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“Um Dia chegarei a Sagres”, Nélida Piñon, 2021

“Um Dia chegarei a Sagres” tem como protagonista o povo que sonha e que sofre através de Mateus que narra a sua história. Alguns momentos marcantes põem em confronto os privilégios da Igreja e da Nobreza e a pobreza persistente do Povo. Por Almerinda Bento
“Um Dia chegarei a Sagres”, Nélida Piñon, 2021
“Um Dia chegarei a Sagres”, Nélida Piñon, 2021

Este livro foi-me oferecido pela minha amiga Guilhermina, grande amiga e editora em Portugal de Nélida Piñon, um dos “Amigos e Cúmplices de Lisboa” a quem a autora dedicou este livro. Com tantos livros que vou amontoando e em lista de espera para serem lidos, acabei por iniciar a sua leitura após o anúncio da morte da escritora brasileira de ascendência galega, em finais de 2022. Nélida Piñon foi uma personalidade marcante da cultura e literatura brasileiras, tendo sido a primeira mulher a presidir à Academia Brasileira de Letras em 1966. A sua obra é extensa, tais como são os prémios e galardões com que foi distinguida ao longo da vida.

“Um Dia chegarei a Sagres” é uma odisseia que decorre no século XIX e para a escrita da qual a autora se preparou ao longo de vários anos, tendo sido parcialmente escrita em Portugal. Nas palavras da própria autora “ Cheguei a Portugal sabendo por onde caminhar, mas precisava estar lá pessoalmente para captar a paisagem, os enigmas do povo, os locais onde o sangue foi derramado. Eu precisava descobrir de onde veio esse nosso idioma deslumbrante. Sou valente, audaciosa. Enfrentei a pandemia com a minha literatura”.

Mateus é o centro desta história. Homem do Minho, criado e educado pelo avô Vicente, Mateus tem um sonho. “Um dia chegarei a Sagres” é o mantra que repete ao longo do livro. A narrativa começa com Mateus em Lisboa, pobre, velho e doente, sabendo que já tem pouco tempo de vida e por isso quer contar a sua história.

Sagres foi o sonho, a ambição, mas foi também o local onde deixou os seus fantasmas. Na sua terra natal “a vida reduzia-se à terra, aos animais, ao sexo, ao pão e ao vinho. O sonho fora abolido.” (pág. 58) São, no entanto, o avô e o professor Vasco da Gama, que pela primeira vez lhe falara do Infante D. Henrique, as suas referências de infância, que o levam a ter esse sonho, essa ambição. “Enquanto forcejava o intelecto daqueles alunos a crer na soberania da história, eu acatava os seus preceitos sem resistência. Como sabendo que falava da vida que alguém no passado vivera por mim e que eu agora prosseguia em seu nome.” (pág. 22). “Na cozinha, à noite, perdia-me em conjeturas, de como chegar um dia a Sagres, a pé ou de barco. Ao encontro do Avis…” (pág. 23).

E enquanto não chega esse momento da partida, depois da morte do avô Vicente, a única pessoa que o ligava à terra, é o amor aos animais o único amor que Mateus conhece: a ovelha Antónia, o jumento Jesus, a galinha Filomena. Tal como o avô Jerónimo de Saramago, também o avô Vicente acolhia os animais em casa nas noites de Inverno. “ A morte do jumento doeu-me como nenhuma outra” (pág. 46). Mais tarde, já na viagem de Lisboa a caminho de Sagres adoptará o cão Infante que vai passar a ser o seu melhor amigo.

O amor, a ausência de amor, a inacessibilidade do amor, o sexo e a sexualidade são igualmente temas muito fortes nesta obra. A personagem da mãe Joana que o rejeitou à nascença levam-no a descarregar nas mulheres com quem tem relacionamentos sexuais a falta de amor que nunca recebeu da mãe. O amor por Leocádia tornado inacessível pelo poder controlador da tia Matilde. E a “teia de aranha” (pág. 261) em que o Africano “marcado por um estigma que só eu conheço” (pág. 293) o vai enredando, que o “afligia e atraía ao mesmo tempo” (pág. 262), irmana-o, pois “Minha febre é como a sua. Ambos sofremos.” (pág. 265).

Outras personagens marcam esta história que nos é narrada por Mateus, de que destaco Ambrósio e Amélia, ambas realçadas pela sua personalidade e sobretudo pela coragem em enfrentarem a pobreza e a fome, em muito assemelhando-se aos navegantes. Ambrósio é o alfarrabista que o acolhe na sua casa em Sagres e que compartilha com Mateus a paixão pelo conhecimento e pela história. Amélia, a mulher sem-abrigo que Mateus vai acolher em Lisboa, no final da vida – “a Bárbara reencarnada” que “Morreu para salvar Camões” (pág. 356) – com quem vai aprender “lições de generosidade” (pág. 353) e com quem se vai abrir como nunca antes fizera. “Amélia é a luz do dia. Sei-me vivo graças a ela. Ao deslizar em volta a mim ainda deitado, espera o meu coração se animar. Como querendo ela na sua modéstia apagar as doloridas razões que me expulsaram da paisagem do Algarve e trouxeram-me de volta a Lisboa, junto com meus fantasmas.” (pág. 379)

“Um Dia chegarei a Sagres” tem como protagonista o povo que sonha e que sofre através de Mateus que narra a sua história. Alguns momentos marcantes como os descobrimentos, a figura do Infante e de D. Sebastião, o terramoto de Lisboa, a escravatura no Brasil, os reinados de D. Maria II ou D. Pedro V, põem em confronto os privilégios da Igreja e da Nobreza e a pobreza persistente do Povo. Uma escrita poderosa que revela um domínio perfeito e rico das palavras, fazendo jus ao profundo amor da escritora pela língua portuguesa.

Artigo de Almerinda Bento, publicado em Lendo e escrevendo, a 5 de fevereiro de 2023

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