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Quem paga pela Inflação?

Abordar a inflação como consumo excessivo é errado e apoia a agenda da austeridade. Os problemas na cadeia de abastecimento implicam investimento público. E se os preços da energia sobem, é preciso investir mais em energia e empregos verdes, defende o economista J.W. Mason nesta entrevista.
Gasolina. Foto de Eduardo Otubo/Flickr,
Gasolina. Foto de Eduardo Otubo/Flickr,

A inflação do ano passado remodelou a paisagem política económica nos Estados Unidos e em todo o mundo. Enquanto o FMI e o Banco Mundial ecoam os apelos da ONU sobre o risco de uma recessão provocada pelos aumentos de taxas de juro globalmente sincronizados, o debate sobre as causas – e definição – da inflação continua por resolver. Tal como a questão da política da inflação e dos seus impactos distributivos – quem beneficia e quem paga.

Para esclarecer os fundamentos destas questões, Samir Sonti conversou com J.W. Mason, Professor Associado de Economia do John Jay College. A entrevista foi realizada para o podcast "Reinventando a Solidariedade" do New Labor Forum, e pode ser vista e ouvida aqui.

Esta transcrição foi editada por razões relacionadas com a duração e clareza do discurso.



SAMIR SONTI: Há bastante tempo que me preocupo com a forma como a política da inflação afeta os trabalhadores. Não há praticamente ninguém com quem eu tenha aprendido mais sobre este assunto do que com Josh Mason. Para nos dar o pontapé de saída, pode ser útil ter algumas definições básicas em cima da mesa. As manchetes da comunicação social dizem-nos que a inflação está num máximo de quarenta anos mas para os trabalhadores um aumento do custo de vida não é novidade: os preços das casas, por exemplo, têm vindo a subir desde há anos. Poderia explicar o que queremos dizer exatamente com o termo inflação? O que distingue a inflação recente que temos vivido de algumas destas outras tendências, como o aumento dos preços da habitação?

J.W. MASON: A definição de inflação que as pessoas mais conhecem é um período de subida de preços. Mas, como salientou, isso convida imediatamente à pergunta: que preços? Há muitos preços na economia e nem todos se movimentam em sintonia. Quando olhamos para a inflação, estamos a medir o preço médio das coisas que uma família média compra. Mas isto, mais uma vez, convida a uma pergunta: que agregado familiar? Pessoas diferentes compram coisas diferentes, e os preços médios de alguns bens são difíceis de calcular. Não existe um "nível de preços" no mundo, apenas várias formas de o construir.

Em geral, quando medimos a inflação, olhamos para os bens e serviços que as pessoas utilizam. Não estamos a incluir ações, criptomoedas, pagamentos de juros e outros ativos financeiros. Mas também estamos a incluir algumas coisas que não são bens e serviços. Por exemplo, o maior item no índice de preços ao consumidor é o que se chama "equivalente de renda dos proprietários"1. Este não é um preço que alguém pague – é uma estimativa do Bureau of Labor Statistics2 de quanto custaria a um proprietário se tivesse de pagar o aluguer da sua casa, e calculá-lo é um processo bastante complicado.

Tem toda a razão na questão que referiu dos preços das casas serem um problema de longa data nos EUA. Mas isso não é necessariamente capturado nas estatísticas da inflação porque a maioria das pessoas neste país são proprietários de casas e chegar a uma medida para os preços quanto à habitação que estão a viver não é simples. Os cuidados de saúde são outro caso interessante. As nossas estatísticas são construídas com base no pressuposto de que as pessoas consomem coisas que compram para si próprias mas grande parte da nossa economia é mais socializada do que normalmente reconhecemos. Chamamos aos cuidados de saúde uma forma de consumo mas a maior parte das despesas reais é feita por um empregador ou um governo, não pela pessoa que recebe os cuidados. Assim, quando falamos do "preço dos cuidados de saúde" referimo-nos ao preço pago pelas famílias ou ao preço recebido pelos prestadores? Se estamos a falar de pão, ou bilhetes de avião, não faz muita diferença, mas neste caso podem ser muito diferentes. Portanto, a resposta não é simples.

O Índice de Preços ao Consumidor (IPC), a medida de inflação à qual se dá mais atenção, subiu mais de 8% no último ano. No entanto, existe também o Índice de Preços de Despesas de Consumo Pessoal3, que é tradicionalmente preferido pela Reserva Federal4, e que nem sempre acompanha o IPC. Atualmente, a inflação medida por esse índice é significativamente inferior (algo como 6%). Não é óbvio que uma medida seja mais precisa ou relevante do que a outra.

O que devemos retirar de tudo isto é que a inflação não é apenas um facto, é uma construção estatística que envolve muitos pressupostos e escolhas. Dependendo da forma como se navega por eles, pode acabar por ter números muito diferentes. Isto também significa que ideias como a de que a inflação aumenta sempre com o excesso de procura ou de despesa não se adequam aos números que geramos. Os economistas gostam de imaginar que o produto dos seus cálculos é o mesmo que o conceito teórico, mas em muitos sentidos estas duas realidades existem em universos diferentes.

Dito isto, é verdade que muitos dos preços estão a subir. Estão a fazê-lo de formas diferentes e talvez por razões diferentes. Os preços do arrendamento para habitação têm vindo a aumentar mais rapidamente do que o nível geral de preços desde 2015; não temos habitação suficiente nos locais onde as pessoas querem viver e a maioria dos locais não tem qualquer tipo de regulamentação que limite a capacidade dos senhorios de aumentar as rendas da habitação que existe. Depois temos bens como a energia e a comida, que também têm vindo a aumentar bastante ao longo do último ano. Os preços da gasolina são a imagem da inflação em todo o lado – cada artigo sobre inflação tem uma imagem de uma bomba de gasolina a ilustrar. Mas o que se passa com esses preços é que eles flutuam muito. Eles sobem e descem. Os preços atuais da gasolina são aproximadamente os mesmos que eram em 2014 e na realidade eram até um pouco mais elevados em 2008.

Uma coisa que é nova nos últimos dois anos é o aumento do preço de bens manufaturados, particularmente visível no preço dos carros. Estes são preços que, de forma geral, têm vindo a baixar há bastante tempo. A nossa economia capitalista global melhora constantemente a sua capacidade de produzir bens manufaturados e as empresas são muito boas a encontrar mão-de-obra barata para os produzir. Assim, o facto de estes preços estarem agora a subir é, sem dúvida, a parte da situação atual que é genuinamente nova.

O importante é prestar atenção a cada uma destas situações em vez de juntá-las todas sob o grande chapéu da inflação.

 

Vamos concentrar-nos nesta parte que é nova. A administração Biden atribuiu muitos destes aumentos de preços a ruturas nas cadeias de abastecimento. Os críticos argumentam que eles são o resultado dos programas de estímulo e de recuperação económica implementados pelo governo. O que está em causa neste debate e o que se está a passar exatamente?

Temos duas narrativas concorrentes: uma sobre a oferta, a outra sobre a procura. Em alguns aspetos, elas são a mesma história, contada apenas de perspetivas diferentes. Pode dizer-se que o preço de um bem está a aumentar porque as pessoas querem comprar mais do que as empresas conseguem produzir ou pode dizer-se que as empresas não conseguem produzir tanto quanto aquilo que as pessoas querem comprar.

Mas as diferenças surgem quando se analisa mais de perto estas narrativas. Temos tendência a pensar que a capacidade produtiva da economia aumenta constantemente ao longo do tempo, o que historicamente tem levado à conclusão de que quando os preços começam a subir mais rapidamente, isso se deve provavelmente a algo que aconteceu no lado da procura e não na oferta. Porque, normalmente, não temos grandes mudanças na nossa capacidade de produzir coisas, enquanto a quantidade de dinheiro que as pessoas querem gastar pode mudar muito rapidamente.

Bem, de uma forma geral isto é verdade, mas nem sempre. Porque, claro, neste momento, temos tido uma perturbação muito clara na nossa capacidade de produzir e transportar mercadorias.

Causa alguma perplexidade ouvir economistas como Larry Summers, Jason Furman e outros desse lado do debate. Eles falam como se a única coisa que aconteceu nos últimos três anos fosse que o governo federal começou subitamente a gastar mais dinheiro. E isso é verdade, foi o que aconteceu. Mas também aconteceu outra coisa: foi a chamada pandemia global e foi muito importante. Os preços dos automóveis, para dar um exemplo, aumentaram dramaticamente não porque as pessoas estejam a comprar mais carros do que há alguns anos – não estão – mas porque no início da pandemia os fabricantes não pensaram que seriam capazes de vender qualquer carro e deixaram de encomendar semicondutores. Uma vez que se parou a procura destes produtos eletrónicos especializados, é difícil voltar a produzi-los. Assim, a produção automóvel entrou em colapso e os carros importados do resto do mundo não puderam preencher a lacuna. É por isso que, quando as pessoas acabaram por querer comprar carros, os preços subiram. É possível contar histórias semelhantes com outros bens, não é assim tão misterioso.

A guerra na Ucrânia também fez subir os preços da energia e dos alimentos. Recentemente, tem havido alguma investigação interessante sobre a importância da energia para uma inflação de base ampla. A energia é um recurso necessário para quase todos os tipos de processos industriais, pelo que o seu impacto nos preços dos mais vastos setores é muito maior do que aquele que vemos se considerarmos os preços da energia isoladamente.

Além disso, se olharmos para as tendências do PIB destes últimos anos, podemos ver que os preços já estavam a subir mesmo quando a procura ainda estava muito abaixo da tendência pré-pandémica. Portanto, entre a oferta ou a procura como causas da inflação, penso que é inequívoco que a narrativa da oferta está correta. Na ausência da pandemia, o nível de despesas nos últimos dois anos não teria produzido nada de semelhante à inflação a que estamos a assistir.

Dito isto, não devemos negar que, dada a pandemia, se tivéssemos efetuado uma menor despesa na economia, provavelmente teríamos tido uma inflação menor. Mas isso não significa que teríamos tido um resultado melhor. Se recordarmos a sensação de desgraça económica que caracterizou o início de 2020, deveríamos estar gratos por termos evitado a catástrofe económica prevista, ainda que tenha sido à custa de uma inflação um pouco mais elevada.

Um exemplo: a proporção de famílias que o Departamento de Agricultura dos EUA descreve como sofrendo de "muito baixa segurança alimentar" (a pior categoria, que significa que as pessoas não estão literalmente a receber o suficiente para comer), é de cerca de 4%. Em 2007, subiu 50% em apenas alguns anos, de 4% para 6%. Esta é ainda uma pequena percentagem, mas passou a haver muito mais crianças que vão para a cama com fome todas as noites. Isso deveu-se à crise financeira e à sua má gestão por pessoas como Larry Summers que se preocupavam em estimular excessivamente a economia. Desta vez não cometemos esse erro – na realidade gastámos dinheiro suficiente para preencher o buraco económico criado pela Covid-19 e manter os rendimentos das pessoas. E, como resultado, o número de pessoas com fome acabou por diminuir.

Isso é uma excelente notícia. Significa também que as pessoas têm mais dinheiro para gastar do que teriam no cenário alternativo. É verdade que se tivesse havido uma onda maciça de despejos, as rendas habitacionais poderiam ser mais baixas atualmente. E se um número suficiente de pessoas estivesse a passar fome, os preços dos alimentos poderiam ser mais baixos. Portanto, se se pretender culpar a procura pela inflação, isso é sempre possível. Continuaríamos sempre a ter tido inflação devido aos preços importados do estrangeiro mas teríamos tido uma inflação menor. No entanto, esta é uma afirmação diferente daquela que defende que a elevada procura é a razão pela qual temos qualquer inflação em primeiro lugar. Em qualquer dos casos, o que não podemos perder de vista são as compensações, os ganhos. Talvez pudéssemos ter tido uma inflação menor, mas quantas crianças com fome vale isso? Quantos empresas fechadas? Quantas pessoas expulsas das suas casas? Esse é o debate que não está a acontecer, mas deveria ser feito.

 

Vamos falar um pouco sobre a Reserva Federal. Até agora, a principal resposta à inflação que temos visto tem sido o aumento das taxas de juro e todos os indícios sugerem que isso vai continuar a acontecer. Assim, em primeiro lugar, pode esclarecer de forma simples o que é a Reserva Federal? E, em segundo, porque razão é que a Reserva Federal está a aumentar as taxas de juro, tendo em conta tudo o que foi dito?

A Reserva Federal é o banco central dos Estados Unidos. É a instituição que se situa no topo do sistema financeiro. Atualmente, é basicamente apenas uma parte do governo federal; no passado, ocupava uma posição mais ambígua com uma maior relação com os bancos privados. Na verdade, é uma história interessante. No século XIX os EUA não tinham um banco central. Uma das exigências da esquerda do espectro político – os populistas em particular – era a criação de uma instituição pública que pudesse gerir a moeda e acabar com as crises periódicas que resultavam do padrão de ouro, que não era gerido. A Reserva Federal é, em muitos aspetos, a resposta de consenso a esse pedido. É evidente que a questão da responsabilidade democrática é um problema. Mas devemos recordar-nos de que realmente queremos uma instituição para gerir o sistema financeiro e bancário. O problema é que também encarregámos essa mesma instituição de gerir a macroeconomia, tarefa para a qual a Reserva Federal não é adequada.

Quanto à taxa de juro – a ideia é que se tenha uma taxa de juro que os bancos cobram uns aos outros. Este é um empréstimo de vinte e quatro horas que permite aos bancos liquidar as suas contas. A taxa que se paga sobre esse empréstimo é chamada de taxa de fundos federais e é efetivamente fixada pela Reserva Federal. Desde os anos 1990, temos confiado nesta taxa de juro única para gerir tudo, desde o crescimento económico à inflação e ao desemprego. É um pouco louco, se pensarmos bem. Apesar do que a maioria das pessoas pensa, o mandato legal da Reserva Federal não é o de gerir a inflação e o desemprego. O seu mandato é estabilizar o crescimento a longo prazo do dinheiro e do crédito, de uma forma que seja consistente com a estabilidade dos preços e o pleno emprego. Trata-se de uma distinção importante. Significa que a instabilidade decorrente do sistema bancário não deveria ser da responsabilidade da Reserva Federal.

A ideia é que ao aumentar a taxa de juro os bancos pagam mais para emprestarem uns aos outros. Consequentemente, cobrarão mais por outros tipos de empréstimos e, em particular, cobrarão mais às empresas por empréstimos contraídos para fazer investimentos. Menos despesas de investimento significa menos procura na economia, menos gastos e menos emprego. (As empresas contratam pessoas para fazer coisas, logo, se estão a fazer menos coisas, contratam menos pessoas). Quando há muito desemprego e poucos postos de trabalho, os salários também descem, o que depois se traduz em preços mais baixos. A narrativa é esta. E, de facto, Jerome Powell tem sido bastante frontal sobre controlar a inflação através de forçar os trabalhadores a aceitar salários mais baixos.

No meu ponto de vista penso que devemos fazer duas perguntas sobre essa teoria. Em primeiro lugar, será que ela funciona mesmo? E, em segundo lugar, existirá alguma forma melhor de alcançar o mesmo resultado? Pessoalmente, penso que esta teoria não funciona muito bem e que, sem qualquer dúvida, poderíamos encontrar formas alternativas de resolver este problema.

Na verdade, quando se pergunta aos proprietários de empresas como tomam as suas decisões de investimento, a taxa de juro não aparece como importante nos seus cálculos. E, por outro lado, o mercado de trabalho está a mudar por muitas outras razões. O desemprego elevado que causa salários mais baixos é provavelmente o elemento mais sólido da teoria que enunciei há pouco. Mas o passo seguinte é muito menos certo: sabemos que os preços não se alteram em harmonia (nem ao mesmo ritmo nem ao mesmo tempo) com os custos de mão-de-obra. Se fosse esse o caso, a parte dos rendimentos que vai para os salários nunca mudaria. Assim, quase todos os elementos desta cadeia são bastante questionáveis.

Se olharmos para as evidências estatísticas baseadas nos próprios modelos da Reserva Federal, vemos que a taxa de juro de facto tem efeito, mas leva cerca de dois anos a atingi-lo. Assim, quando se aumenta agora as taxas de juro, isso pode reduzir a despesa e o emprego em meados ou finais de 2024. Nessa altura, poderemos muito provavelmente estar em recessão. Se uma pessoa estiver a conduzir um carro numa autoestrada e existir um enorme desfasamento entre o momento em que move o volante e o momento em que o veículo muda de direção, é muito provável que se verifique um desastre.

Por outro lado, a potencial ineficácia é também uma razão para otimismo. A última vez que a Reserva Federal aumentou as taxas de juro foi em 2015 e não teve qualquer efeito importante em nada. É certo que se aumentarem suficientemente as taxas de juro podem criar uma crise, especialmente entre as pessoas e os governos que pagam juros mais elevados sobre a sua dívida. Mas se não as aumentarem o suficiente para provocar uma crise, não é certo que tenham qualquer efeito sobre a economia real. A ideia de que a Reserva Federal, ao ajustar esta taxa de juro única, pode orientar toda a economia complexa – esta enorme divisão do trabalho com imensos diferentes decisores – não tem grande evidência histórica ou estatística.

 

Neste momento, estamos a ver as taxas de juro aumentar, mas o valor atual ainda é bastante baixo (podemos ir até 4%, mas nos anos 70 era cerca de 20%). Antes, as taxas de juro tinham sido mantidas muito baixas durante muitos anos, o que levantou problemas próprios. Os críticos apontam para 2009-10 e para a dependência da flexibilização quantitativa (QE) 5, que alimentou a especulação de Wall Street sobre os ativos financeiros, introduziu todo o tipo de novos riscos na economia e intensificou a desigualdade económica. A sua posição sobre esta questão é um pouco diferente, não?

A minha opinião pessoal é que o impacto da flexibilização quantitativa tem sido sobrestimado para o bem e para o mal. A ideia por detrás da flexibilização quantitativa é que a Reserva Federal coloca mais dinheiro na economia através da compra de obrigações ou títulos de dívida. Mas, na economia moderna, o "dinheiro" é uma coisa muito amorfa. Muitos ativos diferentes podem servir como dinheiro e a Reserva Federal não tem o monopólio da sua criação ou destruição. Quando se dá a um banco muitos milhares de milhões de dólares de reservas em troca da mesma quantidade de títulos de dívida do Estado, não se criou realmente nada, porque esses títulos já funcionavam essencialmente como dinheiro. Há muito pouca diferença entre o ativo que a Reserva Federal está a comprar e o dinheiro que está a pagar por ele. Portanto, o impacto vai ser bastante insignificante.

No período imediatamente posterior à crise de 2007, quando se estavam a comprar os ativos tóxicos com que os bancos não queriam ficar e não conseguiam vender, a história era diferente. Mas a política que as pessoas normalmente entendem por QE, que é comprar títulos do Estado, é apenas trocar um ativo seguro e líquido por outro. É como pegar num balde e mover água de uma extremidade da piscina para a outra.

Sobre a questão das bolhas de ativos, penso que as baixas taxas de juro levam em geral a preços mais altos dos ativos mas não tenho a certeza de que conduzam de forma fiável a bolhas de ativos. As bolhas precisam de alguns outros ingredientes. A história mostra-nos que as grandes bolhas de ativos disruptivas, não aconteceram necessariamente em períodos em que as taxas de juro eram especialmente baixas. As taxas de juro não eram particularmente baixas no final dos anos 1920, na verdade até eram bastante altas no pico da bolha da bolsa de valores. Provavelmente isso fazia parte do problema, uma vez que as taxas de juro elevadas deslocam mais atividade para a bolha. Se as taxas de juro subirem de 3% para 6%, isso poderá desencorajar as pessoas de iniciar um negócio ou comprar uma casa. Mas as pessoas que compram ações porque esperam um aumento de 10%, 20% ou 30% no próximo ano não se importam.

Penso que se quisermos culpar a Reserva Federal pelas bolhas devemos concentrarmo-nos no facto de não estar a fazer o seu trabalho de supervisão, não gerir eficazmente o sistema bancário. Esse trabalho deveria incluir um elemento de supervisão e investigação sobre o tipo de ativos que os bancos detêm e quais são os seus termos. Não precisamos de taxas de juro elevadas para gerir as bolhas, precisamos de um sistema financeiro melhor regulado.

 

Finalmente, o que significa tudo isto para os trabalhadores? E como devem responder as pessoas empenhadas numa mudança política e social?

Há três grandes respostas a isso. A primeira é que queremos responder à inflação de uma forma que apoie a nossa agenda mais vasta. Não devemos abordá-la em termos de consumo excessivo (“despesas acima das nossas possibilidades”), não apenas por ser errado, mas também porque apoia uma agenda de austeridade que não queremos. Não queremos aumentos das taxas de juro, não apenas porque não funcionam, mas também porque não queremos que os trabalhadores suportem os custos da crise, mesmo que funcionassem.

Já a questão da cadeia de abastecimento é importante porque implica que a solução para a inflação é o investimento público. Se não temos capacidade portuária suficiente, precisamos de construir mais capacidade portuária. Se os preços da energia estão a oscilar em todo o mundo precisamos de mais investimento em energia verde e empregos verdes. Se os preços da habitação estão a subir, precisamos de construir mais habitação pública.

Em segundo lugar, não podemos esquecer que a Reserva Federal está a tentar aumentar o desemprego e reduzir o crescimento salarial. É isso que os aumentos das taxas de juro se destinam a fazer. A nossa exigência à Reserva Federal deve ser muito simples: não faça isso. Não precisamos de um estímulo bancário complicado com condições associadas a resgates bancários, ou algo do género. Queremos apenas que a Reserva Federal pare o que está a fazer. Não queremos que o desemprego aumente. Não queremos que o crescimento dos salários seja lento. Não queremos que seja mais difícil encontrar um emprego. Pensamos que uma boa economia é aquela em que os trabalhadores têm facilidade em encontrar um emprego e as empresas têm de lutar para encontrar trabalhadores. É boa para os trabalhadores, mas também é boa a longo prazo para o crescimento da produtividade. É bom para democratizar o local de trabalho, é bom para a inovação. É bom, e nós queremo-lo, e queremos que a Reserva Federal deixe de estragar este tipo de economia.

Em terceiro lugar, não nos podemos deixar distrair com a inflação. A inflação não é a única coisa que está a acontecer no mundo. Outra coisa importante que está a acontecer é que temos mercados de trabalho com muita escassez de mão de obra, o que torna mais fácil para os trabalhadores negociar com os empregadores. É por isso que as pessoas se estão a organizar em restaurantes de fast food e nos armazéns da Amazon – esta não é a única razão, obviamente, mas ela constitui um terreno muito favorável para a luta.

Uma coisa que tenho ouvido muitas vezes dos organizadores e ativistas é que não é preciso dizer às pessoas que, como costumávamos dizer no Occupy Wall Street6, “esta merda é lixada e uma treta”. Eles sabem disso. Toda a gente sabe o que está errado com o seu trabalho. Aquilo sobre o qual é preciso convencer as pessoas é de que podem fazer algo a esse respeito. Não devemos perder de vista o facto de que o momento económico atual é favorável aos esforços para confrontar os nossos chefes coletiva e individualmente. Não podemos perder esta oportunidade.

 

J.W. Mason é Professor Associado de Economia no John Jay College, City University of New York, e bolseiro no Roosevelt Institute.

Entrevista feita por Samir Sonti, professor de Estudos Urbanos na CUNY School of Labor and Urban Studies.

Publicado em 12 de Outubro no Phenomenal World. Traduzido por Paulo Antunes Ferreira para o Esquerda.net.

 

Notas da tradução:

1 O equivalente de renda dos proprietários (no original “owners equivalent rent.”) é o montante da renda que teria de ser pago por uma casa da qual atualmente se é proprietário se essa casa fosse arrendada. Este valor é também referido como equivalente de renda. Por outras palavras, calcula o montante da renda mensal que seria equivalente às despesas mensais de possuir uma propriedade (por exemplo, hipoteca, impostos, etc.). https://www.investopedia.com/terms/o/owners-equivalent-rent.asp

2 O Gabinete de Estatísticas do Trabalho (no original Bureau of Labor Statistics) é um serviço do Departamento do Trabalho dos Estados Unidos. É a principal agência do governo norte-americano de apuramento de dados no vasto campo da economia e estatística do trabalho e funciona como agência principal do Sistema Estatístico Federal norte-americano. https://en.wikipedia.org/wiki/Bureau_of_Labor_Statistics

3 O Índice de Preços de Despesas de Consumo Pessoal “é uma medida dos preços que as pessoas que vivem nos Estados Unidos, ou as que compram em seu nome, pagam por bens e serviços. A mudança no índice de preços PCE é conhecida por captar a inflação (ou deflação) através de uma vasta gama de despesas de consumo e refletir as mudanças no comportamento do consumidor. O índice de preços PCE é produzido pelo Bureau of Economic Analysis (BEA) (…) e é a medida de inflação preferida pela Reserva Federal. O índice de preços PCE é semelhante ao índice de preços ao consumidor do Bureau of Labor Statistics para os consumidores urbanos. Os dois índices, que têm objetivos e utilizações próprias, são construídos de forma diferente, resultando em diferentes taxas de inflação. https://fred.stlouisfed.org/series/PCEPI

4 A Reserva Federal norte-americana “é o banco central dos EUA. Desempenha cinco funções para promover o funcionamento eficaz da economia dos Estados Unidos e, de uma forma mais geral, o interesse público”, nomeadamente, “conduz a política monetária da nação para promover o máximo emprego, preços estáveis e taxas de juro moderadas a longo prazo na economia dos EUA”. https://www.federalreserve.gov/aboutthefed.htm

5 “A flexibilização quantitativa (no original Quantitative Easing - QE) é um instrumento de política monetária através da qual um banco central compra obrigações ou títulos de dívida do Estado ou outros ativos financeiros para injetar reservas monetárias na economia a fim de estimular a atividade económica. A flexibilização quantitativa é uma nova forma de política monetária que teve grande aplicação após a crise financeira de 2007-2008. Destina-se a estabilizar uma contração económica quando a inflação é muito baixa ou negativa e quando os instrumentos normais de política monetária se tornaram ineficazes”. https://en.wikipedia.org/wiki/Quantitative_easing

6 O Movimento Occupy Wall Street foi um movimento de protesto contra a desigualdade económica e social, a ganância, a corrupção e a indevida influência das empresas — sobretudo do setor financeiro — no governo dos Estados Unidos. O movimento "faz parte de uma onda global de protestos, tendo como precursores, entre outros, as mobilizações dos estudantes britânicos e chilenos pela Universidade Pública, as revoltas democráticas da Primavera Árabe, o movimento das acampadas e dos indignados (15-M) surgido nas praças espanholas, replicado por dezenas de cidades europeias, inclusive em Portugal. (...) Teve início no dia 17 de setembro de 2011, no Parque Zuccotti (...) e clamava pela ocupação, simbólica e literal, das ruas de Wall Street, centro nevrálgico da finança global. (...) A “Global Street”, conforme tem sido apelidada, opõe-se à “Wall Street”, ou seja, ao poder do capitalismo financeiro e das empresas multinacionais, que torna os cidadãos e as democracias reféns dos seus interesses económicos. São por isso comuns os slogans “Democracia Verdadeira, já” e “Nós somos os 99%”, que protestam contra as regras da economia que beneficiam apenas o 1% dos mais ricos do mundo". https://www.ces.uc.pt/observatorios/crisalt/index.php?id=6522&id_lingua=1&pag=7867

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