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"Se as atividades de reprodução social fossem valorizadas, o PIB seria o dobro"

José Guilherme Gusmão entrevistou Ana Santos no Socialismo 2018. Ana Santos é investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e economista.

José Gusmão: O que é a economia feminista, como surgiu e o que é que as economistas feministas pretendem dizer, ou acrescentar, à ciência económica?

Ana Santos: A economia feminista parte de uma crítica à economia neoclássica, à economia dominante convencional, e a principal crítica que faz é que a ciência económica, muito focada nas transações mercantis e na motivação do interesse económico em contextos mercantis, deixa de fora todo um conjunto de atividades que são relevantes, tanto para a atividade económica em si mesma, como para o bem estar social.

José Gusmão: Uma das questões que as economistas feministas têm colocado é o debate sobre a provisão, a forma como a economia trata da questão da escolha e não trata tanto da provisão. E uma das coisas para que chamam a atenção é a realidade do trabalho doméstico. Sei que tu tens trabalhado com o conceito de reprodução social, que está um pouco associado a isso. Podes explicar em traços gerais o que é o conceito de reprodução social?

Ana Santos: O conceito de reprodução social surge no quadro da teoria de economia feminista marxista, que surge por contraponto ao conceito de circulação de capital. Enquanto o conceito de circulação de capital se aplica à esfera produtiva propriamente dita, à esfera da produção, o conceito de reprodução social refere-se a todo o conjunto de atividades que não são realizadas no quadro da esfera produtiva nem no quadro das transações mercantis, mas que são realizadas sobretudo no contexto doméstico, e que dizem respeito ao conjunto de atividades de produção da força de trabalho. Ou seja, as atividades de reprodução, como todas as atividades de cuidado às crianças, aos dependentes, aos idosos, que ocorrem sobretudo na esfera doméstica e que são desempenhadas sobretudo por mulheres. Este conceito de “reprodução social” chama atenção para a interdependência das duas esferas, da esfera da produção, com a esfera doméstica e do cuidado, porque é nesta esfera que se produz a força de trabalho necessária à esfera da produção.

José Gusmão: Há outra ligação que tem que ver com aquilo a que se chama segregação profissional, ou ocupacional, das mulheres em áreas relacionadas como as das tarefas domésticas.

Ana Santos: Sim, esta separação entre produção mercantil e produção não mercantil contribuiu para a invisibilização deste trabalho. Aqui também se remete para a ciência económica, que só valoriza, teoriza, só leva em consideração as atividades que têm por objeto o mercado, que são transaccionadas no mercado e sobre as quais é possível definir um preço.

Todas as atividades que não são mercantis, que são, grosso modo, todas as atividades de reprodução social, não passando pelo domínio do mercado, não são consideradas e não são valorizadas.

Há estudos que mostram que, se o fossem, o PIB seria o dobro do que o é realmente. Esta invisibilização deste trabalho tão necessário à economia tem como contrapartida a desvalorização do trabalho das mulheres, e também a transferência, para elas, de todo este trabalho doméstico que não é remunerado.

José Gusmão: Uma das coisas que tem interessado as economistas feministas é a relação entre os processos de acumulação capitalista e as relações de poder dentro da família, a forma como a desigualdade se reforça numa esfera e na outra. Sei que tens trabalhado muito a questão da financeirização e que estás a trabalhar a relação entre estas duas áreas. O que tens verificado?

Ana Santos: O processo de financeirização tem sido acompanhado por um retrocesso grande nas mais variadas esferas da provisão social, desde a educação à saúde e às pensões, o que faz com que o papel do Estado na provisão destes bens essenciais tenha sido diminuído e que tenha de ser compensado pela provisão privada por parte das famílias. Ou substituindo essa provisão ou recorrendo ao mercado para complementar a diminuição da provisão pública. Este processo significa um retrocesso social na medida em que alguns avanços que ocorreram ao longo dos tempos associados à construção do Estado Social. Essa regressão social tem sido novamente acompanhada por um maior papel das mulheres a tentar colmatar a diminuição desse apoio à reprodução social.

José Gusmão: Isso é um ponto importante porque existe a ideia, ou o preconceito, de que essa questão da desigualdade entre géneros é geracional e que vai desaparecendo com o tempo. Na realidade, observamos que não é nada disso que está a acontecer e que alguns avanços que são tidos como garantidos podem simplesmente perder-se. Que tipo de políticas podem ser implementadas e fazer uma agenda feminista para a economia, que permita dar resposta a essas tendências?

Ana Santos: Houve algum progresso com a entrada das mulheres no mercado de trabalho e o crescimento desse acesso, em que as mulheres adquiriram poder económico e autonomia individual, mas este progresso foi feito à custa de uma maior sobrecarga para elas, que tiveram de acumular o trabalho remunerado com o trabalho doméstico. Embora os dados indiquem que tem havido uma maior partilha nas tarefas entre homens e mulheres, a diferença entre ambos no desempenho das tarefas domésticas ainda persiste. Se tivermos ainda em conta todo o processo de implementação de políticas neo-liberais ao longo dos últimos anos que tenham significado retrocessos nas políticas sociais nas suas mais variadas áreas, na educação, na saúde, nos cuidados à infância, Portugal é dos países que tem das mais baixas taxas de natalidade do mundo. Isto é um resultado da ineficiência das políticas e a continuada queda da taxa de natalidade mostra que a pressão sobre as famílias e sobre as mulheres é enorme. É cada vez mais difícil, no atual contexto, as mulheres e as famílias terem a capacidade de assegurar as tarefas de reprodução social.

José Gusmão: Como é que tem evoluído o problema da desigualdade entre homens e mulheres na esfera do trabalho pago, que é transacionado no mercado?

Ana Santos: Esse é outro domínio de enorme desigualdade. Observamos nos anos mais recentes que a crescente participação das mulheres no mundo laboral não tem sido acompanhada por uma redução das desigualdades. Isso é observado muito claramente na diferença de remuneração salarial entre homens e mulheres, que tem crescido nos últimos anos.

José Gusmão: Tem crescido?

Ana Santos: Sim, a diferença entre o que uma mulher ganha e um homem ganham tem aumentado. Mas depois há todo um conjunto, mesmo no contexto do mercado laboral, de desigualdades que não se justificam. Por exemplo, as mulheres trabalham mais em part-time, o que significa que trabalham menos horas, ganham menos; a participação das mulheres em cargos de chefia é muito menor. Não se percebe muito bem, porque de facto há outros dados evolutivo na comparação entre homens e mulheres que poderiam levar-nos a crer que estas diferenças estariam a diminuir. Não é uma questão de qualificação que está na base das diferenças de género no mercado laboral.

Estas diferenças têm ainda repercussão em todas as outras esferas da vida das famílias, nomeadamente das mulheres. As mulheres ganham menos. Em caso de divórcio ou de viuvez, têm salários menores. Se têm a cargo crianças, ficam numa situação de enorme vulnerabilidade económica. É sabido que as mulheres têm uma longevidade maior do que os homens, o que também significa que na velhice terão rendimentos muito baixos.

 

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