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Socialismo ou barbárie, Michael Löwy sobre Rosa Luxemburgo (2ª parte)

Segunda parte do texto de Michael Löwy sobre o pensamento de Rosa Luxemburgo. A primeira parte do artigo foi publicada no sábado, dia 19 de março.

Ao introduzir a expressão “socialismo ou barbárie”, Junius refere-se à autoridade de Engels num escrito de “quarenta anos atrás” (o "Anti-Dühring"): “Friedrich Engels disse certa vez: ‘A sociedade burguesa acha-se num dilema: avanço ao socialismo ou regressão à barbárie’”.[1] Na verdade, o que Engels disse é bastante diferente:

“As forças produtivas engendradas pelo modo de produção capitalista moderno, assim como o sistema de repartição dos bens que criou, entraram em contradição flagrante com o modo de produção em si, e isso a tal grau que se torna necessária uma mudança do modo de produção e de repartição, se não quisermos ver toda a sociedade moderna perecer”.[2]

O argumento de Engels – essencialmente económico e não político, como o de Junius – é bem mais retórico, uma espécie de demonstração por absurdo da necessidade do socialismo, senão a sociedade moderna vai “perecer” – fórmula vaga que não se sabe bem a que se refere. Na verdade, foi Rosa Luxemburgo quem inventou, no sentido pleno da palavra, a expressão “socialismo ou barbárie”, que teria tanto impacto no curso do século XX. Se se refere a Engels, é talvez para tentar dar legitimidade maior a uma tese bastante heterodoxa. Evidentemente, foi a guerra – e o desmoronamento do movimento operário internacional, em agosto de 1914 – que terminou abalando sua convicção na vitória inevitável do socialismo. Nos parágrafos seguintes, Junius desenvolve seu ponto de vista inovador:

“Encontramo-nos hoje, tal como profetizou Engels há uma geração, diante da terrível opção: ou triunfa o imperialismo, provocando a destruição de toda a cultura e, como na Roma Antiga, o despovoamento, a desolação, a degeneração, um imenso cemitério, ou triunfa o socialismo, ou seja, a luta consciente do proletariado internacional contra o imperialismo, os seus métodos, as suas guerras. Tal é o dilema da história universal, a sua alternativa de ferro, a sua balança a oscilar no ponto de equilíbrio, aguardando a decisão do proletariado”.

Pode-se discutir o significado do conceito de “barbárie”: trata-se, sem dúvida, de uma barbárie moderna, “civilizada”, portanto a comparação com a Roma Antiga é pouco útil e, nesse caso, a afirmação da brochura Junius revela-se profética: o fascismo alemão, manifestação suprema da barbárie moderna, resultou da derrota do socialismo. Contudo, o mais importante na fórmula “socialismo ou barbárie” é a palavra “ou”: trata-se do princípio de uma história aberta, de uma alternativa ainda não decidida (pelas “leis da história” ou da economia), que depende, em última análise, de fatores “subjetivos”: a consciência, a decisão, a vontade, a iniciativa, a ação, a práxis revolucionária. Não insisto mais porque escrevi já há muitos anos um artigo sobre essa questão.[3] Como aponta Isabel Loureiro no seu belo livro, é verdade que mesmo na brochura Junius, assim como em textos posteriores de Rosa Luxemburgo, ainda encontramos referências ao colapso inevitável do capitalismo, à “dialética da história” e à “necessidade histórica do socialismo”.[4] Mas de alguma maneira, com a fórmula “socialismo ou barbárie”, colocavam-se as bases de uma outra concepção da “dialética da história”, distinta do determinismo económico e da ideologia iluminista do progresso inevitável.

Voltamos a encontrar a filosofia da práxis no centro da polémica de 1918 sobre a Revolução Russa – outro texto capital redigido atrás das grades da prisão. O teor desse documento é conhecido: de um lado, o apoio aos bolcheviques, que, com Lenine e Trotsky à frente, salvaram a honra do socialismo internacional, ousando a Revolução de Outubro; de outro, um conjunto de críticas, algumas bastante discutíveis, como as questões agrária e nacional, e outras, como o capítulo da democracia, que aparecem como proféticas. O que preocupa a revolucionária judia polaco alemã é, acima de tudo, a supressão das liberdades democráticas pelos bolcheviques: liberdade de imprensa, de associação e de reunião, que são precisamente a garantia da “atividade política das massas operárias”; sem elas, “é inconcebível a dominação das grandes massas populares”. As tarefas gigantescas da transição ao socialismo – “às quais os bolcheviques se apegaram com coragem e resolução” – não podem ser realizadas sem “uma intensa educação política das massas e uma acumulação de experiências”, impossíveis sem liberdades democráticas. A construção de uma nova sociedade é uma “terra virgem”, que levanta “problemas para milénios”; ora, “só a experiência é capaz de trazer as correções necessárias e abrir novos caminhos”. O socialismo é um produto histórico “nascido da própria escola da experiência”: o conjunto das massas populares (Volksmassen) deve participar nessa experiência, de outro modo “o socialismo é decretado, outorgado, por uma dezena de intelectuais reunidos em torno de um pano verde”. Para os inevitáveis erros do processo, “o único sol curativo e purificador é a própria revolução e o seu princípio renovador, a vida espiritual, a atividade e a autorresponsabilidade [Selbstverantwortung] das massas que surgem com ela e formam-se na mais ampla liberdade política”.[5]

Esse argumento é muito mais importante do que o debate sobre a Assembleia Constituinte, no qual se concentraram as objeções “leninistas” ao texto de 1918. Sem liberdades democráticas é impossível a práxis revolucionária das massas, a autoeducação popular pela experiência prática, a autoemancipação revolucionária dos oprimidos e o próprio exercício do poder pela classe trabalhadora.

Georg Lukács, no seu importante ensaio “Rosa Luxemburgo marxista”, de janeiro de 1921, mostra com grande agudeza como, graças à unidade da teoria e da práxis (formulada “por Marx nas suas Teses sobre Feuerbach”), Rosa Luxemburgo conseguiu superar o dilema da impotência dos movimentos social-democratas, “o dilema do fatalismo das leis puras e da ética das puras intenções”. O que significa essa unidade dialética?

Da mesma forma que o proletariado como classe não pode conquistar e guardar a sua consciência de classe, elevar-se ao nível da sua tarefa histórica (objetivamente dada) senão no combate e na ação, o partido e o militante individual não podem apropriar-se realmente da sua teoria senão ao passar essa unidade na sua práxis.[6]

Portanto, é surpreendente que, apenas um ano mais tarde, em janeiro de 1922, Lukács redija o ensaio “Comentários críticos sobre a crítica da Revolução Russa em Rosa Luxemburgo”, que também acaba por figurar em “História e consciência de classe” e em que rejeita na totalidade o conjunto dos comentários dissidentes da fundadora da Liga Espártaco, afirmando, ainda por cima, que ela “representa a revolução proletária nas formas estruturais das revoluções burguesas”[7] – uma acusação pouco credível, como mostra Isabel Loureiro.[8] Como explicar a diferença, no tom e no conteúdo, entre o ensaio de janeiro de 1921 e o de janeiro de 1922? Uma conversão rápida ao leninismo ortodoxo? Possivelmente, mas também entra em jogo a posição de Lukács em relação aos debates do comunismo alemão. Paul Levi, principal dirigente do Partido Comunista Alemão, tinha se oposto à “Ação de Março de 1921”, uma tentativa fracassada de insurreição comunista na Alemanha, que teve o apoio entusiasmado de Lukács, mas foi criticada por Lenine. Excluído do partido, Paul Levi decide publicar em 1922 o manuscrito sobre a Revolução Russa, que Rosa Luxemburgo lhe tinha confiado em 1918. A polémica de Lukács em relação a esse documento é também, indiretamente, um acerto de contas com Paul Levi.

Na verdade, o capítulo sobre democracia desse folheto de Rosa Luxemburgo é um dos textos mais importantes do marxismo, do comunismo, da teoria crítica e do pensamento revolucionário no século XX. E difícil imaginar uma refundação do socialismo no século XXI que não tenha em conta os argumentos desenvolvidos nessas páginas febris. Os representantes mais inteligentes do leninismo e do trotskismo, como Ernest Mandel, reconheciam que essa crítica de 1918 ao bolchevismo, no que diz respeito à questão das liberdades democráticas, era, em última análise, justificada. É óbvio que a democracia à qual se refere Rosa Luxemburgo é a exercida pelos trabalhadores num processo revolucionário, e não a “democracia de baixa intensidade” do parlamentarismo burguês, na qual as decisões importantes são tomadas por banqueiros, empresários, militares e tecnocratas.

A zündende Funke, a centelha incendiária de Rosa Luxemburgo, brilhou uma última vez em dezembro de 1918, na conferência do congresso de fundação do Partido Comunista Alemão (Liga Espártaco). Ainda encontramos nesse texto referências à “lei do desenvolvimento objetivo e necessário da revolução socialista”, mas trata-se, na realidade, da “amarga experiência” que várias forças do movimento operário têm de fazer antes de encontrarem o caminho revolucionário. As últimas palavras dessa memorável conferência são diretamente inspiradas pela perspectiva da práxis autoemancipadora dos oprimidos:

“É só exercendo o poder que a massa aprende a exercer o poder. Não há outra maneira de ensinar-lhe. Nós já superámos, felizmente, o tempo em que se pretendia ensinar o socialismo ao proletariado. Aparentemente, esse tempo ainda não passou para os marxistas da escola de Kautsky. Educar as massas queria dizer: fazer-lhes discursos, difundir panfletos e brochuras. Não, a escola socialista dos proletários não necessita de nada disso. A sua educação faz-se quando eles passam à ação [zur Tat greifen]”.

Aqui Rosa Luxemburgo refere-se a uma famosa frase de Goethe: Am Anfang war die Tat! No começo de tudo não se encontra o Verbo, mas a Ação! Nas palavras da revolucionária marxista: “No começo era a Ação, tal é aqui nossa divisa; e a ação é quando os conselhos de operários e de soldados se sentem chamados a tornarem-se a única força pública do país e aprendem a sê-lo”.[9] Poucos dias depois, ela seria assassinada pelos paramilitares (Freikorps) mobilizados pelo governo social-democrata contra a insurreição dos operários espartaquistas de Berlim.

Rosa Luxemburgo não era infalível, cometeu erros como qualquer ser humano e qualquer militante, e as suas ideias não constituem um sistema teórico fechado, uma doutrina dogmática para ser aplicada em qualquer lugar e em qualquer época. Mas, sem dúvida, o seu pensamento é uma caixa de ferramentas preciosa para tentar desmontar a máquina capitalista que nos tritura. Não é por acaso que ela se tornou nos últimos anos, em particular na América Latina, uma das referências mais importantes do debate acerca de um socialismo do século XXI, capaz de superar os impasses das experiências, reivindicando o socialismo do século passado, seja a social-democracia, seja o estalinismo. A sua oposição irreconciliável ao capitalismo e ao imperialismo, a sua concepção de um socialismo revolucionário e ao mesmo tempo democrático, baseado na práxis autoemancipadora dos trabalhadores, na autoeducação pela experiência e pela ação das grandes massas populares, é de uma impressionante atualidade, sobretudo no Brasil e na América Latina.

Dizem os jornais que recentemente, noventa anos após a sua morte, o seu corpo teria sido encontrado. Haverá um novo enterro de Rosa Luxemburgo? Por mais que a enterrem uma e outra vez, não conseguirão libertar-se de seu espectro. Ninguém conseguirá apagar a centelha incendiária das suas ideias.

Artigo originalmente publicado no número 15 da revista semestral Margem Esquerda – Ensaios Marxistas da Boitempo, com o título, “A centelha se acende na ação: a filosofia da práxis no pensamento de Rosa Luxemburgo”, e republicado a 5 de março de 2015 no Blog da Boitempo, com o título que aqui publicámos.

Notas:

1 Ibidem, p. 115.
2 Friedrich Engels, Anti-Dühring (Boitempo, 2015).
3 Michael Löwy, “O significado metodológico da fórmula ‘socialismo ou barbárie’”, em Método dialético e teoria política (3. ed., São Paulo, Paz e Terra, 1985).
4 Isabel Loureiro, Rosa Luxemburg, cit., p. 123.
5 Rosa Luxemburgo, “A Revolução Russa”, em Rosa, a vermelha, cit., p. 217-22, corrigido pelo original alemão, Die Russische Revolution, cit., p. 73-6.
6 Georg Lukács, “Rosa Luxemburg, marxiste”, em Histoire et conscience de classe (Paris, Minuit, 1960), p. 65. [Ed. bras.: História e consciência de classe, São Paulo, Martins Fontes, 2003.]
7 Ibidem, p. 321.
8 Isabel Loureiro, Rosa Luxemburg, cit., p. 85-8.
9 Rosa Luxemburgo, “Rede zum Programm der KPD (Spartakusbund)”, em Ausgewählten Reden und Schriften (Berlim, Dietz Verlag, 1953), Band II, p. 687. A edição que estou utilizando aqui tem uma história curiosa: trata-se de uma coletânea de ensaios de Rosa Luxemburgo editada pelo “Marx-Engels-Lenin-Stalin Institut beim ZK der SED”, com prefácio de Wilhelm Pieck, dirigente stalinista da República Democrática Alemã, e introduções de Lenin e Stalin, com críticas aos “erros” da autora. Comprei esse exemplar num sebo e descobri que trazia uma dedicatória em inglês, datada de 1957, assinada por “Tamara e Isaac” – sem dúvida, Tamara e Isaac Deutscher –, em que pediam desculpas por não terem encontrado uma edição sem todas essas supérfluas “introduções”!

(...)

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