Quão desiguais e pobres somos nós? A desigualdade e a pobreza na sociedade portuguesa contemporânea

10 de março 2013 - 0:48

No próximo sábado, 16 de março, decorre em Lisboa o colóquio “Desigualdade e pobreza”. Neste texto, Nuno Alves, que intervirá no colóquio, alerta: “Num país tão desigual e injusto como é o nosso, a diminuição substancial da provisão pública de bens e a falência dos mecanismos de suporte social poderão condenar à miséria eterna uma parte muito significativa da população”.

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Acha que se tivesse onde dormir estava aqui?” Pergunta o transmontano, olhos muito brilhantes, enquanto de joelhos no chão endireita os cartões que lhe vão servir de cama. Durante o percurso a jornalista continua a questionar o sem-abrigo que vagueia pela noite: “Tens inimizades?” A resposta do homem atinge-nos com a violência dum murro no estômago: “Na rua o que é que se tem? Outras pessoas que não têm nada como nós. Que estão à mercê como nós. O que é que fazemos? Consome-se (álcool, drogas) e não se tem paciência para nada. O que é que acontece quando não há paciência para nada? As pessoas discutem, zangam-se. Mas não se tornam inimigos. Não se tornam nada.1.

Num estudo conhecido, Thomas Piketty e Emmanuel Saez2, observaram que no período que mediou o início do século XX até à II Guerra Mundial, cerca de 45% dos rendimentos nos EUA estavam nas mãos da classe mais abastada. A situação alterou-se progressivamente com a introdução das políticas keynesianas (redução para 30%), mantendo-se estável até inícios dos anos 70. A partir dessa altura, e mais intensamente a partir dos anos 80, a fração desses rendimentos começa de novo a aumentar, atingindo nos anos 2000 valores correspondentes aos da primeira metade do século. A sociedade norte-americana é atualmente das mais desiguais do mundo.

Os fatores que contribuíram para esta inflexão de tendência são bem conhecidos: a redução de impostos nos rendimentos mais elevados, o crescimento das remunerações dos altos quadros e dirigentes, transformações profundas nas relações laborais, desregulação e a globalização económica, e finalmente, a reorganização das políticas públicas (advento do monetarismo)3.

O estudo recente “Growing Unequal? Income Distribution and Poverty in OCDE Countries4, vem colocar em evidência esta realidade: desde meados dos anos 80 até à primeira década de 2000, a desigualdade de rendimento das famílias aumentou na generalidade dos países ocidentais. Os EUA e o Reino Unido apresentaram os coeficientes de Gini mais elevados (as maiores desigualdades de rendimentos nas respetivas populações), e as taxas mais elevadas de transmissão intergeracional de desigualdades de rendimento. No lado oposto, as menores desigualdades de rendimento e as maiores mobilidades intergeracionais situavam-se a norte da Europa (Dinamarca, Noruega e Finlândia).

Uma análise mais recente, “Divided We Stand. Why Inequality Keeps Rising?”[4], chega à conclusão que nos últimos 20 anos as desigualdades se acentuaram no contexto europeu. Durante este lapso de tempo, os rendimentos dos 10% mais ricos aumentaram nove vezes mais do que a percentagem dos 10% mais pobres. No caso específico de Portugal, os estudos demonstram que as desigualdades estavam a diminuir, mas com o advento da crise financeira e a implementação de políticas recessivas desde 2008, tudo aponta para que a situação se tenha invertido, estando a agravar-se5.

O conceito “desigualdades sociais” é utilizado para caracterizar as diferenças que se consideram injustas6, delas emergem as situações de pobreza e de exclusão social. Traduzindo a taxa de risco de pobreza -a percentagem da população com rendimentos inferiores a 60% do rendimento mediano por adulto equivalente7 - os fenómenos de pobreza e de exclusão não são dissociáveis da distribuição dos rendimentos mais baixos e do nível de desigualdade existente. Este é um dos problemas mais graves que a sociedade portuguesa atravessa.

Um país desigual e pobre no contexto europeu.

No seu mais recente estudo sobre desigualdade económica em Portugal, Carlos Farinha Rodrigues8 constata que Portugal permanece como um dos países mais desiguais da União Europeia, isto seja quais forem os indicadores de desigualdade utilizados. Apesar da proporção do rendimento auferido pelos 5% da população mais pobre ter duplicado no período 1993 - 2009, o facto é que o “share” da população de mais elevados rendimentos aumentou ainda mais (67%).

Durante o período de 1985 a 2009, constatou-se a existência dum forte agravamento das desigualdades salariais. O índice de Gini passou de 28,4% para 34,4%. Os índices de desigualdade atingiram taxas de crescimento superiores a 20%, sendo que os maiores rendimentos tiveram ganhos bem superiores (24%) aos rendimentos mais baixos (dos trabalhadores indiferenciados), que auferiram ganhos mínimos (6,9%).

Segundo Farinha Rodrigues, a desigualdade económica está relacionada com o desproporcional aumento dos ganhos no segmento de topo. Quanto mais subimos na escala de rendimento maior é o ganho: os 10% de salários mais elevados obtiveram uma subida de 24%, os 1% dos salários mais elevados tiveram um incremento de 45%, e nos 0,1% dos salários mais elevados dos mais elevados o acréscimo foi de 61%.

Quanto à distribuição geográfica: a cidade de Lisboa e a ilha da Madeira são as regiões com maiores níveis de desigualdade remuneratória, sendo nestas regiões a remuneração média de um trabalhador qualificado quase 5 vezes superior à de um não qualificado (€ 2.678 compara com € 563)9.

A pobreza é outro assunto relevante. Os dados comparados são elucidativos: o risco de pobreza em Portugal, após transferências sociais, é superior à média dos 27 países da UE; atingindo 18% da população, sendo a média europeia de 16,9%10. Se subtrairmos as transferências sociais, a incidência da pobreza sobe a pique, atingindo 26,4%, o que demonstra que as transferências sociais reduzem a incidência em pelo menos 8,5 pontos percentuais. Facto também evidente na análise do indicador de eficácia das políticas sociais, que registou entre 1993 a 2009, um aumento de 19,4% para 32,3%11. Apesar disso, cerca de 24% da população portuguesa permanece ainda em risco de pobreza. Portugal é assim o terceiro país com maior número de pobres no contexto europeu. Pior que nós apenas se encontram a Espanha e a Grécia.

O papel do Estado no domínio da redistribuição de rendimentos e na redução das desigualdades sociais não é pois nada negligenciável. Existe uma relação causa-efeito entre Estado-Providência e justiça social, e são as políticas públicas que respondem por isso.

Num país tão desigual e injusto como é o nosso, a diminuição substancial da provisão pública de bens e a falência dos mecanismos de suporte social poderá condenar à miséria eterna uma parte muito significativa da população.

Se a realidade empírica nos aponta o caminho, será legítimo ignorá-lo? Poderá a ideologia dominante contrariar a evidência da razão? Pois bem, depende da nossa vontade. O futuro é algo que se constrói dia a dia e depende sempre de nós.

Nuno Alves


Referências Bibliográficas:

1 Sem-abrigo: “Escondidos” nas ruas e nas estatísticas”, Andreia Sanches, Público, 25/11/2012.

2 Piketty, Thomas e Emmanuel Saez (2007), “Income and wage inequality in the United States, 1913-2002”.

3 Costa, António Firmino (2012), Desigualdades Sociais Contemporâneas, Lisboa, Mundos Sociais.

4 OCDE (2011), Divided We stand. Why inequality keeps rising, Paris, OECD

5 Costa, António Firmino (2012), op. cit.

6 Therborn, Göran (org) (2011), Inequalities of the world. New Theoretical frameworks, multiple empirical approaches, Londres, Verso.

7 Rodrigues, Carlos Farinha (cord.) (2012), Desigualdade Económica em Portugal, Lisboa, FFMS.

8 Rodrigues, Carlos Farinha (cord.) (2012), op. cit.

9 Carmo, Miguel Renato e Frederico Cantante (2010), “Múltiplas dualidades. O efeito território nas desigualdades de remuneração”, in Renato Miguel do Carmo (org.) (2010), “Desigualdades Sociais 2010. Estudos e Indicadores”, Lisboa, Mundos Sociais.

10 EUROSTAT – “News Release, 171/2012, 3/12”, disponível online.

11 Rodrigues, Carlos Farinha (cord.) (2012), op. cit.