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Síria: na via da guerra civil

A televisão síria não exibiu um único civil dos talvez 320 mortos em mais de um mês. Mas se os soldados mortos foram vítimas de vingança dos que perderam os entes queridos às mãos da polícia secreta, isso significa que a oposição está disposta a usar a força.
Manifestação de apoio à democracia na Síria no Cairo. Foto de Maggie Osama

Todas as noites, a televisão estatal síria mostra um espectáculo de horror. Cadáveres nus, com múltiplos ferimentos de bala, a parte posterior das cabeças arrancada. Todos soldados sírios, insiste a televisão, assassinados por "gangs de traiçoeiros criminosas armados" perto de Deraa.

Um dos corpos – de um jovem oficial dos seus vinte anos – teve os olhos arrancados. "Facas e ferramentas afiadas" foram aparentemente usadas contra os soldados, diz o apresentador. Parece não haver dúvida de que os cadáveres são reais e poucas dúvidas de que sejam de facto membros das forças de "segurança" sírias – é preciso pôr a palavra segurança entre aspas nestes dias – nem que os pais chorosos e destroçados que aparecem em segundo plano são realmente as suas famílias.

As fotografias mostram os corpos, recém-lavados para o enterro, tirados do Hospital Militar Tishrin de Damasco. Conhecem-se os seus nomes. Mohamed Ali, Ibrahim Hoss, Ahmed Abdullah, Nida al-Hoshi, Basil Ali, Hazem Mohamed Ali, Mohamed Alla foram transportados da morgue do Exército, por policiais militares, em caixões envoltos na bandeira nacional. São de Tartous, de Banias, de Aleppo, de Damasco. Quando o cortejo fúnebre de al-Hoshi estava a passar pela estrada litoral do Mediterrâneo em direcção ao norte, foi emboscado por um "gang armado".

É fácil ser-se cínico em relação a estas terríveis imagens e aos comentários feitos sobre as suas mortes. Afinal, os tiroteio em funerais, têm sido prerrogativa dos polícias armados do governo, não de "bandos armados". E a televisão síria não exibiu um único civil morto ou funeral civil, após a morte de talvez 320 manifestantes em mais de um mês. Outros 20 terão morrido em Deraa ontem.

Mas estes relatos são importantes. Porque, se os soldados mortos foram vítimas de vingança das famílias indignadas que perderam os seus entes queridos às mãos da polícia secreta, isso significa que a oposição está disposta a usar a força contra os agressores. E se realmente existem grupos armados à solta pela Síria, então o presidente Bashar al-Assad e o regime do partido Baas estão a caminho da guerra civil.

Até ao momento, os manifestantes – pró-democracia ou anti-Bashar, ou ambos – têm escrito o guião da história; os seus filmes no YouTube, os relatos na Internet, as imagens impressionantes dos tanques T-72 sírios a irromper pelas ruas de Deraa – para não falar da patética tentativa de atacar um deles com uma garrafa vazia – dominaram a nossa percepção de uma ditadura todo-poderosa a esmagar o seu povo em sangue. E a verdade está naquilo que dizem. Após o massacre de 1982, em Hama, ninguém duvida que os baathistas sírios vão jogar com as regras de Hama. Mas também falta convicção à sua explicação para a série diária de imagens macabras na televisão estatal. De acordo com os que bravamente tentam fazer chegar notícias ao exterior – embora não a partir de Deraa, onde os telefones e a Internet foram completamente desligados – os corpos mutilados são de soldados que se recusaram a disparar contra o seu próprio povo e que foram imediatamente executados e mutilados pelos shabiha, os "bandidos" soldados alauítas, e depois cinicamente exibidos na TV para sustentar as falsas alegações do governo de que está a lutar contra um levantamento armado e que o próprio povo de Deraa tinha convidado o exército a entrar na sua cidade para salvá-lo dos "terroristas".

O que soa um pouco como o outro lado da propaganda do próprio governo. Naturalmente, as autoridades sírias têm apenas a si mesmas para culpar pela sua falta de credibilidade. Tendo falado de “conspirações estrangeiras” – a explicação de todos os potentados da região quando estão encostados à parede – as autoridades têm engenhosamente proibido todos os jornalistas estrangeiros de entrar na Síria para provar ou refutar essas alegações. O Ministério do Turismo recebeu mesmo uma lista de correspondentes no Médio Oriente, enviada pelo Ministério do Interior, para garantir que nenhum repórter consiga entrar na Síria, alegando um súbito desejo de estudar as ruínas romanas de Palmira.

Assim, a história é escrita com boatos que começam, suponho, com as últimas palavras pronunciadas no noticiário da noite da televisão síria: “Os Mártires nunca morrem." Eles, claramente, expiram, mas de que mártires estamos a falar? Uma versão do que se passou em Deraa – sem quaisquer provas até agora – sustenta que depois de os tanques da Quarta Brigada do Exército de Maher Assad (irmão mais novo do presidente) invadirem a cidade, elementos do exército regular da Quinta Brigada, situada perto de Deraa – supostamente comandada por um oficial chamado Rifai, embora mesmo isso não seja certo – viraram as suas armas contra os invasores de Maher. Mas a Quinta Brigada, prossegue o relato, não dispõe de tanques e inclui pessoal da força aérea que não tem permissão para usar os seus jactos.

Existem assim civis armados – um paradoxo que parece perdido no regime – a contra-atacar de forma sistemática? No Líbano, cuja capital fica mais perto de Damasco que Deraa, existe o temor crescente deste banho de sangue a apenas duas horas de distância por estrada. Os amigos da Síria no Líbano estão agora a afirmar que os sauditas – aliados do actual governo em Beirute – financiaram a revolução na Síria.

Um ex-ministro apresentou na televisão cópias de cheques de 300 mil dólares, supostamente com a assinatura do príncipe Bin Turki Abdul Aziz, ex-chefe da espionagem saudita – e que, nessas funções, já teve boas relações com um certo Osama bin Laden – e irmão do rei Abdullah, cheques que teriam sido entregues a figuras políticas libanesas para instilar a agitação na Síria. Um destes acusados pela Síria de envolvimento é o ex-ministro libanês Mohamed Beydoun. Este último disse que os seus acusadores são culpados de "incitação ao assassinato"; e o príncipe Turki, indignado, disse que os cheques eram "falsos". Mas o Hezbollah, apoiado pela Síria, já apoiou esta acusação, e pelo menos um deputado libanês, Ahmed Fatfat, pronunciou, finalmente, as palavras fatídicas. Com estas acusações contra o "Movimento do Futuro" – o maior grupo do governo demissionário – disse ele, "o Hezbollah e os seus apoiantes estão a preparar o caminho para a guerra civil no Líbano".

Agora os meios de comunicação sírios apontam o dedo para o deputado libanês Okab Sadr, dizendo que ele foi detido – junto com "oficiais israelitas" – na cidade síria de Banias. Na verdade, Sadr está a salvo no Líbano, onde apareceu para dizer que a única razão que o levaria a Banias seria dar sangue no hospital, para os seus habitantes.

Na cidade libanesa de Trípoli, no Norte do país, partidários pró e anti-Assad pretendem realizar manifestações ainda maiores depois das orações. Muitos libaneses do Norte temem que, na eventualidade de um conflito civil na Síria, Tripoli se torne a "capital" do norte da Síria, embora seja uma questão em aberto se seria uma praça-forte dos rebeldes ou de Assad.

O mais preocupante agora – e muito mais próximo da verdade – é que Ali Aid, um personagem linha-dura da área do Jebel Mohsen, das montanhas alauítas da Síria, deixou o filho Rifaat a cargo do seu movimento de proto-milícia. Para si, construiu uma bela casa bem próxima à fronteira sírio-libanesa. O problema é que o major Ali Aid está a viver na nova casa – que fica no lado libanês da fronteira.

Publicado no The Independent de 27 de Abril de 2011; reproduzido pelo La Jornada do México

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

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Sobre o/a autor(a)

Jornalista inglês, correspondente do jornal “The Independent” no Médio Oriente. Vive em Beirute, há mais de 30 anos
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