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Sombras em tempos de crash

Neste resumo da intervenção que farão na Conferência dos 200 anos de Marx, Francisco Louçã e Michael Ash falam sobre o colapso de instituições financeiras e dos subsequentes danos feitos à economia real e à sociedade, aos trabalhadores e às famílias, aos orçamentos públicos e ao Estado social.
Fotografia da UMass Amherst
Fotografia da UMass Amherst

Em cinco meses, de março a setembro de 2008, oito das maiores instituições financeiras dos Estados Unidos colapsaram: as veneráveis empresas comerciais Bear Stearns e Lehman Brothers; o novo entrante diversificado da indústria de seguros AIG; os arrivistas conflituosos IndyMac, Washington Mutual e Wachovia; e as entidades parapúblicas Fannie Mae e Freddie Mac. A crise expandiu rapidamente para a Europa, primeiro no Reino Unido e depois no continente. As reestruturações da banca e os resgates continuaram até 2017. Os danos feitos à economia real e à sociedade, aos trabalhadores e às famílias, aos orçamentos públicos e aos Estados social e às instituições políticas, ainda ecoam.

Citando a pergunta da Rainha de Inglaterra sobre a chegada da crise: “Porque é que ninguém reparou?”

Do período pós-guerra até à década de 1970, os bancos comerciais eram as instituições exclusivas que intermediavam as relações entre os aforradores e os mutuários, juntando as poupanças de pessoas comuns e dando crédito a empresas para investimentos físicos. Algumas empresas utilizaram exclusivamente os seus lucros retidos para pagarem o investimento físico, não tendo sequer recorrido aos bancos/à banca. Contudo, a liberalização do sistema financeiro substituiu os lucros retidos e a ligação direta existente entre aforradores e mutuários providenciada por um único banco por canais longos e complexos de crédito mediado por mercados financeiros – finança sombra. De cerca de 5% da criação de crédito que ocorre na forma de mercado em 1945, os bancos-sombra constituíam mais de 60% de transformação de crédito em 2008, quando a crise começou.

Estas cadeias de crédito foram feitas por, de e para – se não tecnicamente dentro de – bancos. finança não construiu um mundo separado de finança sombra – alargou o sistema bancário a novas dimensões, promovendo a desregulação financeira e a deslocalização da atividade em nome do lucro.A inovação financeira, à medida que o crescimento das cadeias de crédito e instituições relacionadas foi identificado, permitiu a obtenção de maiores lucros e, portanto, maiores riscos.

A inovação financeira distingue-se da inovação industrial, que requer elevados custos irrecuperáveis e incorpora tecnologia em ativos físicos. Por sua vez, a inovação financeira é uma aceleração de disposições contratuais. A inovação financeira não costuma criar nova propriedade física – os edifícios e os equipamentos que constituem a base de produção de uma sociedade – e está limitada a uma vantagem de primeiro interveniente.

Cada inovação financeira tem uma lógica plausível no momento da introdução. Os fundos do mercado monetário oferecem uma taxa de retorno mais atrativa sem perda de liquidez para famílias e pequenas empresas, ao mesmo tempo que permitem que os investidores trabalhem com grandes reservas de dinheiro rapidamente. A securitização renova rapidamente a liquidez para os credores da linha de frente para melhor servir os consumidores e as firmas ao transferir os seus créditos para fora do balanço (enquanto resolve os problemas bicudos dos agendamentos desencontrados de pagamentos). Já os veículos de titularização reduzem as fricções e corroem os spreads ineficientes nos mercados de crédito. Os derivados complexos permitem a reatribuição de risco aos agentes menos avessos, desejosos e capazes de suportá-lo.

Mas a inovação financeira tem outra lógica: taxas de serviço generosas, preços monopolísticos de serviços financeiros e oportunidades para expandir a alavancagem – as principais fontes de rentabilidade da finança. Cada inovação move o nexo da atividade financeira de instituições e empresas para funções e mercados. Cada inovação e cada extensão das já longas cadeias de contração e concessão de empréstimos separa os agentes e aumenta as informações assimétricas. Esta opacidade gera valor para a finança, cultiva o risco e amplifica os picos dos ciclos económicos.

A crise financeira de 2007-2008 ajuda a explicar os efeitos perversos da expansão financeira e económica baseada no que anteriormente se julgou ser dinheiro seguro.

Quando o colapso total chegou, foi um tsunami. O puxão na cadeia fornecido pelo relativamente pequeno mercado de empréstimos sub-prime nos EUA escalou a lista de das inovações financeiras até ao seu início. Grandes bancos e empresas financeiras faliram. Os governos injetaram grandes quantidades de dinheiro e convertam uma enorme dívida privada numa enorme dívida pública. O Reino Unido teve o seu quarto maior aumento na dívida pública desde 1700 (superado apenas pelas guerras mundiais e napoleónicas). A doença financeira espalhou-se rapidamente para o setor real - “da Wall Street à Main Street”. A produção total mundial diminuiu em 2009 pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial.

Não foi a primeira crise a ocorrer nas últimas décadas, mas a crise de 2007-2008 foi o primeiro grande terramoto no núcleo mais desenvolvido da economia global. Desde o início da década de 1970 e o início do regime de inovação financeira, já passámos pela crise da dívida na América Latina na década de 1980; a crise das instituições de poupança e empréstimo dos EUA em 1987-88; a prolongada crise japonesa na década de 1990; novamente na América Latina, a crise mexicana de 1994, seguida pelas crises no Cone Sul da América do Sul, no Brasil em 1998-1999 e na Argentina em 2000-2001; a crise asiática em 1997-1998 (Tailândia, depois Indonésia, Malásia, Filipinas, Hong Kong, Taiwan, Singapura e Coreia do Sul); o colapso dos fundos de investimento de cobertura de longo prazo em 1998, seguido de perto pela reestruturação da dívida russa; e a bolha das empresas .com nos Estados Unidos.

Mas nem todos são iguais quando “nós” falamos de “nós”: as expansões e os colapsos no núcleo foram modulados pela rápida e generosa extensão de liquidez pelos bancos centrais das economias desenvolvidas. Na verdade, os bancos centrais foram tão eficazes na prevenção do contágio de percalços financeiros para a economia real, especialmente a Reserva Federal dos EUA, que esse período chegou a ser conhecido, antes de terminar, como a Grande Moderação. Não foi assim para os outros “nós”: as expansões e os colapsos na periferia arrastaram consigo a atividade real e a finança global e a sua agência de cobrança, o Fundo Monetário Internacional, exigiram dolorosos ajustes estruturais para que os países se qualificassem para a reestruturação de empréstimos e suporte de vida. Depois vieram os choques globais da crise financeira e a crise da zona do euro, e estes foram rápidos e universais, engolindo toda a economia global.

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