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Razões de esquerda para o Brexit (um dia destes)

Mesmo para aqueles que defendem as razões de esquerda para o Brexit, é sensato dizer: agora não. A altura para confrontar a Europa com uma agenda de esquerda é quando tivermos um governo do Labour e a Europa estiver a resistir contra ele. Artigo de Paul Mason, no Guardian.
Foto Abi Begum/Flickr

O argumentário da esquerda pelo Brexit é estratégico e claro. A UE não é – e não se poderá tornar – uma democracia. Em vez disso, fornece o ecossistema mais hospitaleiro no mundo desenvolvido para os monopólios empresariais rentistas, as elites que fogem ao fisco e o crime organizado. Tem um executivo tão poderoso que pôde esmagar o governo de esquerda na Grécia; um poder legislativo tão fraco que não consegue determinar leis nem controlar a sua própria administração. Um poder judicial que, nos julgamentos Laval e Viking, subordinaram o direito dos trabalhadores à greve ao direito do empregador a conduzir o seu negócio com liberdade.

O seu banco central está empenhado, através dos tratados, a favorecer a deflação e a estagnação em vez do crescimento. A ajuda de estado a indústrias afetadas é proibida. A austeridade que na Grã-Bretanha ridicularizamos como uma escolha política está, de facto, escrita no tratado da UE como uma obrigatoriedade não negociável. Tal como os princípios económicos da era Thatcher. Um governo trabalhista liderado por Corbyn teria de aplicar o seu programa desafiando a lei da UE.

E a situação está a ficar pior. Os líderes da Europa ainda não sabem se vão deixar a Grécia ir à bancarrota em junho; ainda não têm um plano que funcione para distribuir os refugiados que a Alemanha acolheu no verão passado, e tendo assinado um acordo moralmente falido com a Turquia para devolver os refugiados, estamos perante a perspetiva de o ver colapsar. Isso significa, caso seja cumprida a alegada exigência de um ministro anónimo da Bélgica de “afastar ou afundar” os barcos com migrantes no Egeu, que as mãos de cada cidadão da UE estarão metaforicamente ao leme do navio que o fizer. Podem argumentar que a Grã-Bretanha trata os migrantes da mesma maneira. A diferença é que na Grã-Bretanha eu posso substituir o governo, enquanto na Europa não consigo.

Estes são os princípios do argumentário da esquerda pelo Brexit

Agora vejam as razões práticas para a ignorar. Em duas palavras: Boris Johnson. A direita conservadora podia ter conduzido a campanha pela saída com os temas da democracia, o Estado de direito e a soberania da Grã-Bretanha, deixando a economia para uma futura eleição. Em vez disso, Johnson e a direita dos Conservadores querem alcançar um mandato através do referendo para regressar ao thatcherismo em pleno: menos regulação no emprego, salários mais baixos, menos obstáculos aos negócios. Se a Grã-Bretanha votar Brexit, Johnson e Gove estão prontos para tomar o controlo do Partido Conservador e transformar a Grã Bretanha numa ilha de fantasia neoliberal.

Eles terão dois anos para moldar a economia pós-Brexit. Pior ainda, os Tories ficam livres para usar o desaparecimento súbito dos nossos direitos enquanto cidadãos da UE para alterar a constituição de facto do país. O homem que destruiu o controlo público da educação e o homem que colocou acres de terra desocupada nas mãos dos promotores imobiliários de Londres irão determinar a nova relação de forças entre o cidadão e o estado. Por isso, mesmo para aqueles que defendem as razões de esquerda para o Brexit, é sensato dizer: agora não. A altura para confrontar a Europa com uma agenda de esquerda é quando tivermos um governo do Labour e a Europa estiver a resistir contra ele.

É por isto que recusei fazer campanha pelo Brexit, e talvez me abstenha no dia do referendo. Também quero ver a oferta final. Tal como no referendo escocês, espero que se as sondagens derem menos de 7% de avanço à permanência haja uma corrida politicamente orquestrada à libra; uma série de CEOs em parada na BBC a prometerem deixar a Grã-Bretanha; e depois uma “oferta final” surpreendente, vinda de Jean Claude Juncker ou de um grupo de chefes de governo influentes. Se esta oferta incluir a suspensão do capítulo social, ou mais opt-outs que favoreçam os ricos em vez dos pobres na Grã-Bretanha, então não faria grande sentido permanecer por razões táticas.

Já neste momento, graças ao acordo de David Cameron em Bruxelas, a escolha é entre saída e meia-saída. Não creio que as cedências alcançadas por Cameron em março sejam coisa pouca. Embora o travão de emergência nas prestações sociais dos migrantes tenha sido um exibicionismo reacionário, o opt-out da “união ainda mais estreita” que conseguiu foi a sério. Significa que provavelmente não voltará a haver outro tratado com 28 membros.

Já neste momento, graças ao acordo de David Cameron em Bruxelas, a escolha é entre saída e meia-saída. Não creio que as cedências alcançadas por Cameron em março sejam coisa pouca. Embora o travão de emergência nas prestações sociais dos migrantes tenha sido um exibicionismo reacionário, o opt-out da “união ainda mais estreita” que conseguiu foi a sério. Significa que provavelmente não voltará a haver outro tratado com 28 membros.

À medida que a zona euro se consolida em torno da união bancária e transferências inter-fronteiriças, o Tratado de Lisboa será suplantado por novos acordos entre os países do núcleo central. Se isso acontecer, é provável que o Reino Unido possa retirar-se oficialmente de alguns compromissos de Lisboa. Então, mesmo que não haja uma desintegração catastrófica, é provável que a relação do Reino Unido tanto com a zona euro como em relação à lei europeia continuem a ser negociáveis.

Tudo isto sugere que os que queremos o Brexit para voltar a impor a democracia, promover a justiça social e submeter as empresas ao Estado de direito, temos de esperar a nossa hora. Mas aqui está o preço que iremos pagar. A Hungria está a um desastre eleitoral de se tornar fascista; a elite conservadora francesa está a um passo em falso de distância de entregar a presidência à Frente Nacional; na Áustria, a extrema-direita do FPÖ ganhou a primeira volta das presidenciais. O islamofóbico virulento PVV de Geert Wilders vai à frente nas sondagens.

O fracasso económico da UE está a alimentar o racismo e a ultradireita. A comparação feita por Boris Johnson da UE com o Terceiro Reich foi simplista. A comparação mais exata seria com a República de Weimar: uma democracia defeituosa cujas falhas estimularam a ascensão do fascismo. E esta viragem para a extrema direita coloca um dilema: será que eu quero mesmo fazer parte do mesmo eleitorado de milhões de Nazis no armário no continente europeu?

A UE, politicamente, começa a parecer-se cada vez mais um estado manipulado, onde os eleitorados politicamente imaturos da Europa de Leste podem ser usados – como Napoleão usou o campesinato francês – como um obstáculo permanente ao liberalismo e à justiça social. Se assim for – mesmo que as condições políticas para um Brexit de esquerda estejam hoje ausentes – eu vou querer sair em breve.


Paul Mason é jornalista do Channel Four britânico. Artigo publicado a 16 de maio de 2016 no Guardian. Traduzido por Luís Branco para o esquerda.net.

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