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As taxas moderadoras "não trazem qualquer ganho em saúde"

Os médicos Ana Campos, Afonso Moreira e António Rodrigues participaram na terceira e última parte da série de entrevistas sobre o Serviço Nacional de Saúde. Nesta edição, falaram sobre taxas moderadoras, administração hospitalar, participação cidadã na saúde e os numeros clausus nos cursos de medicina.
As taxas moderadoras "não trazem qualquer ganho em saúde"
Foto de Paulete Matos.

Por ocasião do debate sobre a revisão da Lei de Bases da Saúde, o esquerda.net entrevistou vários profissionais de saúde. Publicamos hoje a terceira e última parte desta série (poderá consultar aqui a primeira e segunda fases). Colaboraram connosco Ana Campos, médica de ginecologia e obstetrícia, o médico interno de saúde pública e representante do movimento MiN! - Médicos indiferenciados, Não!, Afonso Moreira, e o médico de medicina geral e familiar, António Rodrigues.

1. As taxas moderadoras têm alguma utilidade ou devem acabar?

Ana Campos: Desde 1992 que estão instituídas em Portugal taxas moderadoras (Decreto‐Lei n.° 54/92 de 11 de abril), que se aplicam à prestação de cuidados de saúde nas consultas, urgências hospitalares e centros de saúde e meios complementares de diagnóstico e terapêutica. Os seus valores dependem do tipo de cuidado de saúde prestado, estando desde sempre definidas as situações em que havia isenção: grávidas, crianças até 12 anos, pensionistas e portadores de doenças crónicas, bem como as situações em que são feitos rastreios populacionais. A justificação utilizada para o incremento das taxas tem vindo a variar: apoiar a sustentabilidade do SNS foi o primeiro argumento. A partir de 2011 (Decreto-Lei n.º 113/2011, de 29 de Novembro e Portaria n.º 306-A/2011 de 20 de Dezembro), a justificação invocada foi a de que a assinatura do Memorando de Entendimento obrigaria a medidas especiais de contenção no SNS, quer no acesso, quer nos benefícios, tendo havido revisão do regime das taxas moderadoras, com aumento da comparticipação individual e redução dos beneficiários da isenção. A revisão que entrou em vigor no início de 2012, foi apresentada como de racionalização das despesas, ou seja, ao contrário do conceito anterior, pretendia a atual redação reduzir os acessos, com a justificação de que os recursos eram escassos e portanto deveriam ser racionalizados. O actual Governo, no DL n.º 131/2017, publicado no dia 10 de outubro, em Diário da República, reviu algumas situações mais gritantes, mas manteve as taxas moderadoras. Os vários estudos sobre as taxas moderadoras consideram que o seu efeito como financiador do SNS sempre foi profundamente marginal (entre 1 a 1,1%) e os propósitos de redução de acessos tiveram resultados díspares – cidadãos de baixos recursos e que por esse motivo pagavam menos ou estavam isentos, reduziram o seu acesso a urgências e a consultas de cuidados primários, não tendo contudo havido redução nos cuidados hospitalares. Ao mesmo tempo, alguns estudos de 2011 e 2012 revelam que os utentes do SNS chegavam em situação de saúde mais grave. Portanto, os efeitos de moderação das taxas não trazem qualquer ganho em saúde, diferenciam os que podem pagar dos que não podem pagar e não apresentam qualquer ganho sustentável para o SNS. Como tal, devem acabar*.

Só com eleições entre pares e com critérios claros de seleção será possível conferir ao SNS o espírito democrático que lhe está em falta - Afonso Moreira

Afonso Moreira: Barreiras financeiras tais como as taxas moderadoras atentam contra o direito fundamental de acessibilidade aos cuidados de saúde. Se é certo que é do interesse comum que haja uma diminuição do recurso desnecessário e abusivo aos serviços de saúde, nomeadamente no que toca às urgências hospitalares, vários investigadores têm apontado que a implementação de taxas moderadoras nem sempre resulta numa diminuição dessa procura e pode até mesmo originar uma "poverty trap" (ciclo vicioso de pobreza), com impactos desastrosos na saúde e nas condições de vida da população. Ao invés de barreiras monetárias, é necessário promover a educação e o acesso à informação, medidas que já provaram ter efeitos positivos na melhoria dos hábitos de vida saudáveis e na eficiência com que os utentes recorrem aos serviços de saúde.

António Rodrigues: Devem acabar! Isto porque não há evidência que confirme que elas tenham dissuadido a utilização desnecessária de cuidados de saúde. Ao contrário, sugere que têm vindo a restringir utilização necessária. Daí que importe refletir-se sobre se será aceitável moderar-se, através de uma taxa, algo que não seja um bem transacionável, de natureza utilitária. Por outro lado, a receita gerada pelas taxas moderadoras é diminuta quando comparada com a despesa global do SNS. A confirmá-lo, atente-se a Síntese da Execução Orçamental de Agosto de 2011, elaborada pela Direção Geral do Orçamento que aponta para, entre janeiro e junho de 2011, um valor de não mais que 1,1% dessa despesa, o que representa pouco menos de 105 milhões de euros, para uma despesa total de 9 590,7 milhões de euros, no ano de 2011 (últimos dados disponíveis). O fim das taxas moderadoras é, de resto, um dos pontos incontornáveis da proposta de Nova Lei de Bases da Saúde recentemente apresentada por António Arnaut e João Semedo, proposta esta que subscrevo, integralmente.
 

2. Os administradores dos hospitais e centros de saúde devem ser escolhidos por concurso ou pelo Ministro da Saúde como agora acontece?

Ana Campos: Desde as normas de gestão que foram impostas com a empresarialização e constituição dos chamados “Hospitais empresa”, a gestão passou a ser de escolha ministerial, o que sucedeu que, em alguns hospitais, a cessação de funções de um ministro podia levar à substituição da equipa de gestão. Os administradores hospitalares eram inicialmente colocados por concurso, mas também muito por escolha. Todos os órgãos eram sempre ratificados pelo Ministério. Desde início dos anos 90, as normas de gestão hospitalar mudaram, em nome da eficiência e melhor gestão e o Conselho de Administração (Presidente, vogal e enfermeira diretora) passaram a ser nomeados diretamente pelo Ministério da Saúde, sem hipótese de escolha. Só em relação ao diretor clínico, e posteriormente à/ao enfermeira/o diretora/or, a sua nomeação surgia após escolha pelos seu pares. A mudança desta possibilidade foi justificada porque os diretores clínicos, eleitos pelos seus pares, dificultariam a harmonia do conselho de gestão, obstaculizando algumas medidas e dificultando assim projetos ou atos de gestão com que não estivessem de acordo. Por vezes, na atual gestão, os diretores clínicos ou enfermeiros diretores até vêm de fora da instituição que dirigem. Serão “pessoas da confiança” do Conselho de Administração e são habitualmente a terceira e quarta pessoa na hierarquia de um Conselho de Administração, atrás do Presidente do Conselho de administração e do Vogal, que é também um administrador hospitalar. Portanto, verificou-se com estas normas a subalternização do papel, função na direção e importância relativa dos elementos do corpo de enfermagem ou clínico. A minha experiência é sobretudo na atividade hospitalar e aqui, a elevada preponderância que os gestores dos hospitais adquiriram origina que decisões consideradas menos adequadas pelos profissionais tenham mais dificuldade em ser implementadas. Estes são fatores importantes que contribuem para o descontentamento, mau ambiente e muitas vezes menor interesse por parte dos clínicos e enfermeiros com o que se passa no hospital e com os seus resultados. Foi uma decisão errada, que em nada contribuiu para uma melhoria do ambiente nos hospitais e deveria ser revertida, sobretudo no que diz respeito à escolha do/a médico/a ou enfermeiro/a. Quanto aos restantes órgãos de gestão hospitalar, uma das formas de permitir uma equipa mais homogénea e empenhada seria a possibilidade de a equipa se constituir com um programa próprio, com objetivos de curto e longo prazo em relação à actividade institucional, tendo também o dever de estabelecer as interações necessárias para uma melhor eficiência e ganhos em saúde com a população.

Os efeitos de moderação das taxas não trazem qualquer ganho em saúde, diferenciam os que podem pagar dos que não podem pagar e não apresentam qualquer ganho sustentável para o SNS - Ana Campos

Afonso Moreira: A melhor maneira de envolver todos os profissionais na construção "de baixo para cima" das instituições públicas de saúde é ter mecanismos justos de escolha dos seus dirigentes. Só com eleições entre pares e com critérios claros de seleção será possível conferir ao SNS o espírito democrático que lhe está em falta.

António Rodrigues: Os sistemas de saúde e as organizações que os integram são das mais complexas formas de organização das sociedades contemporâneas. Logo, as competências dos seus quadros dirigentes deverá obedecer a critérios de seleção explícitos e tão exigentes quanto rigorosos. Trata-se de dirigentes que devem executar Políticas (com maiúscula), não de defini-las. E executá-las com a noção de que lidam com organizações complexas, integradas por um vasto leque de áreas do conhecimento. Daí que, geri-las bem, imponha o envolvimento pleno dos detentores desse conhecimento, leia-se, os prestadores diretos dos cuidados de saúde – médicos, farmacêuticos, enfermeiros, psicólogos e tantos outros técnicos altamente qualificados e especializados. Basta que se retenha este dado: no Ministério da Saúde e no Serviço Nacional de Saúde, 65% dos seus profissionais, possuam formações académicas iguais ou superiores a curso superior (Relatório Social do Ministério da Saúde e do SNS – 2016). Ora, este quadro de sofisticação técnica e organizacional não se compadece com a nomeação de meros comissários políticos, a mais das vezes não competentes e movidos, apenas, por pequenos interesses “politiqueiros”, quantas vezes inconfessados. Daí que o que faz sentido, em minha opinião, é a sua seleção por concurso público. E a CRESAP, a este nível, tem ficado muito aquém do que seria exigível… Por outro lado, não se devem selecionar dirigentes a título individual. Deve, isso sim, fazer-se a seleção de equipas dirigentes, como um todo, com base na análise curricular de cada um dos seus membros e do plano estratégico que propõem para a organização a cuja gestão se candidatam.

Há hoje uma patente falta de médicos em exercício, em Portugal, nomeadamente no SNS. Como tal, o desemprego médico atual constitui uma situação injustificada e perfidamente induzida, a todos os títulos insustentável - António Rodrigues

3. Em que moldes se devia processar a participação dos cidadãos e da comunidade na gestão dos serviços de saúde, nomeadamente, dos centros de saúde?

Ana Campos: Creio que teoricamente as estruturas de Junta de Freguesia ou Câmara têm ou tinham lugar numa estrutura denominada Conselho Geral dos Hospital que reunia poucas vezes por ano e que, nos anos mais recentes, deixou de funcionar/existir. Naturalmente que seria importante, sobretudo nos cuidados primários, que houvesse articulação com estruturas de serviço social e de ensino (creches e escolas),o que permitiria articulação de campanhas de prevenção e de educação para a saúde em relação a uma série de temas, bem como a criação de uma mais vasta rede de apoio social. Para além dos temas de saúde que seriam temas de interesse por parte das instituições de saúde, a participação dos utentes em decisão sobre questões de funcionamento seriam importantes: horários, acessibilidades, etc. Questões destas fazem habitualmente parte de planos de ação de autarquias, mas poucas vezes são acompanhadas pelas autarquias em interligação com as estruturas de saúde.

Afonso Moreira: Os cuidados de saúde primários têm que estar abertos à participação das comissões de utentes na sua gestão. O envolvimento dos cidadãos e cidadãs nestas estruturas, assim como em outros grupos alargados e abertos à comunidade (à semelhança do Grupo Local de Promoção de Saúde - GLoPS, coordenado pela Unidade de Saúde Pública onde trabalho) é uma base essencial na construção de políticas de saúde direcionadas para os problemas particulares das populações.

António Rodrigues: Se o decreto-lei que criou os Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS) - Decreto-Lei n.º 28/2008 - estivesse a ser respeitado, o que de todo não acontece, aí encontraríamos algumas boas respostas. Nele, pode ler-se (artigo 23.º) que do conselho executivo dos ACeS deve fazer parte o presidente do conselho da comunidade, a quem se juntam o presidente do conselho clínico e o diretor executivo, que preside. E que compete a este conselho executivo aprovar os planos de atividades com as respetivas dotações orçamentais; elaborar o relatório atividades; elaborar o regulamento interno; assegurar a articulação do ACES, em matérias de saúde, com os municípios da sua área geográfica; celebrar protocolos de colaboração ou apoio e contratos de prestação de serviços com outras entidades, nomeadamente com as autarquias locais; promover a divulgação pública de informações sobre os serviços prestados, os planos e relatórios de atividades e os pareceres dados sobre eles pelo conselho da comunidade, de indicadores de satisfação dos utentes e dos profissionais e de projetos de qualidade. No artigo 31.º, por sua vez, é contemplado que o Conselho da Comunidade é presido por um representante indicado pelas câmaras municipais da área de atuação do ACES; um representante de cada município abrangido pelo ACES, designado pelas respetivas assembleias municipais; um representante do centro distrital de segurança social; um representante das escolas ou agrupamentos de escolas; um representante das instituições particulares de solidariedade social; um representante da associação de utentes; um representante das associações sindicais; um representante das associações de empregadores; um representante do hospital de referência; um representante das equipas de voluntariado social e um representante da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens. E compete a este conselho dar parecer sobre os planos de atividades e respetivos orçamentos; acompanhar a execução desses planos de atividade; alertar o diretor executivo para factos reveladores de deficiências graves na prestação de cuidados de saúde; dar parecer sobre o relatório atividades e a conta de gerência; assegurar a articulação do ACES, em matérias de saúde, com os municípios da sua área geográfica; propor ações de educação e promoção da saúde e de combate à doença a realizar pelo ACES em parceria com os municípios e demais instituições representadas no conselho da comunidade; dinamizar associações e redes de utentes promotoras de equipas de voluntariado. É pouco? Será, talvez… Mas estivesse o referido decreto-lei a ser cumprido e já teríamos um grande salto em frente. Daí que, e para já, afirme: cumpra-se a lei!

Tendo nós vivido durante anos a dizerem-nos que havia médicos a mais, com numeros clausus impostos, e de repente aparece o sobressalto de que… afinal faltavam médicos, pelo menos em algumas especialidades - Ana Campos

4. Há quem diga que temos médicos a mais e que os jovens licenciados correm o risco de ficar no desemprego. Considera necessário reduzir o número de estudantes que anualmente entram para as faculdades de medicina?

Ana Campos: É comum dizer-se em Portugal uma destas coisas: “temos médicos a mais/ temos médicos a menos/ temos um número adequado de médicos, mas eles estão mal distribuídos”. Não se diz uma coisa muito importante: quantos médicos estão no setor público, para vigiar um universo de doentes X, com a idade Y e com a diferenciação Z. Quantos médicos estão no setor privado, suas idades e horizonte de patologias e gravidade das mesmas. E o que vemos é que, desde o aparecimento das unidades de saúde privadas de maiores dimensões nas grandes cidades (Lisboa, Porto e Algarve), os hospitais públicos ficaram desprovidos de médicos com diferenciação recente (recém-especialistas) em comparação com os privados e desapareceram também dos hospitais públicos os médicos com idade média entre 35 e 45 anos. Estes dois grupos sustentam a continuidade e o futuro dos hospitais. Estes erros ou premeditações por parte dos decisores em Saúde nos últimos 10 anos vão trazer nos próximos anos uma enorme dificuldade ao setor público: não vai haver médicos com experiência e com capacidade para responder à cada vez mais difícil tarefa imposta aos hospitais públicos, o tratamento das situações crónicas, com maior gravidade ou com maior complexidade. Nas cidades do litoral (Lisboa, Porto) e no setor público, estão os médicos em formação e os especialistas com mais de 50 anos, que também estão nos serviços privados, mas em tempo parcial, ou extra horário. No interior, cada vez é menor o número de médicos e as urgências hospitalares conseguem-se à custa de tarefeiros, verdadeiros mercenários da medicina, que podem correr metade do país num fim-de-semana e têm um salário nesses dois dias que é superior ao que ganham num mês no hospital. Tudo isto porque se estabeleceu uma diferença salarial, de condições de trabalho entre privado e público, que faz a cobiça dos que permanecem no público, e os privados sabem isso, e sabem bem explorar esta situação: gabam-se de ter mão-de-obra com excelente formação, a custo zero… Há cada vez mais dificuldade em fixar médicos jovens no interior e as estratégias usadas não têm dado resultados. Há cada vez mais dificuldade em dar formação nos hospitais públicos aos estudantes de Medicina e por isso os hospitais privados já estão a participar nessa formação, não sem as contrapartidas que considerarem importantes, estando em negociação a constituição, provavelmente a muito curto prazo, de uma universidade privada de medicina. A visão atual para a saúde é a de que ela deve ser mais personalizada, mas ao mesmo tempo admitem-se consultas, pedidos de exames e receitas on-line, ou seja, desvirtuando todo o conceito holístico da relação médico-doente/utente, em que a presença física, o observar, o palpar continua a ser um dado importante em cada ato médico. A ideia de acompanhamento do doente é muito mais afastada fisicamente dele, o que pode fazer falhar algumas observações e diagnósticos, nomeadamente toda a reação do doente ao que lhe é dito, ao que lhe é feito, etc. Mas quem advoga como inevitável essa mudança de paradigma, ou seja a prestação de cuidados de forma digital (Luis Filipe Pereira, na conferência “seguros, desafios de saúde”, promovido pela Advance Care e publicada no Expresso Economia em 26-06-2017) também admite que isto vai custar mais e que o suporte destes gastos não deve ser feito totalmente à custa do Estado. Os privados podem e devem contribuir… Assim pensa Luís Filipe Pereira, o introdutor das parcerias público-privadas, um gestor de seguradoras e um dos grandes defensores do papel mais ativo das seguradoras na saúde e do direito de escolha do doente, entre o público e privado. Falta dizer que as seguradoras não são para todos e nem para todas as bolsas e que depois, quando não pagam mais, por excesso de custo de doença e dos tratamentos, há que contar sempre com a alavanca do Estado e há sempre a possibilidade de transferência para o hospital público. Têm sido feitos vários estudos sobre a demografia médica em Portugal, mas estudos semelhantes têm-se revelado falíveis, tendo nós vivido durante anos a dizerem-nos que havia médicos a mais, com numeros clausus impostos e de repente aparece o sobressalto de que… afinal faltavam médicos, pelo menos em algumas especialidades (cuidados primários). Todos os estudos constatam uma verdade insofismável: como consequência do tempo de duração dos números clausus, agora existe uma distribuição muito particular de médicos, envelhecida, com um terço dos médicos, agora em idade ativa, que podem deixar de trabalhar em 2025 (estudo publicado em 2014, na Acta Médica Portuguesa). A formação específica dos médicos leva 10-11 anos, no mínimo. A avaliação das necessidades em especialidades médicas não é feita tendo em conta diferentes cenários e as escolhas de alguns podem ser por verdadeira vocação; quando são contrariadas, há sempre o recurso ao estrangeiro. A mais recente tendência é que, para os próximos anos, até 2025, poderá haver um excedente de médicos que não terão lugar para atividade em Portugal. Por isso, muitos dos estudantes de medicina, quando questionados, põem a hipótese de ir trabalhar para fora. Com falta de médicos nos cuidados primários e com estudos que põem a idade da reforma nos 70 anos, quando ela ocorre a maior parte das vezes antes dessa idade, os diferentes cenários poderão errar substancialmente, sobretudo se novas unidades privadas de saúde surgirem, com a capacidade de atração que lhes é inerente, mantendo-se constante a necessidade de médicos de cuidados primários já que, de momento o setor privado não está ainda vocacionado para os cuidados primários de saúde. O estudo de 2014 da Ordem dos Médicos mostra um desajustamento entre a capacidade formativa de especialistas e a sua empregabilidade posterior, podendo pelo menos 3000 médicos não ter lugar para trabalhar em Portugal, havendo necessidades diferentes para as diferentes especialidades. Mas o texto mantém um potencial de incerteza grande quanto à segurança dos modelos utilizados.

 

Afonso Moreira: Sejamos claros, há uma clara ausência de planeamento dos recursos humanos do SNS desde há vários anos. Negar essa realidade é negar um problema estruturante e contribuir para a perpetuação do problema, que tem levado à criação sistemática de médicos sem especialidade. Esta precarização de mais uma classe profissional coloca em risco a saúde dos utentes e necessita de ser contrariada com soluções de planeamento a longo prazo, o que só é possível com a criação de uma estrutura em que haja coordenação entre o Ministério da Saúde e o Ministério do Ensino Superior. Infelizmente, apesar do PS dizer que é preciso planear, ainda não apresentou qualquer proposta para este fim, tendo até aprovado um novo regime do internato médico que agrava a situação. Qualquer limitação do número de vagas, seja ao nível da faculdade ou das especialidades médicas, deverá ser ter como objetivos a qualidade da formação e a qualidade dos cuidados de saúde prestados aos utentes do SNS.

António Rodrigues: Dos 50 239 médicos registados na Ordem em 2016 (Pordata), só 27 618 trabalhavam no SNS – 17 800 especialistas e 8 402 internos, a que se acrescentavam 1 416 colocados nas PPP (Relatório Social do Ministério da Saúde e do SNS – 2016). Temos, deste modo, 22 681 médicos que não trabalham no SNS – cerca de 45% do total. Se é verdade que alguns destes exercem exclusivamente no setor privado (segundo o Bastonário da OM já serão cerca de 12 000), a verdade, também, é que aqui se inclui um número substancial de médicos já sem desempenho profissional regular (os aposentados), mas que permanecem inscritos na sua Ordem. A que se acrescentam, só nos últimos três anos, os mais de 1 000 médicos que foram forçados a emigrar (Público, 11 de dezembro de 2017), sendo que nos últimos cinco, este valor apontará para cerca de 3 500. Por outro lado, se considerarmos que a idade média dos especialistas, no SNS, ainda em 2016, era de 50 anos, fácil se torna perceber o vultuoso número de aposentações que ocorrerão nos anos que se avizinham. O SNS tem uma população médica fortemente envelhecida e a precisar, urgentemente, do “refrescamento” dos seus quadros. À carência global de médicos no SNS, quer se trate dos hospitais, quer dos centros de saúde, junta-se este dado incontornável que é o envelhecimento e a decorrente aposentação iminente. Daí que, a investir-se a sério no Serviço Nacional de Saúde, invertendo-se o ciclo do seu definhamento, haja lugar para a contratação de muitos novos médicos que assegurem a sua continuidade. Estima-se que, atualmente, faltarão no SNS cerca de 5 000 médicos. Para a sustentabilidade do SNS, tão crítico como o seu subfinanciamento é já hoje a necessidade de se assegurar, enquanto é tempo, a passagem das competências dos seniores para as jovens gerações. Em suma: há hoje uma patente falta de médicos em exercício, em Portugal, nomeadamente no SNS. Como tal, o desemprego médico atual constitui uma situação injustificada e perfidamente induzida, a todos os títulos insustentável.
 

Referências bibliográficas de Ana Campos


* - Quintal C , Tavares H,Lourenço O,. Impacto das taxas moderadoras sobre a utilização de cuidados de saúde pediátricos: estudo aplicado a crianças em idade escolar na cidade de Coimbra. Impact of moderating fees on utilisation of paediatric health care: Study applied to school age children in the city of Coimbra. Revista Portuguesa de Saúde Pública , 34-2 (2016) pp.154-162

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- Portugal. Ministério da Saúde. Direção Geral de Saúde. Plano Nacional de Saúde 2012‐2016. Lisboa: DGS; 2012.

P.P. Barros. Health policy reforms in tough times: The case of Portugal Health Policy., 106 (2012), pp. 17-22 http://dx.doi.org/10.1016/j.healthpol.2012.04.008 Medline

- Portugal. Ministério da Saúde. Entidade Reguladora da Saúde. O novo regime jurídico das taxas moderadoras. Porto: ERS; 2013.

- Portugal. Ministério da Saúde. ERS. O novo regimejurídico das taxas moderadoras. Lisboa: ERS;2017

- CAMPOS, A. C. – Taxas moderadoras : dissuasão e restrição : crise da solidariedade ou crise do sistema de financiamento? Revista Portuguesa de Saúde Pública. Volume temático 8:1 (Janeiro/Março 1990) 13-17.

ERS. ENTIDADE REGULADORA DA SAÚDE - Análise da sustentabilidade financeira do serviço nacional de saúde. 29 de setembro de 2011.

Santana P, Peixoto P, Duarte N. Demografia Médica em Portugal: Análise Prospetiva

Demography of Physicians in Portugal: Prospective Analysis. Acta Med Port 2014 Mar-Apr;27(2):246-251

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