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Uma máscara sobre a tragédia da Ucrânia

Tentem imaginar que milhares de adeptos do Tea Party tinham declarado o governo eleito de Barack Obama demasiado corrupto e ilegítimo para continuar, montando um campo armado no meio de Washington, enquanto reuniam com os líderes chineses e russos, que então começavam a exigir que um “governo de transição” se instalasse na Casa Branca. Por Chris Floyd, CounterPunch
Ianukovich e Obama. Official White House Photo por Pete Souza

Não é segredo que Barack Obama é um dos ilusionistas supremos dos tempos modernos. O seu divórcio entre palavras e atos é tão profundo que chega a ser quase sublime, ultrapassando em muito as mistificações rudes do gangue Bush-Cheney. As irrealidade projetadas por estes eram mais transparentes e, em qualquer caso, foram apenas concebidas para disfarçar de leve as políticas impulsionavam (militarismo, cortes de impostos para os ricos, etc.). Com efeito, os bushistas faziam as suas tiradas como atores entediados no final de um longo percurso, sem se importar se acreditavam neles ou não, desde que conseguissem o que queriam.

Mas Obama elevou essa arte a outro nível. É um artista consumado, esforçando-se por "viver" o seu papel e declamar as suas falas, como se elas fizessem sentido e transmitissem verdade emocional. O que faz não é apenas dourar a agenda conhecida com algumas mentiras atrapalhadas; ao posar como pacificador compassivo, progressista, anti-elitista, está a mascarar uma agenda oculta usando uma vasta gama de artifícios, fazendo esforços enormes para gerar um mundo alternativo que não existe.

Vejam o seu ataque surpreendente a Vladimir Putin por "interferir" na Ucrânia. Que Obama pudesse fazer essa acusação de cara séria — dias depois de os seus próprios agentes terem sido expostos (a gravação infame de "a UE que se lixe") a interferir abertamente na Ucrânia, tentando derrubar um governo democraticamente eleito e colocando os seus próprios favoritos no comando – foi ousadia suficiente. Mas ao acusar Putin daquilo que os americanos estavam exatamente a fazer na Ucrânia, o presidente dos EUA forjou mais um outro mundo alternativo.

Obama declarou unilateralmente que a Ucrânia deve subverter os resultados das eleições de 2010 (que a maioria dos observadores disse serem "livres e justas" em geral – mais até do que as eleições, digamos, nos EUA, onde candidatos derrotados estão por vezes acostumados a tomar o poder de qualquer maneira e onde Estados inteiros impedem ou desencorajam ativamente milhões de cidadãos livres de votar). Pelo contrário, os ucranianos devem instalar um "governo transitório" não eleito em Kiev. Porquê? Porque, diz Obama, agora desviando todos os ucranianos para a sua própria pessoa, "as pessoas obviamente têm para o seu país uma perspetiva e visão muito diferentes" das do governo que elegeram democraticamente. E qual é a sua visão, segundo Obama, o Avatar Ucraniano? Gozar de "liberdade de expressão, liberdade de reunião, eleições livre e justas". Uma coisa que poderíamos pensar que desfrutaram ao ter eleições livres em 2010, e ao exercitar a liberdade de expressão e de reunião de tal forma que foi possível a uma vasta força de oposição ocupar durante meses grande parte do distrito onde está o governo central.

Ora bem, isto não significa, da nossa parte, uma defesa do governo do presidente da Ucrânia Viktor Yanukovich. Trata-se, de todos os pontos de vista, de um empreendimento altamente corrupto, dedicado a usar informação privilegiada em favor de elites bem relacionadas que influenciam a política do governo em benefício próprio. (É verdade que este pode ser um motivo para derrubar um governo democraticamente eleito com uma insurreição armada apoiada por países estrangeiros, mas, fosse eu o presidente americano, deveria ter cuidado ao defendê-lo como regra geral). Mas a realidade na Ucrânia é complexa. As forças de oposição têm uma queixa legítima contra um governo corrupto e de mão pesada. O Kremlin está obviamente a tentar manipular eventos na Ucrânia, tal como os Estados Unidos o estão a fazer. A Ucrânia é polarizada ao longo de várias linhas diferentes – políticas, étnicas, históricas, religiosas, linguísticas – mas estas linhas não são claras e muitas vezes cruzam-se, misturam-se, estão em fluxo. Muitos olham para o ocidente como um modelo, ou mesmo um salvador, embora o acordo da UE que Yanukovich rejeitou, precipitando a revolta, na realidade oferecesse à Ucrânia pouco mais do que servidão financeira ao estilo grego, enquanto o Kremlin, pelo menos, propôs dinheiro vivo. A oposição em si não é um monólito de retidão moral; uma das suas forças motrizes é uma fação ultra-nacionalista que esguicha uma vil retórica anti-semita.

E o facto é que nem um só dos governos ocidentais que agora denuncia a repressão do governo ucraniano teria tolerado uma situação semelhante. Tentem imaginar que milhares de adeptos do Tea Party, por exemplo, tinham declarado o governo eleito de Barack Obama demasiado corrupto e ilegítimo para continuar, montando um campo armado no meio de Washington, ocupando meses a fio o Edifício do Tesouro e o Departamento de Justiça, enquanto reuniam com os líderes chineses e russos, que então começavam a exigir que um “governo de transição” se instalasse na Casa Branca. Qual seria a reação do governo? Não há dúvida de que a sua atuação faria a de Yanukovich parecer um piquenique da catequese.

Portanto, a situação na Ucrânia é multifacetada, complexa, repleta de ambiguidades, mudança, nuance e caos. Mas uma coisa que na Ucrânia não está a acontecer é a fantasia de Barack Obama que vê todo o povo ucraniano a erguer-se para se livrar de um tirano e poder realizar eleições livres e justas. Eles tiveram eleições em 2010, e se todo o povo ucraniano se quer agora livrar do presidente, há eleições livres agendadas para 2015. É provável que o desempenho corrupto e inábil de Yanukovich na presidência — e não menos a sua reação ao movimento de protesto – garantisse a sua derrota pacífica nas urnas no próximo ano. Mas também é provável que estas eleições agora não se realizem. De uma maneira ou outra, Yanukovich será forçado a sair devido ao caos violento que ele, algumas fações da oposição e as maquinações de Moscovo e Washington juntamente produziram. Em qualquer caso está reservado, quase por certo, mais sofrimento desnecessário para os ucranianos comuns.

Esta é a realidade e a tragédia da situação. Mas no mundo artisticamente alucinado de Barack Obama – uma terra da fantasia em que toda a elite política e os média americanos vivem também – nada disso importa. Tudo o que importa é a agenda real: fazer avançar o domínio de uma classe dominante brutal através da manipulação, do militarismo e do engano, sempre que a oportunidade surgir.

Chris Floyd é colunista do CounterPunch. Escreve sobre Bob Dylan na edição atual da revista CounterPunch. O seu blog, Empire Burlesque, pode ser encontrado em www.chris-floyd.com.

Tradução de Paula Sequeiros para o Esquerda.net

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