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Um ano depois, Tribunal ouve educadores de Serralves

Os educadores da Fundação, declarados como falsos recibos verdes pela ACT, confirmaram no Tribunal do Porto que sempre estiveram integrados numa hierarquia, com posto de trabalho e equipamento da instituição. 
Exposição "Deslaçar um tormento" dedicada às obras de Louise Bourgeois, em Serralves desde dezembro de 2020. Foto de Estela Silva, via Lusa.
Exposição "Deslaçar um tormento" dedicada às obras de Louise Bourgeois, em Serralves desde dezembro de 2020. Foto de Estela Silva, via Lusa.

Foi há um ano que a Fundação de Serralves deixou os educadores de artes sem qualquer informação sobre o seu futuro e sem qualquer rendimento, apesar das transferências do Orçamento do Estado para a instituição se terem mantido inalteradas.

Depois de protestos e audições na Assembleia da República para denunciar o problema, a Autoridade para as Condições do Trabalho realizou inspeções entrevistando estes trabalhadores e concluiu que seriam falsos recibos verdes, tendo a Fundação a obrigação de regularizar os seus vínculos. O Ministério Público avançou então com as ações de reconhecimento da existência de contrato de trabalho dos 21 educadores.

Ana Pinho, presidente da Fundação, recusou a sua regularização e avançou para tribunal, no que Inês Soares, representante dos educadores de Serralves, definiu como uma tática para “nos vencer pelo cansaço e pelo dinheiro. Porque nós estamos numa fase de absoluto esgotamento financeiro e emocional”, explicou numa conferência em fevereiro.

A presidente da Fundação não só "recusou qualquer integração ou diálogo com os trabalhadores” como também decidiu “desviar parte do financiamento público e financiamento privado para processos em tribunal”. 

Nas audições no Tribunal do Porto, que tiveram início esta segunda-feira, foram já ouvidos dois dos 21 educadores de artes de Serralves, que confirmaram que desempenhavam funções perante uma hierarquia, nas instalações de Serralves e com equipamento da instituição, três critérios que definem a existência de vínculo laboral.

Os educadores elencaram ainda a existência de formações anuais e de uma agenda semanal com os serviços atribuídos, a exibição de uma identificação com o seu nome e função, o acesso a palavras-passe na biblioteca, descontos no bar e loja, assim como a senhas de refeição, aquando de determinadas atividades.

Na audição da primeira de quatro ações para que Serralves assuma os vínculos laborais com estes trabalhadores, Paula do Vale, na fundação desde 2016, contou que anualmente tinha de manifestar a sua disponibilidade, nomeadamente os dias e horas em que podia exercer funções em Serralves, relata a Agência Lusa.

Paula confirmou ainda que os educadores tinham de estar disponíveis para trabalhar pelo menos três dias por semana ou um conjunto de seis manhãs ou tardes, uma disponibilidade com base na qual a instituição elaborava e enviava uma escala com a atribuição dos serviços aos respetivos educadores que, em caso de ausência ou necessidade de troca, tinham de pedir autorização e justificar, afirmou.

Além disso, o material e equipamento que usava nas atividades era da fundação e, para o utilizar, tinha de pedir autorização. Paula Vale confirmou ainda ter acesso às palavras-passe para requisitar livros na biblioteca e a descontos no bar, loja e livraria, e a senhas de almoço, em eventos específicos.

Por seu lado, José Costa, em Serralves desde 2017, ressalvou que, dado a atribuição de serviços ser semanal, não podia aceitar serviços “fora de Serralves”. Com 97% dos seus rendimentos provenientes desta atividade, o trabalhador relatou ter o seu nome em várias brochuras de atividades, depois distribuídas ao público. Recebia mensalmente por transferência bancária, sendo o valor variado e em função das atividades que havia realizado naquele mês. “Cada atividade tinha honorários diferentes”, frisou.

A inspetora da Autoridade para as Condições do Trabalho, Susana Carneiro, esclareceu que estes 21 educadores são um “falso recibo verde” porque estão integrados numa estrutura hierárquica e tinham de manifestar disponibilidade de pelo menos três dias semanais, Serralves era a sua principal fonte de rendimento e usavam as instalações e equipamentos da instituição. 

A primeira ação, que hoje teve início no tribunal, reporta-se a apenas dois dos educadores, estando o julgamento dos restantes casos agendado para os dias 11 (sete trabalhadores), 15 (cinco) e 25 (sete) deste mês. Os responsáveis de Serralves serão ouvidos posteriormente pelo tribunal.

Trabalhar em Serralves é “tortura psicológica”

A Rádio Renascença, que acompanhou a sessão no Tribunal do Porto, recolheu declarações de vários trabalhadores precários da instituição. Entre eles, António (nome fictício), falou sob anonimato por temer represálias da administração de Ana Pinho.

António trabalhava como rececionista até ao início da pandemia, em março de 2020, e está em casa desde então. Vai sobrevivendo à custa de atividades em regime de freelancer, uma vez que “a maior parte dos meus rendimentos vem de Serralves”, escreve a Renascença.

“Ainda espero voltar”, diz, embora reconheça que o seu posto de trabalho pode estar em perigo por denunciar aquilo que, no seu entendimento, é “uma tortura psicológica diária”.

“Muitos de nós gostaríamos de estar aqui a falar consigo, mas tenho colegas meus que nunca quererão falar consigo. Neste momento, falar consigo é um risco, porque se eles sonham eu sou despedido na hora”, receia.

António conta que a função do rececionista é “vender bilhetes e dar informações aos visitantes de Serralves, sobretudo turistas”. Mas isso é, segundo afirma, “a ponta do icebergue de tudo aquilo que fazemos”.

Apesar de receber o salário mínimo, “é normal dar apoio a eventos, realizar trabalho administrativo – como emissão de faturas para escolas, quando nós temos um serviço financeiro para tratar dessas coisas”.

António e todo o pessoal que presta serviço como assistente de sala ou rececionista é contratado pela Fundação de Serralves a uma empresa de trabalho temporário que disponibiliza pessoal em função das necessidades elencadas. Mas, explica António, seria impossível manter o funcionamento da instituição nos moldes atuais sem a contratação de elementos externos à Fundação: "assistentes de sala e rececionistas são externos, segurança são externos, pessoal de limpeza é externo", diz.

Apesar de serem obrigados a desempenhar funções que não são as suas, “se fazemos alguma coisa errada enquanto executamos o trabalho que devia ser feito por outras pessoas, recebemos ameaças e berros", descreve.

Confrontada pela Renascença, a administração de Ana Pinho declara que "não compete a Serralves estar a pronunciar-se sobre relações laborais, ou outras, entre estes e a sua entidade patronal ou contratante".

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