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Primeira sala de consumo vigiado acolheu o triplo dos utentes previstos

Instalado no Vale de Alcântara, em Lisboa, o equipamento já registou 862 utentes nos primeiros seis meses de funcionamento. São “números surpreendentes”, diz a diretora da associação que gere o espaço.
Técnicos da Associação Ares do Pinhal fazem o controlo da sala de consumo vigiado instalada na zona do Vale de Alcântara. Foto de António Cotrim/Lusa

A iniciativa demorou muitos anos a sair do papel e graças à insistência dos autarcas do Bloco de Esquerda foi possível abrir a primeira sala de consumo vigiado de drogas, situada perto do antigo Casal Ventoso, no Vale de Alcântara, em Lisboa.

Quando começou a receber os primeiros utilizadores de drogas, em 18 de maio, a expetativa da diretora técnica da associação Ares do Pinhal, que gere aquele espaço, acabou por ficar muito aquém da capacidade de atração deste equipamento: 862 utentes registados em seis meses.

Elsa Belo disse à agência Lusa que ”estes números têm vindo a ser surpreendentes para nós porque inicialmente tínhamos feito um diagnóstico desta zona, e imaginávamos que poderiam circular aqui neste bairro cerca de 300 consumidores e que iríamos ao fim do ano [de projeto piloto da sala de consumo vigiado] ter contacto com esses 300 consumidores”. No fim do primeiro semestre de funcionamento, o número de utilizadores quase triplicou essa expetativa.

Antes da abertura de portas, a associação fez um trabalho de contacto e sensibilização não apenas dos utilizadores que consumiam drogas a céu aberto naquela zona, mas também com os moradores, no sentido de afastar receios, convidando-os a conhecer o espaço e a perceber a que se destinava.

"A comunidade já estava prejudicada por ter de conviver com o consumo destas pessoas à sua porta. A abertura deste espaço vem justamente retirar o consumo da rua, retirar de perto das famílias, de crianças que vão para a escola, dos idosos que vão até ao centro de saúde ou que vão às compras", explica Elsa Belo. Agora, são os próprios moradores que encaminham os utentes para a sala de consumo, fazem doações de roupa e até a padaria do bairro entrega o excedente do pão. Os técnicos também são alertados pelos moradores quando detetam seringas abandonadas no espaço público, no sentido de fazerem a recolha. "Há toda esta ligação à comunidade que revela que há alguma gratidão em relação ao trabalho que estamos aqui a fazer", resume a diretora técnica do espaço.

Dos 862 utentes, cerca de 200 frequentam o espaço diariamente, usando-o para consumir de forma fumada ou injetada na presença de enfermeiros e psicólogos e com acesso a material esterilizado. São prontamente assistidos em caso de overdose - aconteceu uma vez desde a abertura e foi revertida pelos enfermeiros - ou outra necessidade. Os profissionais de saúde realizam também rastreios médicos a doenças como o HIV, hepatite ou tuberculose e serviço de enfermagem com tratamento de pequenas feridas. Recentemente, o gabinete de enfermagem também começou a dispensar medicação prescrita nos hospitais ou centros de saúde. Existem espaços para higiene pessoal e refeições, além de um café para convívio.

"Hoje há mais gente a injetar do que há cinco anos"

O trabalho desta equipa de 19 pessoas não se resume ao interior do edifício. "Também temos a equipa comunitária que faz uma saída todos os dias, que percorre todo o bairro com o objetivo de recolher todo o material de consumo que é abandonado, tentando assim devolver ao bairro alguma salubridade, não deixar dentro do bairro os resíduos do consumo", acrescenta Elsa Belo.

"O que nós queremos é que esta seja uma medida que vá muito para além do ato de consumo e do acompanhamento do ato de consumo, mas que consiga imprimir alguma mudança na vida das pessoas, mudança em relação aos hábitos de saúde, mas também mudança ao nível do seu futuro. Se for possível que estas pessoas tenham algum suporte para se ligar, por exemplo, a centros de tratamento, então esse é o nosso desejo", prossegue a diretora técnica da sala de consumo vigiado.

A agência Lusa falou também com o enfermeiro Paulo Marques, que trabalha há 20 anos em projetos ligados à toxicodependência em Lisboa e diz que  "comparativamente há 20 anos, há muito menos pessoas a injetar", mas "garantidamente que hoje há mais gente a injetar do que há cinco anos", um aumento que justifica com o impacto da pandemia e da crise económica. Um aumento que se nota não apenas nos utentes atendidos mas também na quantidade de seringas recolhidas na zona envolvente. Uma das funções dos enfermeiros passa por prevenir as overdoses, o que por vezes obriga às “negociações” com os utentes acerca da quantidade que pretende consumir. Mas falta ainda outra dimensão, que está a ser preparada através de um protocolo com uma entidade credenciada: a do controlo do tipo e da qualidade das substâncias que os utilizadores trazem.

Segundo os dados recolhidos junto dos utentes, a grande maioria dos utilizadores (85%) são homens e a média de idades é de 44 anos O utilizador mais velho tem 70 anos e o mais novo 20 anos. 72% dos utentes fazem consumo fumado e o tempo máximo de permanência no espaço de consumo, fixado em negociação com os consumidores, é de 40 minutos.

Com o projeto a meio do primeiro ano da fase experimental, o sucesso que apresenta não deixa dúvidas quanto à necessidade de se tornar definitivo. Até porque, como diz Elsa Belo, “a relação do custo-benefício é gritante neste programa”: “Basta evitarmos um HIV por ano já e paga o programa todo do ano”, exemplifica.

 

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