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SNS, vítima de um deplorável jogo de sombras...

É com "deceção, incompreensão e revolta" que Ana Maria Brito Jorge, viúva de João Semedo, está a assistir ao desfecho do processo político da Lei de Bases da Saúde. Leia aqui o seu testemunho.
Ana Maria Brito Jorge
Ana Maria Brito Jorge. Foto de Henrique Borges.

Sei como foi intenso e persistente o combate do João para salvar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e acompanhei de perto o desenvolvimento do pacto solidário que o uniu a António Arnaut, com esse objetivo. Foram incansáveis, determinados, quase “heróicos” no seu esforço, alimentados apenas pela certeza inabalável de estarem a abraçar uma causa justa e inadiável.

Estive sempre tão próxima, que pude acompanhar o momento da decisão de arrancarem “antes que fosse tarde demais”, toda a fase de elaboração de um articulado abrangente, renovado e realista e essa preocupação, sempre expressa com tanta veemência, de “separar águas”... Sim, o SNS devia ser garantido a todas as pessoas pelo Estado e por ele deve ser gerido. Sempre foi uma ideia central: era decisivo garantir que a gestão do serviço público de saúde não caísse nas malhas dos interesses privados, ou seja, dos grupos que, gerindo também as suas próprias unidades de saúde, buscam o que é sua natural vocação buscarem: o lucro. Que lucrem, nos seus negócios, que continuem a existir nos seus espaços, mas que não lhes seja  entregue um serviço público para, com ele, fazerem também negócio e, assim, irem sugando os seus recursos! Tão símples quanto isto, defendiam, António Arnaut e o João, nas suas conversas, nas suas intervenções, no que escreveram.

Sei como sentiram a dificuldade da tarefa, mas acompanhei, também, a forma como ambos começaram a acreditar que ela podia ser concretizada, que era possível “salvar o SNS”, com a aprovação de uma nova Lei de Bases da Saúde (LBS).

Vi forças a juntarem-se àquele combate. Muitas opiniões, muitos testemunhos, os mais diversos e importantes... e, por fim, iniciou-se a frente de trabalho parlamentar...

A vida tem destas coisas... e aqueles dois homens, que continuaram mesmo a ser citados, também no Parlamento, já não puderam assistir a tudo o que, lá, veio a desenrolar-se... à vista de qualquer observador ou “no segredo dos gabinetes”...

Continuei a ser uma observadora atenta. Tinha todos os motivos para isso...

O facto de não conhecer os meandros técnicos nem os detalhes do processo legislativo não me impediu de perceber que, a certa altura – e, neste momento, temos o direito de especular sem limites sobre quais os “poderes” que se impuseram... - a “maré” que tinha vindo a encher, com a confluência de consensos, entrou em fase de refluxo...

Foi visível a decisão de infletir caminho por parte de quem detém o poder. O partido que governa quis e pode, mas não deixou de querer... a partir de um dado momento.

Recordei a frase do João, “Há um muro que protege o SNS e esse muro é construído pela vontade de milhões.”, quando comecei a assistir ao que me parecia uma espécie de “jogo de sombras” e que, neste momento, já nem sombras são... Tudo está escancarado!...

O João prosseguia, dizendo, sobre o “muro”: “Não há força que o derrube e a direita sabe isso. A direita não tem tido força para o derrubar mas também é verdade que os seus defensores não têm tido força para o defender, reabilitar e modernizar devidamente. É neste jogo de forças que nos encontramos. Está na hora de o resolver a favor do SNS.” (out. 2017)

E pareceu estar “quase” resolvido a favor do SNS. Podia ter sido resolvido.

Houve apelos, tantos e tão variados, para que fosse ultrapassada a teimosia (entretanto retomada pelo partido do governo) de deixar uma porta entreaberta à voragem dos grandes grupos económicos.

[Tenho feito, a propósito, o exercício de imaginar a gestão da minha querida escola secundária a ser entregue, em regime de PPP, aos proprietários de um externato de enorme sucesso que fica ali pelas redondezas... Por que não?...]

Quando procuro palavras para definirem o que este desfecho quanto à LBS me inspira, vem o desalento, a deceção, a incompreensão, a revolta!

Tudo palavras que o João não usaria. Porque tinha uma infinita capacidade de persistir na defesa daquilo em que acreditava... “Não foi desta vez, será daqui a pouco tempo...”

Nem tudo eu consegui aprender com o João... 


Depoimento prestado ao jornal Expresso.

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