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Dois anos do 12 de Março de 2011: o que ficou e o que mudou?

A revolta popular, já não apenas a indignação, está aí para quem a quiser ver e sentir e não há regresso aos mercados que a possa serenar.

Parecem demasiado distantes aqueles tempos em que uma grande manifestação só era possível se o ponto de encontro fosse único, em Lisboa, e se de Norte a Sul do país saíssem autocarros repletos de manifestantes. Nesses tempos, dizia-se, era melhor não “dispersar a luta”, concentrar toda a gente numa mesma cidade para dar a imagem mais forte possível do protesto e, assim, manter acordado e vivo no imaginário do povo o espírito reivindicativo.

Na realidade, esses tempos e essas manifs, não distam assim tanto do tempo presente. Foi com o 12 de Março de 2011 que surgiram manifestações de tipo novo, protestos originais na origem, no modo e na forma de convocação e realização. Originais, porquanto daí em diante passavam a ser convocados para quase todas as capitais de distrito (alguns até fora do país), por qualquer pessoa via redes sociais e logravam obter enormíssima adesão popular. É certo que aquelas manifestações mais tradicionais (sem nenhum sentido pejorativo, entenda-se) se continuam a realizar e algumas delas têm tido uma adesão cada vez maior que devemos assinalar. Não as devemos menorizar nem secundarizar, não só pelo papel histórico decisivo que tiveram em não “desligar os motores” do protesto, mas sobretudo porque no presente se mostram imprescindíveis, já que inseridas e determinantes num processo mais vasto de generalização e maturação da revolta popular.

A verdade, porém, é que estas manifestações de tipo novo têm tido uma adesão só comparável com os protestos imediatamente posteriores ao 25 de Abril. A primeira delas, a do 12 de Março de 2011, coincidiu com a fase final do Governo do PS de Sócrates e com o período pré-Troika. Apesar do conteúdo do manifesto da Geração à Rasca, com críticas duras à degradação social do país e sobretudo à precariedade, a verdade é que aquele conteúdo acabaria por ser ultrapassado, sem que muito mais se pudesse fazer em contrário, pelo rolo compressor do populismo “contra os partidos e os políticos”. Os cartazes desse dia expressavam o desespero de quem começava a ver a sua (qualidade de) vida a andar para trás e não sabia bem o que fazer, porque o que se ouvia na televisão era que todos aqueles cortes eram “inevitáveis”: o país, diziam os “especialistas”, teria vivido “acima das suas possibilidades” e agora tinha de “ajustar-se” à nova realidade. Esta ideia fez o seu caminho quase sem sobressaltos e as consequências para a esquerda foram desastrosas.

Assim, se a política enquanto atividade através da qual se discutem e concretizam caminhos alternativos de desenvolvimento e progresso da humanidade, se transforma na mera gestão desigualitária de sacrifícios sem qualquer “luz ao fundo do túnel” e se os partidos políticos com projetos alternativos não têm, aparentemente, soluções alternativas porque tudo é inevitável, compreende-se que germine no senso comum a ideia de que “os políticos e os partidos são todos iguais”. Se, aparentemente, não há nem pode haver caminhos diferentes propostos pelos diversos partidos e se o único caminho proposto é o do corte e do sacrifício, nada os distingue e todos são responsáveis. Sendo este o espírito dominante, não admira, portanto, que alguns meses depois a Troika tivesse chegado a Portugal e proposto um programa de uma agressividade social incalculável e os partidos que subscreveram o memorando reforçassem a sua votação. Pelo contrário, a esquerda saiu fragilizada e com várias notas a tirar da indignação popular.

Mas o que ficou e o que mudou desde o 12 de Março de 2011 até hoje?

Permanece o contexto de austeridade, agora brutalizado pelo Governo PSD-CDS e de que são exemplos mais cortes nos salários e pensões, o aumento de impostos e a nova lei das rendas. Permanece o desânimo, mas ao contrário do 12 de Março de 2011, este agora não se expressa apenas sob a forma de indignação mas também de revolta. Podemo-lo constatar quer no 15 de Setembro quer no 2 de Março, mas também em qualquer viagem de autocarro ou numa mesa de café. Permanecem e multiplicam-se os coletivos que convocam e organizam ações de protesto quase diários (como as “grandoladas”), onde o antipartidarismo embora ainda presente, vai cedendo lentamente o passo diante do antitroikismo. Tal como a 12 de Março de 2011 com a canção “Parva que sou” dos Deolinda, a cantiga continua a ser uma arma, mas agora com letras que não dizem apenas diretamente respeito aos jovens precários. O “Acordai” de Lopes Graça e sobretudo a “Grândola, Vila Morena” de José Afonso, pela sua universalidade e intemporalidade, unem pais, filhos e avós e vão derrotando no terreno o novo populismo de direita que pretende criar um conflito entre gerações, a propósito dos direitos (que propositadamente chamam “adquiridos” e não conquistados) dos mais velhos e o desemprego dos mais novos. Mas o que vai mudando no dia a dia, e isto parece-me decisivo, é a relação daqueles que se opõem à Troika e ao seu programa, não só a relação que mantém entre si, mas sobretudo a atitude unitária que vão mantendo em relação a estes protestos. A desconfiança em relação a estas manifestações não terá desaparecido totalmente, mas o certo é que a ela se tem sobreposto o interesse geral de fazer avançar e desenvolver a luta de massas, o que espelha bem que a unidade é demasiado importante para ser desterrada a mera bandeira ou panfleto de propaganda: vai-se construindo diariamente em torno de premissas políticas mínimas e com objectivos concretos. Em síntese, este postura unitária representa a recomposição de um bloco social que se constitui para defender da sua principal conquista histórica: o Estado Social.

A revolta popular, já não apenas a indignação, está aí para quem a quiser ver e sentir e não há regresso aos mercados que a possa serenar. E a revolta do povo, ressalve-se, não tem necessariamente de ser interpretada como algo negativo, desde que a luz ao fundo do túnel se percecione, desde que saibamos construir através dela uma esperança transformadora: uma alternativa. Esse é o nosso trabalho. O medo existe, mas não há por que temê-lo. Afinal este é o tempo que sempre sonhámos viver, o tempo em que vamos erguendo, com dureza é certo, os alicerces da “terra sem amos”.

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Advogado
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