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Pode a religião servir para o progresso social?

As lutas emancipatórias têm juntado quem acredita e não acredita no céu, especialmente na América Latina graças à teologia da libertação. Porém, esta aliança parece inconcebível com apoiantes ultra-ortodoxos do islamismo. Porquê? Por Gilbert Achcar.
15ª Estação da Cruz da América Latina, de Adolfo Pérez Esquivel. Imagem de Outras Palavras.
15ª Estação da Cruz da América Latina, de Adolfo Pérez Esquivel. Imagem de Outras Palavras.

O facto de a religião ainda sobreviver no início do quinto século após a revolução científica constitui a priori um enigma para uma visão positivista do mundo. No entanto, se sobreviveu até ao nosso tempo como parte da ideologia dominante, também produz ideologias combativas, que se opõem às condições sociais ou políticas prevalecentes. Com inegável sucesso. Duas destas ideologias têm dado muito que falar nas últimas décadas: a teologia da libertação cristã e o fundamentalismo islâmico.

A correlação entre a forte ascensão de cada um destes movimentos e o destino da esquerda secular nas suas respetivas regiões representa uma indicação reveladora da sua própria natureza. Enquanto que o destino da teologia da libertação converge com o da esquerda secular na América Latina – onde é de facto entendida como uma componente da esquerda em geral – o fundamentalismo islâmico desenvolveu-se na maioria dos países de maioria muçulmana como um concorrente. Ele substituiu a esquerda na tentativa de canalizar o protesto contra o que Karl Marx chamava a “miséria real” e contra o Estado e a sociedade considerados responsáveis por ela. Estas correlações opostas – positivas, no primeiro caso, negativas, no segundo – refletem uma diferença profunda entre os dois movimentos históricos.

A teologia da libertação é a principal manifestação moderna do que Michael Löwy chama, tomando um conceito cunhado por Max Weber, a afinidade eletiva entre o cristianismo e o socialismo [1]. Mais precisamente, a afinidade eletiva de que aqui falamos diz respeito à herança do cristianismo primitivo – cuja extinção permitiu ao cristianismo tornar-se a ideologia institucionalizada da dominação social existente – e o utopismo “comunístico” [2]. Em 1524-1525, o teólogo Thomas Müntzer formulou assim em termos cristãos um programa para a revolta dos camponeses alemães, a que Friedrich Engels chamou em 1850 "uma antecipação na imaginação do comunismo".

Esta mesma afinidade eletiva explica porque é que a onda mundial de radicalização política da esquerda, que começou nos anos 60, foi capaz de assumir em parte uma dimensão cristã, particularmente nos países periféricos onde a maioria da população era cristã, pobre e oprimida. Podemos observá-lo na América Latina, onde a radicalização foi impulsionada, desde o início da década de 1960, pela revolução cubana.

A grande diferença entre esta onda moderna de radicalização e o movimento dos camponeses alemães analisados por Engels reside no facto de, no caso da América Latina, a corrente cristã do utopismo comunístico se combinar, não tanto com uma nostalgia pelas formas de vida comunitárias do passado (embora fosse possível encontrar a mesma dimensão entre os povos indígenas), mas com aspirações socialistas modernas, como as mantidas pelos revolucionários marxistas latino-americanos.

Sobre os escombros da esquerda

O fundamentalismo islâmico, por outro lado, cresceu sobre o cadáver em decomposição do movimento progressista. O início da década de 1970 trouxe o declínio do nacionalismo radical apoiado pelas classes médias; um declínio simbolizado pela morte de Gamal Abdel Nasser, em 1970, três anos após a sua derrota frente a Israel na guerra dos Seis Dias.

Ao mesmo tempo, forças reacionárias que utilizavam o Islão como bandeira ideológica espalharam-se pela maior parte dos países de maioria muçulmana, alimentando as chamas do fundamentalismo para incinerar os restos da esquerda. Preenchendo o vazio deixado pelo colapso deste movimento, o fundamentalismo depressa se tornou no principal vetor de oposição ao domínio ocidental, uma dimensão que tinha estado presente desde o início, mas que tinha sido atenuada durante a era nacionalista secular.

A oposição ao domínio ocidental intensificou-se novamente no Islão xiita após a revolução islâmica de 1979, no Irão, e voltou à linha da frente no Islão sunita, no início dos anos 90, quando os destacamentos armados de fundamentalistas passaram da luta contra a União Soviética para o confronto com os Estados Unidos. Esta mudança de frente veio após a derrota e desintegração da URSS e o consequente regresso militar americano ao Médio Oriente.

Desta forma, dois tipos principais de fundamentalismo coexistiram na vasta extensão geográfica dos países de maioria muçulmana caraterizada, num caso, pela sua colaboração com os interesses ocidentais e, no outro, pela sua hostilidade para com eles. O bastião do primeiro tipo é o reino saudita, o mais obscurantista de todos os estados islâmicos. O bastião do fundamentalismo anti-ocidental dentro do xiismo é a República Islâmica do Irão, enquanto que a Al Qaeda e a Organização do Estado Islâmico representam a sua ponta de lança entre os sunitas.

Todas as correntes do fundamentalismo islâmico pregam igualmente o que podemos descrever como uma utopia medieval reacionária, ou seja, um projeto de uma sociedade imaginária e mítica que não olha para o futuro, mas para o passado. Todas elas procuram restaurar a sociedade mítica e o estado do Islão dos primeiros tempos. Nesta área, partilham uma premissa formal com a teologia da libertação cristã, que toma como referência o cristianismo primitivo.

No entanto, o programa dos fundamentalistas islâmicos não consiste num conjunto de princípios idealistas que visam um comunismo de amor e emanam de uma comunidade oprimida de pessoas pobres que vivem à margem da sociedade, uma comunidade cujo fundador seria atrozmente executado pelos poderes estabelecidos. Este programa também não invoca qualquer forma antiga de propriedade comunal, como foi parcialmente o caso na revolta dos camponeses germânicos no século XVI.

Os fundamentalistas islâmicos têm em comum o objetivo de estabelecer um modelo medieval de domínio de classe, que na altura realmente existia, embora fosse mito; um modelo nascido há pouco menos de catorze séculos, e cujo fundador – um mercador que se tornou profeta, senhor da guerra e construtor de um Estado e de um império – morreu no auge do seu poder político. Como todas as tentativas de restaurar uma estrutura social e política de vários séculos atrás, o projeto do fundamentalismo islâmico equivale inevitavelmente a uma utopia reacionária.

Este projeto está em afinidade eletiva com o Islão ultra-ortodoxo que, com o apoio do reino saudita, se tornou a corrente dominante no seio da religião muçulmana. [4] Este Islão encoraja uma abordagem literal da religião através do seu culto inigualável do Alcorão, considerado a palavra divina definitiva. O que hoje em dia é, na maioria das outras religiões, exclusivo do fundamentalismo como tendência minoritária – isto é, fundamentalmente, uma doutrina que advoga a aplicação de uma interpretação literal das escrituras religiosas – desempenha um papel essencial no Islão institucional dominante.

Dado o teor histórico específico das escrituras às quais pretende ser fiel, o Islão ultra-ortodoxo favorece particularmente doutrinas para as quais a prática religiosa conforme à fé pressupõe um governo baseado no Islão, na medida em que o Profeta lutou ferozmente para estabelecer um tal Estado. Pela mesma razão, favorece particularmente a luta armada contra todo o domínio não islâmico, referindo-se à história e à guerra travada pelo Islão contra outros credos no decurso da sua expansão.

Admitir esta afinidade eletiva entre o Islão ultra-ortodoxo e a utopia medieval reacionária, depois de ter sublinhado a afinidade entre o cristianismo primitivo e o utopismo comunístico, não implica um juízo de valor, mas decorre de uma análise sociológico-histórica comparativa das duas religiões. Além disso, o reconhecimento das suas afinidades eletivas não significa de modo algum que não haja tendências contrárias em cada uma delas.

Desde a sua fundação, o cristianismo tem abrigado tendências que alimentam vários tipos de doutrina reacionária e de fundamentalismo. E, inversamente, as escrituras islâmicas incluem alguns vestígios igualitários dos tempos em que os primeiros muçulmanos constituíram uma comunidade oprimida, vestígios que serviram para formular versões socialistas do Islão.

Por outro lado, o facto de existirem diferentes afinidades eletivas entre o cristianismo e o islamismo não significa que a evolução histórica real de cada religião tenha naturalmente seguido a inclinação da sua afinidade eletiva particular. Esta evolução adaptou-se, evidentemente, à configuração real da sociedade de classes com a qual cada uma se entrelaçou, uma configuração extremamente diferente da condição social original no caso do cristianismo, não tanto no caso do islamismo.

Durante vários séculos, o cristianismo histórico que realmente existiu foi menos progressista do que o islamismo que realmente existiu. Dentro da própria Igreja Católica, existe atualmente uma batalha feroz entre uma versão reacionária dominante, representada por Joseph Ratzinger (antigo Papa Bento XVI) e os seus seguidores, por um lado, e os defensores da teologia da libertação, por outro, aos quais foi dado um novo ímpeto pela radicalização da esquerda latino-americana.

Reconhecer uma afinidade eletiva entre o cristianismo e o socialismo não implica que o cristianismo histórico tenha sido fundamentalmente socialista. Uma tal proposta essencialista seria absurda. Da mesma forma, reconhecer a afinidade eletiva entre o corpus islâmico e a utopia medieval reacionária do nosso tempo, que assume a forma de fundamentalismo islâmico, não implica de modo algum que o Islão histórico fosse essencialmente fundamentalista – certamente, não o era! – ou que os muçulmanos estão condenados ao jugo do fundamentalismo, independentemente das circunstâncias históricas. No entanto, no caso do cristianismo (original) como o do islamismo (literalista), este conhecimento é uma das chaves para compreender os diferentes usos históricos de cada religião como um estandarte de protesto.

Isto permite-nos compreender porque é que a teologia da libertação cristã pode tornar-se uma componente tão importante da esquerda na América Latina, enquanto todas as tentativas para criar uma versão islâmica desta mesma teologia têm permanecido marginais. Também nos ajuda a perceber porque é que o fundamentalismo islâmico conseguiu ganhar a enorme importância que tem atualmente nas comunidades muçulmanas e porque é que substituiu tão facilmente a esquerda na encarnação da rejeição do domínio ocidental, embora em termos socialmente reacionários.

A ideia orientalista superficial, muito difundida hoje em dia, de que o fundamentalismo islâmico é a inclinação natural e a-histórica dos povos muçulmanos, por outro lado, é completamente aberrante, uma vez que ignora factos elementares. Por exemplo, há algumas décadas atrás, um dos mais importantes partidos comunistas do mundo, um partido que, portanto, professava oficialmente uma doutrina ateísta, estava ativo no país com a maior população muçulmana: a Indonésia. Este partido foi violentamente aniquilado, a partir de 1965, pelos militares indonésios apoiados pelos Estados Unidos da América.

Outro exemplo: no final dos anos 50 e início dos anos 60, a principal organização política, no Iraque, especialmente entre os xiitas do sul do país, não era um movimento liderado por algum religioso, mas sim o Partido Comunista. Além disso, Nasser, que liderou a viragem socialista do Egito, em 1961, era um crente sincero e um muçulmano praticante, mas tornar-se-ia o pior inimigo dos fundamentalistas. A influência que exerceu no auge do seu prestígio nos países árabes e mais além é inigualável.

É por isso, importante situar o uso que se faz do Islão, como de qualquer outra religião, no contexto das condições sociais e políticas concretas, tal como é importante distinguir claramente entre o Islão quando se torna um instrumento ideológico de dominação de classe e género e o Islão como marca de identidade de uma minoria oprimida, por exemplo nos países ocidentais.

Contudo, a luta ideológica contra o fundamentalismo islâmico – contra as suas ideias sociais, morais e políticas, não contra os princípios espirituais fundamentais do Islão enquanto religião – deve continuar a ser uma das prioridades das pessoas progressistas no seio das comunidades muçulmanas. Por outro lado, há pouco a objetar às ideias sociais, morais e políticas próprias da teologia da libertação cristã – para além da sua adesão ao tabu cristão geral sobre a interrupção voluntária da gravidez – até para os ateus mais duros da esquerda radical.


Gilbert Achcar é professor na Faculdade de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) da Universidade de Londres, e autor de livros como Marxism, Orientalism, Cosmopolitanism, The People Want: A Radical Exploration of the Arab Uprising e Morbid Symptoms: Relapse in the Arab Uprising.

Texto publicado no Le Monde Diplomatique e no Viento Sur. Traduzido por António José André para o esquerda.net.


Notas

[1] Michaël Löwy, La Guerre des dieux. Religion et politique en Amérique latine, Editions du Félin, Paris, 1998.

[2] O adjetivo comunístico emprega-se para distinguir este utopismo das doutrinas comunistas formuladas depois do advento do capitalismo industrial.

[3] Friedrich Engels, “A guerra dos camponeses na Alemanha”.

[4] Ler Nabil Mouline, Surenchères traditionalistes en terre d’islam, Le Monde Diplomatique, março de 2015.

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