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Porquê o Plano Marshall?

Desde o final da Segunda Guerra Mundial até hoje, as grandes potências recusaram criar um Plano Marshall para os países em desenvolvimento (PED), mantendo-os no endividamento. Desta forma, conseguem extrair o maior rendimento possível sob a forma de pagamento de dívida e também e sobretudo impor políticas de acordo com os seus interesses e assegurar a lealdade dos PED às instituições internacionais.

O Banco Mundial, como o seu nome inicial indica (Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento – BIRD), tinha dois objetivos principais: 1. Contribuir para o financiamento da reconstrução dos países destruídos pela Segunda Guerra Mundial; 2. Conceder empréstimos para apoiar o desenvolvimento de países atrasados (expressão usada com frequência antes da entrada no vocabulário da expressão “países em desenvolvimento”). Os Estados Unidos, que dão o tom ao Banco Mundial na cena internacional, decidem dispensar o Banco Mundial na missão de reconstrução da Europa e põem em prática unilateralmente um programa financeiro destinado a pôr de pé o aparelho produtivo europeu na sua zona de influência. O Plano Marshall substitui a ação do Banco Mundial, já que os Estados Unidos chegaram à conclusão que fazer donativos à Europa para reconstrução será mais eficaz e rentável do que conceder empréstimos. Essa política bilateral visa o reforço do bloco ocidental capitalista, dominado por Washington, contra o bloco de Leste, dominado pela URSS.

As autoridades dos Estados Unidos tiram lições dos erros cometidos nos anos vinte e trinta

No final da Primeira Guerra Mundial, com o Tratado de Versalhes, os vencedores impõem, à Alemanha, montantes consideráveis a serem pagos a título de reparações de dívida e de guerra. A Alemanha depara-se, de imediato, com dificuldades de pagamento e a insatisfação social aumenta. Em 1929, dá-se o crash de Wall Street, que desencadeia uma crise económica mundial. Os Estados Unidos reduzem drasticamente os fluxos de capitais para o exterior. A Alemanha interrompe os pagamentos à França, à Bélgica e à Grã-Bretanha, que, por sua vez, deixam de pagar as suas dívidas aos Estados Unidos. O mundo industrializado afunda-se na recessão e instala-se um desemprego massivo. O comércio internacional entra em declínio.
Prevendo o fim da Segunda Guerra Mundial, as autoridades de Washington decidem adotar uma atitude radicalmente diferente da que foi adotada desde o fim da Primeira Guerra Mundial e até ao início dos anos trinta.
Optam pela implantação das instituições de Bretton Woods e das Nações Unidas. É o jogo institucional internacional.
Trata-se, agora, de perceber qual é a política económica bilateral recomendada pelas autoridades de Washington.

Oferecer dinheiro em vez de o emprestar

A preocupação do governo dos Estados Unidos, no final da Segunda Guerra Mundial, é manter o pleno emprego conseguido devido ao colossal esforço de guerra. Washington pretende igualmente assegurar um excedente comercial através das relações estabelecidas entre os Estados Unidos e o resto do mundo. Ora, os principais países industrializados, capazes de importar mercadorias dos Estados Unidos, estão literalmente sem dinheiro. Para que os países europeus possam comprar produtos norte-americanos, é preciso fornecer-lhes dólares em grande quantidade.
Mas, sob que forma? Donativos ou empréstimos?
Muito simplesmente, o raciocínio dos Estados Unidos é o seguinte: se emprestarmos aos europeus, que estão do nosso lado, o dinheiro que eles vão utilizar para nos comprarem o que necessitam para reconstruirem as suas economias, com que dinheiro nos vão pagar? Ficarão sem os dólares que emprestarmos, porque serão utilizados para fazer compras no nosso país. Logo, só há três possibilidades. Primeira possibilidade: pagarem-nos em espécie. Segunda possibilidade: pagarem em dólares. Terceira possibilidade: dar-lhes-emos o dinheiro, durante o tempo que necessitem, para se reerguerem.

Em relação à primeira possibilidade: se nos pagarem em espécie em vez de nos pagarem em dólares, os produtos deles farão concorrência aos nossos, no nosso mercado interno. O pleno emprego ficará ameaçado no nosso país, os lucros das nossas empresas cairão. Essa não é uma boa solução.
Em relação à segunda possibilidade: se nos pagarem em dólares. Os dólares que lhes emprestarmos serão gastos na compra dos nossos produtos. Consequentemente, para que nos possam pagar, deveremos emprestar-lhes, uma segunda vez, o mesmo montante (que nos devem) mais os juros. O risco de caírem num ciclo vicioso de endividamento (bloqueando ou diminuindo novamente o bom andamento dos negócios) conjuga-se com o risco mencionado na primeira possibilidade. Se os europeus tentarem não acumular dívidas connosco, virão vender os seus produtos no nosso mercado, concorrendo com as nossas empresas. Assim, conseguirão uma parte dos dólares necessários para nos pagarem. Mas isso não será suficiente para pagar a dívida. Além do mais, fará diminuir o emprego no nosso país.
Resta a terceira possibilidade: mais do que conceder empréstimos massivos em dinheiro aos europeus (via Banco Mundial ou de outra forma), convém dar-lhes, em dólares, a quantia necessária para a reconstrução das suas economias num período relativamente curto. Os europeus utilizarão os dólares recebidos para comprarem bens e serviços fornecidos pelos Estados Unidos. Isso estimulará as exportações norte-americanas e, consequentemente, o pleno emprego. Uma vez concluída a reconstrução, os europeus, não endividados, estarão em condições de pagar a fatura do que nos comprarem.
As autoridades dos Estados Unidos concluem que é melhor avançar com os donativos e lançam o Plano Marshall.

O Plano Marshall

Entre 1948 e 1951, os Estados Unidos destinam mais de 13 mil milhões de dólares, em dinheiro da época (sendo 11 mil milhões em donativos), para a reconstrução de dezassete países europeus da Organização Europeia para a Cooperação Económica (OECE, atualmente OCDE). O montante total da ajuda corresponde, aproximadamente, a 90 mil milhões de dólares atuais. Os Estados Unidos exigem, aos Estados que aceitam a ajuda, várias contrapartidas. Primeiro, que os países europeus coordenem as despesas de reconstrução no interior da OECE. Para reforçarem o bloco oposto ao bloco soviético, os Estados Unidos contribuíram para a cooperação europeia, prelúdio da construção europeia. Em seguida, os Estados Unidos exigem que o dinheiro sirva para comprar produtos industriais norte-americanos.

Despesas gerais do Plano Marshall

Assistência económica, de 3 de abril de 1948 a 30 de junho de 1952 (em milhões de dólares, valores da época).

 País                                                             Total                  Donativos           Empréstimos

Total para todos os países $13 325,8 $11 820,7 $1 505,1
Áustria 677,8 677,8
Bélgica-Luxemburgo 559,3 491,3 68,0 a
DINAMARCA 273,0 239,7 33,3
França 2 713,6 2 488,0 225,6
Alemanha (RFA) 1 390,6 1 173,7 216,9
Grécia 706,7 706,7
Islândia 29,3 24,0 5,3
Irlanda 147,5 19,3 128,2
Itália (incluindo Trieste) 1 508,8 1 413,2 95,6
Holanda (*Indonésia) b 1 083,5 916,8 166,7
Noruega 255,3 216,1 39,2
Portugal 51,2 15,1 36,1
Suécia 107,3 86,9 20,4
Turquia 225,1 140,1 85,0
Reino Unido 3 189,8 2 805 384,8
Regional c 407,0 407,0

Notas :
a. O total de empréstimo inclui 65 milhões para a Bélgica e 3 milhões para o Luxemburgo.
b. Ajuda do Plano Marshall às Índias Holandesas (Indonésia), anexadas à Holanda antes da transferência de soberania em 30 de dezembro de 1949.
c. Inclui a contribuição dos Estados Unidos para o fundo permanente social europeu dos sindicatos: 361,4 milhões. Esse maná financeiro destinou-se principalmente a fortalecer os sindicatos que atuam contra a influência comunista.

Além dos donativos concedidos no âmbito do Plano Marshall, é preciso acrescentar a anulação parcial da dívida da França aos Estados Unidos (2 mil milhões de dólares anulados). Do mesmo modo, a Bélgica beneficiou de uma redução de dívida como compensação pelo urânio fornecido para a fabricação das duas primeiras bombas atómicas americanas, lançadas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, que provocaram o primeiro holocausto nuclear. O urânio provinha da mina de Shinkolobwé (próxima de Likasi, ex-Jadotville), situada na província de Katanga, no Congo Belga. Primeira medida, a Bélgica beneficia de uma anulação de dívida graças à sua colónia, onde explora os recursos naturais. Segunda medida, quinze anos mais tarde, deixa ao Congo independente as dívidas que contraiu para explorar os recursos naturais e o povo (ver: «Empréstimos odiosos às metrópoles coloniais», http://cadtm.org/O-Banco-mundial-ao...).

Conclusão:

Desde o final da Segunda Guerra Mundial até hoje, as grandes potências recusaram criar um Plano Marshall para os países em desenvolvimento (à exceção da Coreia do Sul e de Taiwan, ver mais à frente). Os empréstimos a juros constituíam o instrumento fundamental para supostamente financiar o desenvolvimento dos países do Terceiro Mundo. Negar-lhes um Plano Marshall indica que os credores não querem seriamente que esses países se desenvolvam e desendividem. As grandes potências acreditam que é interessante manter no endividamento o maior número possível de países em desenvolvimento (PED), de modo a extraírem o maior rendimento possível sob a forma de pagamento de dívida. Isso permite também e sobretudo impor políticas de acordo com os seus interesses e assegurar a lealdade dos PED às instituições internacionais.

Aquilo que os Estados Unidos realizam nos países industrializados, destruídos pela guerra, via Plano Marshall, é concedido de forma excecional à Coreia do Sul e a Taiwan, dois países em desenvolvimento aliados dos Estados Unidos, que ocupavam um lugar estratégico como satélites da União Soviética e da China. Os Estados Unidos concederam, sob a forma de donativos, montantes claramente superiores aos empréstimos concedidos pelo Banco Mundial aos restantes PED. É, em particular, o caso da Coreia do Sul e de Taiwan que, a partir dos anos cinquenta, receberam uma ajuda determinante, que será um elemento decisivo para o seu sucesso.
Para se ter uma ideia, entre 1954 e 1961, a Coreia do Sul recebeu, sob a forma de donativos dos Estados Unidos, uma soma superior ao conjunto dos empréstimos concedidos pelo Banco aos países independentes do Terceiro Mundo (inclusive a Índia, o Paquistão, o México, o Brasil e a Nigéria). A Coreia do Sul recebeu, sob a forma de donativos feitos pelos Estados-Unidos, mais de 2,5 mil milhões de dólares, entre 1953 e 1961. No entanto, os empréstimos concedidos pelo Banco, ao conjunto dos PED independentes, no mesmo período, orçaram em 2,323 mil milhões de dólares. Os donativos feitos a Taiwan alcançaram 800 milhões de dólares durante esse período5. Ocupando um lugar estratégico, face à China e à URSS, a pequena e agrária Coreia do Sul, habitada por menos de 20 milhões de habitantes, recebeu, por esse motivo, os favores dos Estados Unidos. No âmbito das políticas económicas, o Banco Mundial e os Estados Unidos toleravam, na Coreia e em Taiwan, o que recusavam à Argentina, ao Brasil ou ao México. Foi o que desenvolvi no artigo sobre a Coreia do Sul entre 1945 e os anos noventa. (ver Eric Toussaint, «Corée du Sud: le miracle démasqué», publicado em março de 2006,
http://cadtm.org/Coree-du-Sud-le-mi...).

Tradução: Maria da Liberdade
Revisão: Rui Viana Pereira

Série : Os setenta anos de Bretton Woods, do Banco Mundial e do FMI (Parte 5)
Artigo publicado
no CADTM

Sobre o/a autor(a)

Politólogo. Presidente do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo
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