Para alguns, a resposta é óbvia: as dívidas devem sempre ser reembolsadas, não havendo alternativa à penitência, especialmente quando está escrito no mármore dos tratados europeus. No entanto, basta olhar para a história das dívidas públicas, assunto fascinante e injustamente negligenciado, para notar que as coisas são bem mais complexas.
Primeira boa notícia: houve, no passado, dívidas públicas maiores que as de hoje e sempre foi possível superá-las, recorrendo a uma grande diversidade de métodos. Podemos distinguir, de um lado, o método lento, que visa acumular pacientemente excedentes orçamentais para, gradualmente, pagar os juros e o principal da dívida. Por outro lado, há uma série de métodos que visam acelerar o processo: inflação, impostos excecionais, ou anulação pura e simples.
Um caso particularmente interessante é o da Alemanha e da França em 1945, quando os dois países se encontraram com dívidas públicas da ordem de dois anos de produto interno bruto (200% do PIB), ou seja, níveis maiores de endividamento do que os da Grécia ou da Itália hoje. No início dos anos 1950, porém, aquela dívida tinha caído para menos de 30% do PIB. Evidentemente, uma redução tão rápida jamais teria sido possível com a acumulação de excedentes orçamentais. Ambos os países utilizaram, em vez disso, toda a panóplia de métodos rápidos. A inflação, muito alta dos dois lados do Reno entre 1945 e 1950, desempenha o papel central. Com a libertação, a França também institui um imposto excecional sobre o capital privado, atingindo 25% sobre os grandes patrimónios, e até 100% nos maiores casos de enriquecimento ocorridos entre 1940 e 1945.
Os dois países também utilizaram diversas formas de “reestruturação da dívida”, nome técnico dado pelo mercado para a anulação pura e simples da totalidade ou de parte da dívida (também chamada, de forma mais prosaica, de haircut). Como, por exemplo, nos famosos acordos de Londres de 1953, quando foi anulada a maior parte da dívida externa alemã. Foram estes métodos rápidos de redução da dívida – incluindo a inflação – que permitiram à França e à Alemanha iniciar a reconstrução e retomar o crescimento no pós-guerra, sem o fardo da dívida. Foi assim que estes dois países puderam, nos anos 1950 e 1960, investir em infraestruturas públicas, na educação e no desenvolvimento. E são estes mesmos dois países que explicam hoje ao sul da Europa que as dívidas públicas devem ser pagas até ao último euro, sem inflação e sem medidas excecionais.
Atualmente, a Grécia estará com um leve superavit primário: os gregos pagam um pouco mais de impostos do que recebem nas despesas públicas. De acordo com os acordos europeus de 2012, a Grécia deverá destinar um enorme superavit de 4% do PIB ao longo de décadas para pagar as suas dívidas. Trata-se de uma estratégia absurda, que a França e a Alemanha nunca aplicaram a si próprias.
Nesta amnésia histórica extraordinária, a Alemanha tem, obviamente, uma enorme responsabilidade. Mas as suas decisões nunca teriam sido adotadas sem a aprovação da França. Os sucessivos governos franceses, de direita e depois de esquerda, mostraram-se incapazes de reconhecer a complexidade da situação e propor uma verdadeira refundação democrática da Europa.
Com o seu egoísmo míope, Alemanha e França maltratam o sul da Europa e, dessa forma, maltratam-se a si próprias. Com dívidas públicas a aproximar-se de 100% do PIB, inflação zero e baixo crescimento, os dois países também levarão décadas para recuperar a capacidade de agir e investir no futuro. O mais absurdo é que, em 2015, as dívidas europeias são essencialmente dívidas internas, assim como em 1945. As detenções de dívida cruzadas entre os países atingiram de facto proporções inéditas: os bancos franceses detêm uma parte das dívidas alemã e italiana, e as instituições financeiras alemãs e italianas possuem uma boa parte da dívida francesa, e assim por diante. Mas se considerarmos a área do euro como um todo, nós possuímos a nós mesmos. E mais: os ativos financeiros detidos por nós fora da zona euro são maiores do que os detidos pelo resto do mundo na zona euro.
Mais do que continuar a reembolsar as nossas dívidas a nós mesmos durante décadas, depende apenas de nós organizar-mo-nos de forma diferente.
Artigo de Thomas Piketty, diretor de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e professor da École d’économie de Paris, publicado no jornal Libération e traduzido por Clarisse Meireles para Carta Maior