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Revisitar o passado colonial

No espaço da Faculdade de Ciências na Rua da Escola Politécnica, uma exposição que é um sinal dos tempos. IMPULSO FOTOGRÁFICO: (Des)arrumar o arquivo colonial, uma exposição que mexe connosco. Artigo de Maria Luísa Cabral
Exposição “O impulso fotográfico: (des)arrumar o arquivo colonial”
Exposição “O impulso fotográfico: (des)arrumar o arquivo colonial”

No espaço térreo da Faculdade de Ciências há sempre várias exposições em curso. Trata-se de uma solução expedita para aquele espaço vazio mas o entusiasmo em ocupá-lo não pode relegar para segundo plano o cuidado com a própria organização das exposições. Estas podem ser formadoras de públicos mais informados e exigentes (aumentar a massa crítica é sempre positivo) mas também podem afugentar por decepcionantes (lado negativo). A exposição que justifica esta nota não foge à regra. As exposições não podem ser apenas o reflexo de uma atitude voluntarista e, independentemente da temática e da dimensão, para que recebam nota positiva devem observar regras básicas.

Para não desmobilizar os leitores, vamos ao conteúdo. Uma ideia simples que se baseia afinal no próprio veículo de informação que a fotografia é. Como qualquer outra arte gráfica, podemos procurar nas peças expostas o simples prazer estético e muitas vezes precisamos disso. A cor única ou combinada com outras, os traços e a densidade destes, o volume que fica registado no papel ou tela, as formas geométricas ou os pequenos quase insignificantes motivos da vida seja uma vista de mar, uma roda de dançarinos ou uma natureza morta. É como apreciar o dia-a-dia para além da complexidade social em que inevitavelmente estamos imersos.

Depois há as outras representações que nos chamam à realidade e que acordam em nós preocupações de cariz social e político, confrontando-nos com o mundo circundante. Até talvez resista um prazer estético mas a realidade fala mais alto. A fotografia é mestra neste jogo, ora oferecendo o simples gozo na mistura de cor, luz e sombra ora revelando o registo temporal que ela própria fixou. É característica da fotografia a multiplicidade de informação que oferece ao observador, dificultando a tarefa de classificação, mas O IMPULSO FOTOGRÁFICO apanhou com eficácia essa diversidade exemplificando sem paliativos o registo de um tempo hoje tão perto de nós, tão escrutinado, subitamente na ribalta.

Partindo de fotografias conservadas no Arquivo Colonial que registaram na passagem do século XIX para o século XX os trabalhos dos colonizadores brancos, portugueses e outros, na demarcação das fronteiras coloniais por toda a África Austral, as fotografias proporcionam uma leitura actualizada e uma reflexão sobre a relação existente à época entre colonos, civis ou militares, e a população africana mais ou menos submetida pelo exército. As fotografias a preto e branco e ali expostas questionam-nos de forma nua e crua sobre o nosso passado.

Reproduzo parte do texto introdutório: “(…) usada (a fotografia) com o propósito de documentar os trabalhos realizados (…) parece neutro e desinteressado mas é profundamente político. (As fotografias) constituem registos da tomada de posse dos territórios e do seu enquadramento colonial, através da força do imaginário, que se junta à fronteira física, imposta pela força das armas aos povos africanos. Ao contribuírem para a instalação da fronteira, estas imagens, não tendo conteúdo violento, podem ser vistas como violentas. São provas da invasão colonial, então em curso.” Com as fotografias assistimos à invasão e ficam perguntas no ar - recorro de novo aos textos introdutórios: “qual o significado destas colecções de fotografias e objectos, no passado, no presente e para as diferentes comunidades? Que marcas deixaram estas imagens enraizadas na sociedade? O que mostrar e como mostrar?”

Prossigo com os textos: “Nesta exposição, a expansão da fotografia associa-se à expansão científica colonial que vê na fotografia a tecnologia adequada para visualizar, medir, classificar e arquivar os seus objectos de estudo de modo potencialmente infinito, num contexto de progressivo extrativismo”.

Medir e classificar, ali estão bem presentes os primórdios do que viria a ser um dos cartões de visita do ascendente Partido Nazi. Caracterizar, definir raças, medir, classificar. Com base em tabelas pré-definidas, estabelecer hierarquias entre seres humanos e traçar o destino dos considerados inferiores. Não é bonito de se ver, mas é utilíssimo para se ficar a saber como em Portugal esta fundamentação científica fez caminho em meio mais esclarecido. A universidade de então ao serviço do regime salazarista, uma matéria a exigir investigação, outra janela para o passado que importa escancarar.

A denúncia em torno da qual a exposição foi concebida é conseguida, ainda que talvez pudesse ter ido mais longe. Dada a minha própria formação, senti que faltava o apoio da história.

A par destes aspectos positivos, há que referir as fragilidades. À cabeça, a ausência de um guião. A exposição reflecte o impulso de quem a projectou mas este voluntarismo não basta para uma exposição. Todas as exposições precisam de um guião, de um circuito bem definido poupando ao visitante passos para trás e para a frente, precisam de legendas com caracteres gordos e à altura dos olhos – não é possível andar em ziguezague, curvados a ler textos escritos com caracteres pequeninos, saltando de uns expositores para outros sem um sentido assinalado. Um esforço desatinado que não é convidativo. O equipamento para suporte da exposição (estantes, painéis, vitrinas) é paupérrimo, confrangedor. E a ficha técnica, um aspecto muito importante porque quem visita quer saber quem é o responsável científico, quem é a equipa, qual a área de cada membro da equipa, e quem financia (suspeito que a FCT mas estão referidas várias organizações). A exposição resulta de um projecto multi-financiado e contou com a participação de sociólogos, antropólogos, gente da comunicação mas não identifiquei um historiador nem um técnico de exposições. Não vi e sente-se a falta. Finalmente, uma falha indesculpável. Eu entrei sem uma folha de sala e saí sem uma folha de sala. Se tenho algum registo é porque fotografei os textos expostos, sempre de autoria desconhecida. Cuidado, o anonimato não existe e também é difícil aceitar textos sem, pelo menos, um coordenador. Recorrer a alguém que saiba montar exposições não é dinheiro deitado à rua; pelo contrário, é um bom investimento a valorizar cada exposição e a credibilizar o esforço que sempre subjaz. Seja como for, recomendo vivamente uma visita. Até finais de Março, com forte possibilidade de se manter todo o ano de 2023.

Artigo de Maria Luísa Cabral

 

Sobre o/a autor(a)

Bibliotecária aposentada. Activista do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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