Quando Pinho criou o Banco EDP

08 de janeiro 2019 - 11:08

A dívida tarifária, dos consumidores de eletricidade à EDP, foi uma decisão de Manuel Pinho. Ao fazer de banco, a EDP ganhou centenas de milhões de euros sem produzir um quilowatt-hora.

porJorge Costa

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A dívida tarifária, dos consumidores de eletricidade à EDP, foi uma decisão de Manuel Pinho. A EDP ganhou centenas de milhões de euros sem produzir um quilowatt-hora
A dívida tarifária, dos consumidores de eletricidade à EDP, foi uma decisão de Manuel Pinho. A EDP ganhou centenas de milhões de euros sem produzir um quilowatt-hora

Em finais de 2006, com a alta do preço da energia e com o peso das rendas elétricas, os custos dos sistema elétrico excediam largamente o que era pago nas faturas. A entidade reguladora apontou para aumentos de 15,7% no ano seguinte. José Sócrates e Manuel Pinho não queriam enfrentar o efeito político desses aumentos, mas também recusaram o remédio proposto pelo regulador: reduzir as rendas garantidas às empresas, tal fizeram outros países.

A decisão é então comprar tempo - e entregar a conta aos consumidores: Pinho mantém as rendas às empresas mas limita os aumentos a 6%. O que fica por pagar converte-se em “défice tarifário”, um valor cujo pagamento (com juros) fica para os dez anos seguintes. Nasce a dívida tarifária e a EDP torna-se a instituição de crédito do sistema elétrico.

Juros na fatura elétrica, mais uma renda

O caso deu brado e levou à demissão do presidente da ERSE, a entidade reguladora. Pela mesma altura, já se preparava o negócio da extensão por 25 anos da concessão das barragens, que assegurou à EDP privada o quase monopólio das barragens em Portugal. Um dos argumentos para a urgência de atribuir essa concessão, sem concurso, logo em 2007, foi precisamente o estado de necessidade... criado pela dívida tarifária. Mas a receita das barragens não bastou para resolver o problema.

Evolução da dívida tarifária - gráfico da ERSEEvolução da dívida tarifária - Gráfico da ERSE

Ao aceitar “emprestar” aos consumidores o que não cobrava nas faturas, a EDP não deveria ser prejudicada, devendo recuperar em juros os seus próprios custos na obtenção de financiamento bancário. Certo. Mas também não deveria ganhar. Não sendo um banco, a EDP deveria cobrir os seus custos sem acumular vantagens pagas pelos consumidores. Porém, essa neutralidade não aconteceu.

Entre 2008 e 2018, a EDP cobrou 1115 milhões de euros em juros e não só cobrou sempre (aos consumidores) acima daquilo que pagava (aos bancos), como nunca devolveu a diferença. Há ganhos ilegítimos de pelo menos 250 milhões de euros que devem ser devolvidos aos consumidores.

Entre 2008 e 2018, a EDP cobrou, só em juros, 1115 milhões de euros. E não apenas cobrou (aos consumidores) sempre acima daquilo que pagava (aos bancos), como nunca devolveu a diferença. Foi Manuel Pinho quem deixou a porta aberta para este negócio.

Todo o poder à EDP

No decreto em que Pinho criou a dívida tarifária, ficou também definida a possibilidade de a titularizar, isto é, a EDP tinha o direito de vender à banca partes da dívida tarifária. Sendo altos os juros pagos pelos consumidores em cada ano, os bancos interessaram-se por serem os credores desta dívida e para isso ofereceram à EDP mais-valias milionárias. Esta titularização seria boa notícia para os consumidores, se a EDP lhes devolvesse a generosa diferença recebida. Mas Pinho não fixou isso na lei. Assim, estas operações de titularização da dívida tarifária representam 250 milhões de lucros só nos difíceis anos entre 2013 e 2017, tal como referem os relatórios e contas da EDP.

Juros da dívida tarifária - gráfico da ERSE
Juros da dívida tarifária - gráfico da ERSE

Perguntas sem resposta

Porque razão Manuel Pinho deixou nas mãos da EDP a opção pela titularização? Porque não manteve esse poder no governo? Porque não legislou a recuperação destas mais-valias da titularização para diminuir o peso dos juros na tarifa elétrica? O Bloco de Esquerda colocou estas questões ao ex-ministro Manuel Pinho e ao administrador da EDP João Manso Neto (primeira resposta deste 04:01:20; insistência do Bloco 04:17:32; segunda resposta 04:36:40), mas não obteve respostas consistentes.

Estes enormes ganhos da EDP são inteiramente ilegítimos. A decisão sobre a venda desta dívida deve passar a ser do governo. Os ganhos financeiros, passados e futuros, realizados com a dívida tarifária e com a sua titularização devem ser devolvidos aos consumidores.

CMEC: quando a EDP voltou preferir o juro alto

Os Custos de Manutenção do Equilíbrio Contratual (CMEC) são a compensação paga pelos consumidores à EDP para manter a rentabilidade garantida pelos antigos Contratos de Aquisição de Energia, eliminados em 2007 com a introdução do chamado mercado ibérico de eletricidade. Os CMEC tinham duas componentes: a variável, que se acrescenta aos ganhos da EDP no mercado elétrico para manter a rentabilidade dos contratos anteriores; e a fixa, que a EDP teria direito a receber à cabeça - 830 milhões. Porém, este pagamento foi anualizado ao longo de duas décadas, com uma taxa de juro de 7,55%. Ora, a EDP podia ter optado por antecipar esta receita. Bastaria para isso, também aqui, titularizar esta dívida do sistema elétrico - isto é, vender à banca o direito a receber estes 830 milhões.

Se o tivesse feito em 2007 ou depois, os consumidores teriam ganho com isso, porque os bancos detentores desta dívida só receberiam, em vez dos 7,55% pagos à EDP, os 5,22% que Pinho fixou em despacho. Em titularizações seguintes, o governo poderia vir a rever esta taxa. Mas a EDP podia escolher e preferiu manter a dívida dos CMEC no seu balanço até hoje, cobrando sempre o juro mais alto aos consumidores.

Só em 2014 essa taxa de 7,55% foi reduzida para 4,72% (mas o governo PSD/CDS ofereceu à EDP generosas contrapartidas, num acordo secreto que só se tornou público na Comissão de Inquérito). Já em setembro de 2017, na revisão do processo dos CMEC, a ERSE decidiu a devolução pela EDP de 125 milhões cobrados em excesso nos anos anteriores a 2014.

Jorge Costa
Sobre o/a autor(a)

Jorge Costa

Dirigente do Bloco de Esquerda. Jornalista.
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