Está aqui
Notas cipriotas para incomodar os bons espíritos
1. A União Europeia comporta-se como um poder colonial
A Comissão Europeia é uma instituição com um programa final: um governo imperial (chama-se delicadamente federalismo) submetendo os povos à lei da acumulação financeira da burguesia alemã e dos seus súbditos. É certo que são experimentalistas: a Comissão e os ministros das finanças atrevem-se a impor ao Chipre o que não tentariam em Espanha (60 biliões para os bancos, mas vão pagar disfarçadamente com dívida e impostos). Mas, por isso mesmo, a solução cipriota é ainda mais grave, porque junta a violência política à incompetência técnica de uma solução que nunca podia resultar. Isto vai ser cada vez pior.
2. A crise do euro agravou-se e vai continuar a agravar-se
Esta direção europeia é estupidificada pela arrogância do seu poder. A solução de confiscar uma parte das poupanças cipriotas não tem justificação (se querem taxar a evasão fiscal russa, porque é que nunca o fizeram na entrada dos capitais?) mas tem uma consequência devastadora: a vida de uma economia desenvolvida depende da credibilidade do sistema bancário e a partir de agora as pessoas sabem que tudo é possível.
Sabem que a Islândia é ameaçada se não pagar os depósitos de bancos privados que foram à falência mas que em Chipre são as autoridades europeias quem rouba os depósitos. Sabem também agora que o Eurogrupo pode aprovar numa madrugada qualquer estado de sítio financeiro.
O euro perde por isso credibilidade e vai continuar a perder. É uma moeda construída de modo politicamente ameaçador para os povos europeus e dirigida por gente perigosíssima.
3. O Partido Comunista de Chipre não quis enfrentar Merkel
Até há um mês, o governo cipriota era do Partido Comunista, alinhado com o KKE (PC grego, defensor da saída do euro) e com o PCP (uma sua delegação do mais alto nível visitou e apoiou o governo). No entanto, aprovou o Tratado Orçamental europeu, apesar de ter o poder único de o vetar, e nunca tomou qualquer iniciativa para sair do euro. Esse programa não existiu em Chipre.
Há pelo menos uma lição: a solução política é difícil. E ceder à Comissão Europeia e ao BCE nunca é o caminho.
4. Os defensores da saída do euro têm uma boa razão para refletir
Os defensores da saída do euro têm alguns bons argumentos monetários: o euro é uma construção desastrosa e as suas regras são absolutamente prejudiciais a uma economia de emprego. Têm ainda o argumento político: podemos chegar a uma situação em que Portugal não tenha nenhuma alternativa ou seja expulso do euro ou da União Europeia.
Mas o que não têm é um bom argumento com Chipre. Porque a questão incómoda é esta: se o povo reagiu violentamente contra o confisco de 6% dos seus depósitos, com razão e com o apoio da esquerda, o que diria esse povo ao governo de esquerda que lhe anunciasse que amanhã de manhã os depósitos perdem metade do seu valor, porque os euros são substituídos por escudos com uma desvalorização de 50%? Como reagiria a este imposto de 50%? Não é evidente que haveria uma corrida aos depósitos para levantar todos os euros? É evidente e é uma questão incómoda. Procurar alternativas não pode poupar esse incómodo.
Comentários
Caro Francisco Louçã, A bem
Caro Francisco Louçã,
A bem da qualidade do debate parece-me que seria necessário justificares por que razão os "depósitos perdem metade do seu valor, porque os euros são substituídos por escudos com uma desvalorização de 50%". Creio saber que sabemos que uma desvalorização cambial de X% não resulta numa desvalorização real de X% do valor real dos depósitos. A desvalorização é menor. Por outro lado seria também bom termos em conta o que aconteceria com as dívidas das famílias e das empresas à banca. Como a maior parte das famílias e empresas têm um activo e um passivo no seu balanço o efeito líquido da desvalorização é sempre menor que o efeito da desvalorização real dos depósitos que por sua vez é já de si inferior à desvalorização cambial.
Temos de discutir. E depressa.
Abraço
JMCC
Agradeço o comentário, sério
Agradeço o comentário, sério e cuidado como sempre faz o Castro Caldas.
A substituição das poupanças em euros por escudos funcionaria assim: de noite o governo confisca todos os euros e entrega escudos em troca (por exemplo, fazendo 1 euro= 200 escudos). De manhã, as pessoas têm escudos, mas esta moeda desvaloriza-se desde o primeiro minuto (suponhamos que 50%, que é o que calculam alguns dos defensores da operação). Os depositantes perderam essa parte do valor da sua poupança. Escreve JMCC, e com razão, que o efeito final para cada depositante é o resultado combinado da desvalorização dos depósitos e das dívidas ao banco (porque estas também passam a ser em escudos). Sim, é verdade, mas esse efeito de desvalorização cambial das dívidas depende da evolução do rendimento real dos trabalhadores e reformados e não do valor nominal da sua conta com o banco. Uns podem perder e outros podem ganhar por esta via. Mas todos perdem no imediato por outras vias: o preço da gasolina e dos bens importados vai subir até 50%. Isso nota-se nos primeiros dias da operação e não vale a pena fechar os olhos a esta dificuldade, qualquer que seja a expectativa de benefícios futuros.
Entretanto, as poupanças perdem mesmo - e eu chamei a atenção para o efeito político imediato que é a sensação de confisco, a corrida aos depósitos, os bancos fechados e a limitação do movimento das contas dos pequenos depositantes. De manhã, as pessoas vêm mesmo no seu extracto bancário que perderam metade do valor que tinham depositado. Ficam furiosas, viu-se essa reacção em Chipre, ver-se-ia em todo o lado. Dito de outra forma, a curto prazo, só conta a política.
Siempre se plantea la
Siempre se plantea la cuestión 'dentro o fuera del euro', pero nunca se plantea la opción 'dentro Y fuera del euro'.
Estar dentro del euro no implica que no pueda existir una economía paralela en moneda nacional.
Se puede reactivar la economía nacional sin renunciar a una economía global que aún es ineludible.
Caros Castro Caldas e
Caros Castro Caldas e Francisco Louçã,
Peço desculpa, desde já, por me intrometer num debate em que não me atrevo a tentar esgrimir argumentos técnicos com nenhum dos dois.
Em todo o caso, estou aqui a reflectir sobre o seguinte:
1-As consequências políticas da saída do euro são, de facto, discutíveis.
2-As consequências económicas dessa saída também são, realmente, objecto de muito debate.
3-Mas será assim tão discutível a inevitabilidade desse abandono da moeda única?
Ou seja, não será o princípio da realidade que acabará por ditar (gostando ou não daquilo que sucederá politica e economicamente) o regresso ao escudo?
Será do domínio do pensável que um país com mais de 120% do PIB em dívida pública e não sei quantas vezes mais em dívida privada possa, de facto, permanecer dentro de um inflexível sistema monetário que impede o surgimento de um crescimento económico que teria de ser estratosférico para conseguir digerir essa mesma dívida?
Bom, vamos supôr que, milagrosamente, uma parte da dívida é reestruturada de alguma forma bondosa para o nosso povo (como disse: "um milagre"...).
Vamos imaginar que nessa bela manhã estamos dentro dos 60% de dívida pública imposta pela UE.
Há uma outra questão incómoda que passa a colocar-se novamente:
-A crise de que nos livramos foi uma crise de liquidez ou de solvência?
Tendo em conta a forma como a nossa economia transacionável foi desmantelada desde a adesão à CEE, tendo em conta a entrada da China no palco do comércio mundial, parece-me a mim que fica muito difícil taparmos o Sol com uma peneira, fazendo de conta que o Freddie Krueger não voltará...
A nossa crise não é (só) de liquidez.
E, a partir desta conclusão, das duas uma:
A)Ou aprofunda-se o federalismo europeu, e não passaremos de uma região desertificada do sul da europa a viver cronicamente da esmola do norte (cujo pé sobre nós nunca será nada leve).
B)Ou saímos do euro.
O que não é possível é conceber uma saída alternativa a estas duas.
A alternativa A nunca vai ter lugar, uma vez que a narrativa de que os coitados do norte suportam os preguiçosos do sul já está excessivamente entranhada no seu eleitorado.
Logo, talvez B) seja pura e simplesmente inevitável.
A verdadeira questão é:
Negociamos a saída B) agora, quando ainda somos sistemicamente significativos no dominó dos bancos alemães?
Ou será que preferimos a consciência tranquila da inação, ficando a ver “no que isto dá”, depois dessa dívida deixar de ser ameaçadora para a alta finança alemã e francesa?
Esta é a minha angústia existencial.
Peço desculpa não só por
Peço desculpa não só por intrometer-me neste debate, mas tambem pelo meu portugues. Sou italiano mas moro há 11 anos em Portugal e obviamente estou preocupado pelo futuro deste pais tal como do meu.
Acho correctos os primeiros 3 pontos desta analise embora no ponto 2 iria mudar "gente perigosissima" por "gente que está, pela própria arquitectura institucional europeia, longe de qualquer tipo de controle democratico".
Ao 4ºponto voltei à realidade... e pensei no secretário do PD Italiano, Bersani, que tem "argumentos" parecidos contra a saida italiana do euro não menos brilhantes... O mais famoso é: "voltar a lira significaria ir às compras com o carrinho de mão cheio de notas".
Pergunta: Quem são os responsaveis economicos dos partidos de esquerda (e não só) europeus? Os bancos?
O Sr. Francisco Louçã que afirma que as poupanças dos portugueses perderiam metade do valor por causa da desvalorização da moeda, costuma ir às compras em Frankfurt, ou sou eu que estou enganado e compro aqui em Portugal grelos que vem da Finlandia?
O Sr. Bersani, e muitos outros politicos europeus, viram pessoas com carrinhos de mão nas ruas, em 1999, quando o Euro, que ainda não estava nos nossos bolsos mas era usado para pagamentos internacionais (ex: petroleo, matérias primas etc...) desvalorizou-se quase 30%?
Peço desculpa mas nestas afirmações não consigo encontrar boa fé.
Posso até aceitar que a maioria dos deputados ou activistas de um partido qualquer não percebam nada de economia, mas que o grupo dirigente faça "terrorismo mediatico" é inaceitavel.
A "esquerda" europeista na Itália está a suicidar-se dentro desta contradição: Esquerda e €uropa (Uma ideia bem diferente daquela que nos foi vendida como promessa de bem estar e crescimento).
As ultimas analises dos responsaveis economicos do PD italiano estão mais correctas e explicitas, e não podia ser de outra maneira. Os ultimos acontecimentos politicos e economicos internos (sucesso do movimento 5 estrelas, pacto fiscal, fundo salva-estados ) e externos (crise de Chipre, mas tambem de Slovenia e França) não deixavam alternativas: aos eleitores já não era possivel esconder por completo as razões e os mecanismos desta crise, embora os espantalhos da divida publica, da corrupação e da evasão fiscal, continuem a ser agitados nos midias.
Mas a solução é sempre a mesma "porcaria": "MAIS EUROPA!", europa fiscal e politica!!!.
Como se fizesse algum sentido na situação actual achar que o povo alemão, que nem sequer beneficiou do enorme superavit comercial acumulado nesta decada pelo seu proprio pais, possa aceitar de ajudar com os seus impostos aqueles que politicos e imprensa locais descreveram como os porcos improdutivos do sul, os PIIGS que viveram e gastaram alegramente às custas da divida pública...
Na Itália, pelos mesmos motivos, temos as "camisas verdes" dos independentistas do norte, na Espanha desconheço a cor das camisas catalãs, na Alemanha as camisas pardas não tardarão a aparecer...
As "questões incomodas" deveriam ser outras e deveriam partir de dois principios, um "democratico" e outro "liberal".
O principio democratico que o poder monetario não pode ser um quarto poder independente do controle eleitoral.
O principio liberal, ou melhor "natural", da lei da procura e da oferta que os liberistas europeus (ou seja o capitalismo sem risco de falencia) decidiram deixar de aplicar à moeda.
As esquerdas dos PIIGS estão prontas para uma mudança coordenada de paradigma? Ou querem, cada-uma no proprio pais, desaparecer sob o peso de uma historia de colonização financeira?
Cumprimentos
Sou de esquerda e fiz
Sou de esquerda e fiz camapanha pelo BE nas últimas legislativas (mesmo não sendo militante).
Não percebo como funcionam os mecanismos monetários mas, mesmo assim, fiquei intrigado com a afirmação do Francisco Louçã de que a saída do euro corresponderia a uma taxação de 50% sobre os depósitos.
Desconfiei disso e já vários economistas (Jorge Bateira, do Ladrões de Bicicletas) vieram demonstrar a falsidade da afirmação do Francisco Louçã (FL).
Este episódio revela, a meu ver, uma das maiores fragilidades do BE: o seu europeísmo pacóvio. Basta pronunciar a palavra "Europa" para os dirigentes do partido aplaudirem, dizer que "sim à Europa", etc., talvez, a meu ver, por medo de escandalizar os bem-pensantes. O Bloco quer-se, assim, um partido "respeitável". Mas aos olhos de quem? Do PS? Dos jornalistas às ordens? Da boa sociedade? Se é para isso, o BE não serve para nada. O que tem ele a oferecer é apenas mais do mesmo. Assim, põe de lado a hipótese de saída do euro por cobardia política e para ser aceite entre os senhores sérios -- que utilizam gravata e toda restante pafernália.
E, a meu ver, quem não põe essa possibilidade em cima da mesa, condena-se à incapacidade de acção. As instituições e o euro estão feitos de tal modo que qualquer política de esquerda é proibida. E, agora, virem com a conversa que, ao nível europeu é possível inflectir as políticas, é uma "vue de l'esprit", uma ingenuidade. Mas imaginando que tal se fizesse: o período de tempo seria tão longo, que os europeus teriam "os amanhãs que cantam" do federalismo dos povos daqui a... 30 anos. Que fantástico horizonte.
Aconselho ainda a FL que leia o artigo de Jacques Sapir, onde mostra, pelo caso chipriota, que é possível sair do euro sem grandes dramas.
http://russeurope.hypotheses.org/1106
Adicionar novo comentário