A senadora da Califórnia Kamala Harris foi apresentada como a escolha do candidato democrata à presidência dos EUA, Joe Biden, para sua vice-presidente. Tem 55 anos, ascendência tamil-jamaicana e foi procuradora. Está a cumprir o seu primeiro mandato no Senado e tinha sido uma das concorrentes às primárias do partido.
Curiosamente, Kamala Harris, que chegou a ser considerada favorita nessa corrida, viu o momento de viragem acontecer quando acusou o seu agora candidato presidencial de se ter oposto ao financiamento de um programa de autocarros escolares que tinha em vista acabar com a segregação racial nas escolas. A acusação fê-la ficar mal vista no partido e a sua taxa de aprovação desceu subitamente, tendo acabado por desistir a favor de Biden e contra Bernie Sanders.
A procuradora justicialista
A primeira parte do seu percurso político é a carreira como procuradora. E a polémica começa logo aí, com os defensores de reformas no sistema judicial norte-americano a criticarem a sua postura “dura com o crime” e a corrida para conseguir condenações em massa de forma a ser reeleita. Quem a quer mostrar como progressista prefere destacar medidas como a criação de um gabinete próprio para combater os crimes anti-LGBT, de outro para combater crimes ambientais e depois da crise de 2008 de uma força de investigação às fraudes imobiliárias; de programas de reintegração social de jovens que tivessem cometido crimes não violentos; as posições como a oposição à pena de morte (ou seja a defesa, como alternativa, da prisão perpétua) ou a introdução de um programa inovador para combater o enviesamento da ação policial.
A seu favor, Harris apresenta ainda “serviço” contra interesses corporativos como em 2011 ter sido uma das procuradoras que assinou uma posição contra a prática das farmacêuticas de pagar às suas concorrentes para não fabricar genéricos ou como promoveu casos contra as grandes poluidoras como a BP, Chevros, ExxonMobil, entre outras.
Mais fogo de vista que outra coisa, responderão os críticos que têm sublinhado que, nesse cargo, foram mais as medidas “progressistas” simbólicas do que as que tiveram impacto efetivo, que não defendeu nenhuma reforma substancial do sistema judicial, que teve uma postura dúbia sobre a lei das “três oportunidades” californiana que implicava prisão perpétua à terceira condenação por um crime ainda que esse delito fosse de gravidade menor, que a criminalização dos pais pelo abandono escolar dos filhos redundou numa perseguição dos mais desfavorecidos.
Quanto à sua task force para investigação dos crimes de falsas hipotecas, o resultados terá sido apenas a apresentação de dez casos em três anos, um registo muito abaixo do de Estados menores e com menos casos suspeitos. Para além disso, globalmente o caso redundou num acordo que ilibou os bancos e os seus executivos de ações criminosas que tivessem cometido e os deixou a pagar pouco, causando a ira dos movimentos de inquilinos.
Pior, o Intercept deu a conhecer um memorando entregue pelos procuradores a Harris que aconselhava uma investigação ao banco OneWest Best e esta nada fez. Em 2016, a campanha de Kamala para o Senado foi a única campanha democrata a receber donativos do antigo chefe-executivo desta empresa, Steven Mnuchin, que agora é Secretário do Tesouro da Administração Trump.
O “caso” contra o auto-proclamado progressismo de Kamala enquanto procuradora pode ser encontrado ainda num artigo de opinião da professora de Direito Lara Bazelon no New York Times. Esta mostra como “cada vez que os progressistas apelaram a que defendesse reformas da justiça criminal, enquanto procuradora distrital e depois estadual, Ms. Harris opôs-se ou manteve-se em silêncio”, tendo até lutado fortemente para manter condenações irregulares “obtidas através de más condutas que incluíam violações de provas, falsos testemunhos e supressão de informação crucial pelos procuradores”. Os exemplos apresentados no artigo são vários.
Recorda-se ainda que, apesar de se dizer publicamente contra a pena de morte, em 2014, decidiu recorrer quando um juiz federal considerou esta era inconstitucional e que, em 2015, se opôs à lei que iria requerer que o seu gabinete investigasse tiroteios que envolvessem polícias.
A professora de Direito concluía esse artigo dizendo que “se Kamala Harris quer que as pessoas que se preocupam com o desmantelamento da encarceração massiva e a correção dos maus usos da justiça votem por ela precisa de romper radicalmente com o seu passado”.
A política de “duas caras”
A procuradora tornou-se depois senadora. E sobre esse legado de um mandato as opiniões também divergem. Há quem louve o seu apoio a uma reforma do sistema fiscal que aumente a progressividade dos impostos, a implementação de um novo sistema público de saúde, o fim das propinas nas universidades públicas para os mais desfavorecidos, a sua mudança de posição que fez com que passasse a defender a legalização da canábis, a defesa do aumento do salário mínimo no país, do fim do usos de pesticidas perigosos na agricultura, ou as propostas de legalização de migrantes e de banir o uso de armas automáticas.
Os seus apoiantes destacam ainda a sua postura combativa em vários momentos: quando se opôs à ordem executiva de Trump que proibia a entrada de pessoas de alguns países de maioria muçulmana; quando criticou a administração por prender as crianças migrantes em centros longe dos país; ao enfrentar Mark Zuckerberg sobre o destino dos dados dos utilizadores do Facebook; ou todo o seu papel durante a tentativa de destituição de Trump.
O outro lado, de quem não a acha assim tão progressista, sublinha que apesar do marketing eficaz, falha sucessivamente nas questões estruturais. Por exemplo, o seu plano de Medicare for All é o contrário do de Bernie Sanders, sendo vantajoso para as grandes empresas, uma vez que pretende expandir o seu papel no sistema de saúde norte-americano.
Outro exemplo é o plano de alívio das dívidas contraídas pelos estudantes do ensino superior para poderem prosseguir estudos, também ele feito em competição com o de Sanders. A versão de Bernie era a de um plano universal. A de Kamala tinha um tecto de 20 mil dólares, aplicava-se só a bolseiros federais e limitava-se aos “empreendedores” que criassem uma startup.
Na política externa é classificada como um “falcão” pela sua postura militarista, sendo próxima do lóbi pró-Israel AIPAC, tendo subscrito a proposta do conservador Marco Rubio contra a declaração do Conselho de Segurança da ONU que declarava que os colonatos israelitas na Palestina violavam a lei internacional e reunido em 2017 com Netanyahu. Votou igualmente a favor de sanções conjuntas à Coreia do Norte, Rússia e Irão.
Num artigo publicado na Jacobin em 2017, Branko Marcetic classifica-a como tendo duas caras, escrevendo que “Harris emulou a abordagem Obama, apresentando uma combinação de algumas vitórias progressistas notáveis e uma retórica agradável com uma evasão constante de mudança estrutural – conjugada, em alguns casos com políticas que estão longe de serem progressistas”.
Ao analisar desta feita a sua escolha para parceira de Biden, o mesmo autor considera que não houve uma surpresa, já que são políticos “semelhantes” na sua “flexibilidade com a verdade” e na “prossecução de objetivos de direita”.
Para o analista canadiano esta nomeação “consolida” a derrota da esquerda do Partido Democrata e a vitórias da “fação dos negócios” e da elite. Considera que o seu verdadeiro valor para Biden não está onde a maior parte dos analistas o tem colocado, na sua ascendência, que não lhe valeu votos na disputa das primárias, ou na sua capacidade retórica agressiva, que falhou em toda a linha nessa mesma campanha. Está na “sua popularidade entre a classe dos doadores, tendo reunido quantidades massivas de dinheiro durante a sua campanha, não apenas das grandes empresas tecnológicas, mas também de Wall Street, das farmacêuticas e seguradoras e de vários bilionários”, oferecendo ainda uma alternativa de sucessão que poderia “neutralizar” as possibilidades da esquerda do partido o voltar a disputar.
Assim, ao contrário de quem diz que Harris é uma solução de compromisso que mobiliza o eleitorado de esquerda, Marcetic defende que ela é afinal o “par neoliberal” que melhor se adequa à visão do mundo de Joe Biden.