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Sem políticas não há práticas culturais

O relatório Eurobarómetro 2013, intitulado “Cultural access and participation”1 acaba de ser publicado [novembro 2013] pela Comissão Europeia e não é portador de boas notícias para o sector cultural português. O estudo analisa as motivações inerentes às práticas e aos consumos culturais dos cidadãos europeus entre 2007-13, coincidente com o mesmo período de vigência do respetivo Programa Cultura.
A conclusão geral é a de que, desde 2007, tem havido um declínio geral na maioria das práticas culturais, apontando-se a justificação para os efeitos da atual crise económica e financeira. Tal como acontece em outras áreas sociais, a divisão entre países nórdicos e do sul repercute-se também na cultura. Um índice de prática cultural, que reflete a participação numa série de atividades culturais revela que os países do norte da Europa tem a maior proporção de altos índices de participação, liderados pela Suécia (43%), pela Dinamarca (36%) e Países Baixos (34%). Em comparação, as pontuações mais baixas do índice são na Grécia (5%), Portugal e Chipre (6%), Roménia e Hungria (ambos de 7%).
Dois aspetos preocupantes para todo o sector cultural são as duas principais razões evocadas pelos europeus para não participar, ou não participar mais vezes, na vida cultural: a "falta de interesse" (a primeira razão dada para cinco dos nove atividades testadas) e a "falta de tempo" (a primeira razão dada para os quatro restantes atividades). A “falta de interesse” está provavelmente relacionada com uma oferta cultural “desinteressante”, que não corresponde aos gostos e interesses culturais dos cidadãos? É uma interrogação que merece ser debatida publicamente.
A “falta de tempo” mostra quanto a propalada sociedade do lazer e dos tempos livres é uma enorme falácia civilizacional, pois supunha-se que as inovações tecnológicas e as mudanças na estruturação dos tempos sociais das sociedades contemporâneas originariam um aumento significativo dos tempos de lazer e dos “tempos de qualidade”. Do ponto de vista do tempo social global, os únicos trabalhadores que hoje parecem ter tempo para atividades culturais/criativas são os que trabalham nestas mesmas indústrias, e numa elevada percentagem sob forma precária.
Quanto aos trabalhadores de outros sectores laborais, designadamente da classe média, as condições impostas pelas políticas neoliberais e pela austeridade em vigor diminuem grandemente a qualidade de vida e bem-estar, na medida em que provocam a retração da relação social em contexto cultural, por falta de tempo, por falta de dinheiro, por desinteresse e provavelmente por estarem demasiadamente ocupados e stressados com aspetos ligados à sobrevivência de si e dos seus, e cada vez mais afetados pelo desmantelamento catastrófico do Estado social e privatização dos serviços públicos.
O envolvimento individual, na interpretação ou na produção de um bem cultural ou atividade artística, diminuiu significativamente desde 2007. A atividade mais comum para os europeus é a dança (13% afirma ter dançado pelo menos uma vez nos últimos 12 meses), seguido pela fotografia ou fazer um filme (12%) e canto (11%). Contrastando com os dados de 2007, em que 27% dos europeus tinha feito um filme ou estavam envolvidos em fotografia, 19% tinha dançado e 15% tinham cantado. A causa para esta redução, mais de metade nalgumas práticas, é justificada reiteradamente no Eurobarómetro pelos efeitos da austeridade (crise económica e financeira).
Índice de práticas culturais por intensidade de frequência. Fonte: Eurobarómetro 2013, p. 10
No que diz respeito à generalidade das atividades culturais de saída o cenário não é idílico, antes pelo contrário, uma vez que 87% dos portugueses diz não ter ido ao teatro no último ano – representando uma quebra de seis pontos percentuais. Nas visitas a monumentos históricos e a museus e galerias Portugal também surge no fundo da tabela, apenas 30% (menos oito pontos percentuais) visitaram monumentos e 17% (menos sete pontos percentuais) foram a museus e galerias. A frequência de bibliotecas públicas também não é animadora em Portugal, apenas 15% dos cidadãos visitaram uma biblioteca em 2012, registando-se uma quebra de 9%. Na Europa, a média é de 31%, também se verificando uma queda comparativamente com 2007.
"Índice de práticas culturais por intensidade de frequência. Fonte: Eurobarómetro 2013, p. 10"
Ao longo dos anos de financiamento do Programa Cultura 2007-2013, com um orçamento de 400 milhões de euros, a questão que se impõe é a de saber se o programa falhou nos seu objetivos? A resposta exigiria análise mais detalhada, contudo o falhanço parece óbvio, não sendo contudo a única explicação necessária e suficiente.
Um fator de extrema importância prende-se com a pertinência e a qualidade das políticas e das estratégias culturais nacionais, regionais e locais. Em Portugal a extinção do Ministério da Cultura em 2011, fruto de um perspetiva enviesada da estrutura organizacional deste governo – idêntica, mas em sentido inverso, à concentração dos super-ministérios - retirou lamentavelmente importância institucional à cultura, diminuindo a sua função estrutural na requalificação do país. Ainda assim, poder-se-ia pensar que uma das funções da atual Secretaria de Estado da Cultura seria a de promover contratos locais para o desenvolvimento de políticas municipais de cultura.
Na atividade desenvolvida pelas Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional a dimensão cultural está inscrita em alguns parágrafos de documentos de planeamento estratégico regional, mas sem efeitos práticos nos municípios da região, salvo em alguns casos no sector do património e no turismo. As Direções Regionais de Cultura também não têm como missão incentivar estratégias culturais municipais, ficando circunscritas a uma missão de cariz fiscalizador e de salvaguarda do património.
Assim, ao nível municipal, que é onde na realidade os cidadãos desenvolvem práticas culturais diversas e num contexto social de proximidade que é o da vida quotidiana, a dimensão cultural das cidades fica normalmente entregue aos gostos, e muitas das vezes aos devaneios, pessoais dos respetivos autarcas, com as consequências que se conhece. Este sequestro da cultura pelas máquinas administrativas e partidárias locais, não tem respondido aos desafios colocados pela globalização, nem às exigências da democracia cultural e dos direitos culturais, numa ótica de serviço público inclusivo e tendo em vista o desenvolvimento cultural e o contributo para a capacitação das populações. Uma das hipóteses para procurar inverter o horizonte frustrante das políticas culturais locais em Portugal é tentar perceber como se constroem hoje no Séc. 21, com a participação plural e crítica dos cidadãos, essas políticas e estratégias. Nesse sentido sugerimos um simples link: http://www.agenda21culture.net/
Apesar do panorama nacional estar muito aquém do possível e do desejável -basta ler na íntegra o já citado estudo do Eurobarómetro 2013- há com certeza boas práticas e ideias nos vários níveis da administração pública, e nos múltiplos agentes culturais, que não devem ser ignoradas.
Comentários
Esta é uma cuidada análise
Esta é uma cuidada análise crítica do Relatório, que por si veicula conclusões tão tristes. Realçaria que, além da descida da frequência de locais e de práticas culturais, em Portugal estamos a somar descidas a faltas de hábitos demasiado enraizadas já. Não só se tem «praticado» menos como se está a agravar situações de práticas recentes, e portanto mais frágeis, ao não se lhes dar oportunidade de se converterem em hábitos.
Mas como afirma Rui Matoso há situações locais e pontuais onde se nota claramente a influência de determinados agentes culturais que vão fazendo das tripas coração e continuam a cumprir o seu papel, talvez ainda melhor do que antes, porque o fazem com muito mais dificuldades. No caso das bibliotecas, que conheço melhor, há casos verdadeiramente notáveis pela capacidade de criatividade, persistência e noção concreta de serviço público. Há bibliotecas onde a frequência de visitas aumentou (algo que raramente é registado, o que se regista é apenas a quantidade de livros emprestados e o nº de leitores inscritos), mas que facilmente se presencia. Há também casos notáveis de promoção da leitura em estabelecimentos prisionais ou através de bibliotecas ambulantes que ainda ressaltam mais no seu valor, dado este panorama confrangedor geral. Ou seja, há saída, há soluções. Não há política culturais positivas por parte dos poderes, generalizando, mas há gente no terreno a fazer bom trabalho no quotidiano. E as populações sabem bem reconhecer esse valor.
Pelos dados que tenho recolhido, são precisamente os mais pobres e/ou relegados ou isolados que mais acarinham e valorizam essas réstias de bem-estar que advêm de ler um bom livro, de ter companhia enquanto se lê, de encontrar rostos conhecidos, de terem gente atenta para os apoiar.
Obrigado Paula Sequeiros pelo
Obrigado Paula Sequeiros pelo comentário e exemplos referidos! De facto há em diversas localidades iniciativas especifícas que se vão conseguindo realizar graças ao esforço e expensas de cidadãos, por exemplo a "casa do vapor" http://www.casadovapor.org/pt
Mas bastava que tivesse havido por parte dos autarcas um melhor sentido de Estado e de serviço público para que nesta situação crítica que hoje vivemos, as condições de vida urbana contassem com maior resiliência e coesão social/cultural...e sem ser preciso aumentar a dívida...um pouco de visão seria suficiente :)
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