Tony Blair acusa em público os serviços secretos italianos, mas em off aponta a CIA (CdS, 21/7/2003). O embaixador Joseph Wilson toma nota: “Não me resta senão concluir que alguma da informação que eu transmiti sobre o programa nuclear iraquiano foi distorcida para exagerar a ameaça iraquiana” (R, 6/7/2003).

A retaliação sobre Wilson foi posta em prática através de uma fuga de informação: a esposa do embaixador Joseph Wilson, Valerie Plame, foi denunciada à imprensa, por fonte anónima, como agente da CIA, um crime punível na lei norte-americana com até dez anos de prisão. A 31 de Dezembro de 2003, o procurador John Ashcroft retirou-se da investigação conduzida pelo Departamento de Justiça sobre esta fuga, por alegadas razões de “aparência”. O antigo embaixador Joseph Wilson e vários responsáveis do Partido Democrata remeteram a autoria da fuga para a Casa Branca e em particular para o principal conselheiro de Bush, Karl Rove (CNN, 1/1/2004).

A outra polémica que cruzou a crise das mentiras foi a do dossier “apimentado” com que o governo inglês justificou, em setembro de 2002, a guerra contra o Iraque. Segundo a BBC, o assessor de imprensa de Tony Blair, Alastair Campbell, teria dado forma final ao texto, o que o tornaria o autor direto de uma das mentiras principais da propaganda guerreira, a de que o Iraque podia desencadear um ataque químico ou biológico em 45 minutos. A notícia teria como base as declarações, prestadas sob anonimato por David Kelly, funcionário do Ministério da Defesa e antigo inspetor de armas no Iraque ao serviço da ONU, que acabaria por se suicidar quando o caso se tornou público. A investigação oficial que se seguiu, conduzida por Lord Hutton, foi acompanhada com entusiasmo pela opinião pública britânica, onde o desgaste do governo Blair se aprofunda. As conclusões do Inquérito Hutton limitaram-se no entanto a ilibar o governo no caso Kelly, mantendo-se à margem da fabricação das justificações para a guerra. Na apresentação do seu relatório, Hutton referiu-se à “enorme controvérsia e debate” gerados pelo dossier do governo britânico sobre as armas proibidas do Iraque, mas escusou-se a dizer fosse o que fosse sobre essa matéria: “Uma questão de tão grande importância, que teria que levar em consideração um amplo conjunto de provas, não é abrangida pelo meu campo de ação” (CNN, 2/1/2004).

O início de 2004 marcou a entrada da crise das mentiras na sua fase de farsa absoluta. Pressionado pela aproximação da data de apresentação de resultados do Inquérito Hutton sobre a morte de David Kelly, Tony Blair referiu à imprensa que “o Grupo de Pesquisa no Iraque [inspetores de armas de destruição maciça norte-americanos, comandados por David Kay] descobriu provas maciças de um amplo sistema de laboratórios clandestinos. Quando um país com um líder como Saddam tenta esconder isto, o que está a preparar?” (TS, 29/12/2003). confrontado por uma estação de televisão com este anúncio, mas desconhecendo o seu autor, Paul Bremer, o governador norte-americano do Iraque, não se quis deixar apanhar: “Não sei de quem são essas palavras, mas não foi isso que David Kay disse. Isso soa um bocado a armadilha. Alguém que não concorda com a nossa política coloca essa fasquia para depois a derrubar” (TS, 29/12/2003). Com os mentirosos a desmentirem-se uns aos outros, restava acabar com a maçada e a despesa das buscas.

Foi o que fez David Kay. Conselheiro da CIA, como anuncia no cartão de visita, chegou a Bagdade no início da ocupação, chefiando o Grupo de Pesquisa no Iraque, cerca de 1.200 agentes dedicados a procurar armas de destruição maciça. Antigo inspetor da ONU, presente no Iraque logo após a primeira guerra do Golfo, Kay estava mesmo empenhado em encontrar qualquer coisa: antes da invasão, destacou-se como comentador televisivo pelas suas categóricas análises sobre os arsenais iraquianos. Menos conhecido é o seu percurso no mundo dos negócios. Até outubro de 2002, Kay foi vice-presidente da SAIC (Science Applications International Corporation), uma prestadora de serviços ao governo norte-americano nas áreas da defesa e segurança. A guerra do Iraque foi uma oportunidade de negócios para a SAIC. Depois da invasão, recebeu a concessão da Voz do Novo Iraque, a estação de rádio instalada pelos americanos em Umm Qasr a 15 de Abril. A escolha não espanta: um mês antes do ataque a Bagdade, outro vice-presidente da SAIC, Christopher Ryan Henry, saltava para adjunto do subsecretário da Defesa, Paul Wolfowitz.

Mas já antes da guerra David Kay fazia do Iraque o seu assunto preferido: a SAIC era a entidade empregadora oficial de um bom lote de exilados iraquianos, sustentados por Washington durante anos para apoiar a formação de um governo “tecnocrático” pós-Saddam. Ora, neste elenco de “oposicionistas” contratados, o Conselho para a Reconstrução e Desenvolvimento do Iraque, estão alguns dos mais exemplares inventores das justificações para a guerra, as famosas fontes iraquianas dos serviços secretos do Pentágono. É o caso de Khidir Hamza,4 um cientista nuclear que se exilou em Washington em 1994, tornando-se no principal propagandista do suposto programa nuclear iraquiano. Do autor do livro “Fabricante da Bomba de Saddam”, disse um dia James Woolsey, o neoconservador que dirigiu a CIA: “Tenho-o em alta consideração e não há nenhuma razão para desconfiar das suas alegações” (NY, 7/5/2003). Outro caso: o engenheiro civil Adnan al-Haideri, fonte das “descrições em primeira-mão” de unidades móveis dissimuladas para o fabrico de elementos químicos e biológicos, referidas por Colin Powell na ONU. “Cada afirmação está baseada em fontes, fontes sólidas. Não são meras afirmações. O que lhes estou a dar são factos e conclusões baseadas num sólido trabalho de inteligência”, dizia então o secretário de Estado (EP, 19/5/2003). Depois da invasão, as vinte “localizações” apresentadas por Powell foram examinadas por inspetores da ONU e forças norte-americanas, sem resultados.

Consumidos nove meses de buscas e um orçamento de seiscentos milhões de dólares, David Kay, o fazedor de gambuzinos, anunciava o seu abandono do Iraque: “Não acredito que existissem. (...) Do que se falava era de arsenais armazenados, produzidos depois da anterior guerra do Golfo, e não acredito que houvesse sequer um programa de produção em larga escala nos anos 90» (R, 23/1/2004). “Esta Administração empolou as informações que nos levaram para o Iraque. O Presidente ainda não admitiu, no discurso do estado da União, que não há armas de destruição maciça” (NPR, 25/1/2004). Quando o demissionário Kay pede um “inquérito independente” às informações recolhidas antes da guerra, Bush cede à pressão pública e estabelece uma comissão bipartidária de “estudo de possíveis erros de avaliação sobre armas não-convencionais no Iraque” (NYT, 2/2/2004). Está visto que David Kay podia ter dito muito mais e assim poupado trabalho a tal comissão, mas o que Kay calou já tinha ficado dito, poucos dias antes, por outro arrependido da luta contra as armas de destruição maciça, Paul O'Neill. Segundo o antigo secretário do Tesouro de George W. Bush, o Presidente tomou posse, em inícios de 2001, já com a firme intenção de invadir o Iraque. Nas primeiras reuniões do Conselho de Segurança Nacional, oito meses antes do 11 de Setembro, Bush pediu aos seus conselheiros para encontrarem um pretexto para a invasão. “Tratava-se apenas de encontrar uma forma de a fazer”, diz O'Neill, republicano de sempre, que saiu do governo por divergências na área financeira: “O tom geral era o Presidente a pedir: 'arranjem-me uma maneira de fazermos isto'” (CBS, 11/1/2004).

Uma digestão difícil

A indignação alastra nas sociedades, no espectro político, na imprensa, na Internet. As vozes que se juntam contra a fraude enfrentam o anátema dos editorialistas guerreiros, mas têm a força da maioria. Entre os “amigos de Saddam” está Miguel Sousa Tavares, que pede contas: “Da próxima vez não inventem um milhão de albaneses desaparecidos no Kosovo para justificar a guerra aérea contra a Sérvia ou as terríveis armas de destruição maciça 'prontas a serem ativadas em 45 minutos' para justificar a invasão e tomada do Iraque. Digam-nos apenas as verdadeiras razões – se é para ajudar a indústria de armamento americana ou a indústria petrolífera, se é para garantir contratos de reconstrução dos países destruídos ou se é para redesenhar o mapa político da região – e nós decidimos» (P, 6/6/2003).

Em Junho, Hans Blix, o inspetor de armas da ONU que a invasão norte-americana expulsou do Iraque, sorri por fim: “É fascinante que se possa ter 100% de certeza sobre as armas de destruição maciça e zero certezas sobre onde elas se encontram” (R, 23/6/2003). Por cá, José Pacheco Pereira admite o cenário da mentira e reconhece para si o eventual papel de “idiota útil” da festa de Bush. Para ele, a hipótese da mentira “subdivide-se em duas: numa, as informações eram de má qualidade e os governos agiram de boa-fé; noutra, as informações foram adulteradas pelos governos para justificarem a intervenção, com base em falsidades deliberadas. (...) Seria bem menos grave se se tratasse de uma crise de informações de má qualidade do que se tivesse havido um engano deliberado. Neste caso, mesmo sem que isso legitimasse a posteriori muitas das posições anticoligação, colocaria os defensores dos EUA e Reino Unido na posição de idiotas úteis e os seus governantes numa posição ilegítima em democracia” (P, 26/6/2003). A transparência de Pacheco é de saudar, embora o agora analista profissional continue até hoje sem explicar, nos seus comentários regulares, que consequência retira da “posição ilegítima” dos governos da Coligação, entre eles o de Durão Barroso. Depressivo, Pacheco limita-se a constatar a depressão: “Nota-se, cada dia que passa, um maior esmorecimento na defesa da intervenção no Iraque. É natural, tudo o que podia correr mal, parece correr mal. Não se veem os resultados esperados, o descrédito que caiu sobre as administrações americana e inglesa por causa das armas de destruição maciça (e, por contágio, sobre todos os que, como eu, lhes atribuíram um papel fundamental na legitimação da intervenção) limita a sua ação, é cada vez maior o cansaço e hostilidade da opinião pública, a sensação crescente de um beco sem saída, a hesitação que se nota com a combinação entre o número de mortos e as manobras eleitorais americanas, tudo parece apontar para um falhanço de consequências devastadoras para este início do século” (abrupto.blogspot.com, 16/11/2003).

Já Fátima Bonifácio nunca precisou de acreditar nas armas. Para a professora universitária, o problema essencial é que o Ocidente em guerra tem uma civilização a gasolina: “Julguei a intervenção anglo-americana justificada pelo legítimo interesse do Ocidente em garantir a segurança própria e global bem como o acesso aos recursos energéticos que sustentam a sua civilização e que seria pura irresponsabilidade deixar entregues a inimigo”. Hoje, o descalabro da ocupação “levanta dúvidas arrasadoras sobre a competência com que os americanos planearam o pós-guerra. O lúgubre espetáculo a que todos os dias assistimos é quanto basta para condenar a sua irresponsável imprevidência” (P, 8/12/2003). Resta então perseverar e nunca “ceder à tentação de virar costas”.

Face à derrocada das justificações da guerra e ao descrédito de uma direção político-militar que tanta direita arregimentou e diante da incógnita que é o futuro da ocupação do Iraque, chega por fim a hora de zelar pelo bom comportamento no debate da situação mundial. E quem senão Pacheco Pereira para lançar o alerta? “O pior que se pode fazer, numa questão tão séria como esta, é transformar as nossas opiniões e o nosso envolvimento na causa política numa espécie de projeção subjetiva da nossa própria pessoa e importância. As coisas correm bem, levanta-se a grimpa e desdenha-se dos outros; as coisas correm mal e assobia-se para o lado e colecionam-se os “mas”. Infelizmente isto é comum no debate português, com raras exceções» (P, 18/12/2003). Por muito que custe a Pacheco, nenhum acordo de cavalheiros contra assuntos desagradáveis apagará as marcas de uma das mentiras mais insistentemente repetidas na história da manipulação de massas. É nas batalhas navais de comentários e blogues que as coisas “correm bem” ou “correm mal”. Pelo contrário, pensar e explicar a fraude, as suas consequências, é discutir o poder imperial – um poder hoje amarrado no atoleiro iraquiano, cujas primeiras vítimas são 25 milhões de homens e mulheres que carregam nas suas existências toda a violência semeada no Médio Oriente ao longo do século XX e até ao dia de hoje. O frágil castelo de mentiras que acaba de ruir assinala a fragilidade desse poder. E, claro, dos seus sempre transitórios bardos.

Uma semana depois da queda de Bagdade, na sua excitação incontida, José Manuel Fernandes invetivava mais uma vez os adversários da invasão, na circunstância Ana Sá Lopes e Augusto M. Seabra, os seus críticos que, no Público, se pronunciaram contra a guerra. Por falar em levantamento da grimpa e assobios para o lado, vale a pena lembrar a sentença do diretor: “Tenham pois calma e releiam as previsões catastrofistas que fizeram há apenas um mês. Não sejam adolescentes: aprendam com os disparates que disseram e escreveram. Como é Páscoa, vou ser piedoso: deixo o trabalho de memória desses disparates aos seus autores” (P, 21/4/2003). Um ano depois, a releitura – muito calma e adulta – das formidáveis previsões de José Manuel Fernandes antes da ocupação não deixará de beneficiar o leitor menos precavido e mais piedoso.

Os atalhos que conduziram à guerra impuseram, em consequência, o regresso do poder colonial a Bagdade, com um novo mandato. Nos tempos e contratempos da história do Iraque, recapitulam-se assim as disputas de poder e influência, as mentiras, os jogos de sombras e a intriga, as conspirações, os momentos de esperança e os confrontos urdidos a partir das capitais ocidentais, as dissidências e fundamentalismos religiosos, uma história longa.

1Conferência na Fundação Gulbenkian, 26/10/2001, in José Manuel Fernandes, Ninguém é Neutro, Lisboa: Quetzal, 2003.

2Da introdução do livro Ninguém é Neutro, p. 27.

3Num colóquio organizado pela revista História a 20 de Março de 2003, na noite em que as bombas começaram a cair em Bagdade, o comentador Vasco Rato esteve à altura do momento. Perante o auditório da Hemeroteca de Lisboa, prometeu que, se os militares norte-americanos não encontrassem as armas de destruição maciça iraquianas, poderiam os portugueses contar com ele passeando nu pelo Rossio. Com as mentiras norte-americanas ao léu, não falta hoje quem se cubra de ridículo.

 

4Khidir Hamza, Saddamk Bomb Maker, Nova Iorque: Scribner, 2000.

Comentários (1)

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