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Para pensar a possível desalienação do trabalho

A redução da jornada de trabalho é imprescindível, mas não basta. Na contramão de lucro e pressões, é preciso desalienar o labor. Criar espaços deliberativos sobre a produção, que pensem o impacto ambiental e a divisão do trabalho doméstico Por Thomas Coutrot.
Trabalhadoras. Ilustração do Outras Palavras.
Trabalhadoras. Ilustração do Outras Palavras.

Com a crise ecológica que ameaça não apenas a saúde no trabalho, mas também a vida humana e não humana, a redução do tempo de trabalho (RTT) deve ter um novo objetivo: dar aos trabalhadores tempo para deliberarem sobre a organização e os objetivos do trabalho, a fim de organizar a transição entre dois paradigmas de trabalho; o da produção e o do cuidado (care). Já não se trata apenas de reduzir as horas de trabalho, mas de transformar o próprio trabalho, para que este seja capaz de cuidar da vida.

O tempo libertado pela RTT deve, portanto, ser utilizado para organizar a deliberação política sobre o trabalho. A “redução do tempo de trabalho subordinado” (RTTS) poderia devolver aos trabalhadores o poder sobre o seu próprio trabalho; parar a corrida ao consumismo e ao produtivismo e dar sentido ao trabalho; encorajar um debate sobre a partilha do trabalho reprodutivo, que é esmagadoramente atribuído às mulheres; e fazer com que o movimento de democratização da sociedade volte a mover-se.

A crise sanitária acentuou ainda mais as tendências deletérias da organização neoliberal do trabalho: intensificação, individualização, precarização. Ao mesmo tempo, as crescentes aspirações ao reconhecimento de atividades essenciais à vida e a um trabalho que tenha sentido têm sido muito debatidas nos últimos tempos.

A RTT é uma bandeira histórica do movimento dos/as trabalhadores/as e permanece no centro das estratégias para a emancipação do trabalho. A questão é saber como ela pode ser repensada de acordo com essas aspirações.

A redução do tempo de trabalho: viver melhor ou salvar vidas?

Ao longo da sua história o capitalismo nunca deixou de querer aprofundar a exploração do trabalho, aumentando a sua duração e intensidade: desde as suas origens o sindicalismo lutou por uma redução da jornada de trabalho e contra as horas de trabalho desumanas que ameaçavam a vida dos/as trabalhadores/as. Subsequentemente, a RTT desempenhou, durante muito tempo, um papel central nas perspetivas de emancipação: a curto prazo para melhorar a vida quotidiana dos trabalhadores e, a longo prazo, para promover a emancipação do proletariado em direção à transição para o socialismo.

Classicamente, a RTT deve limitar a alienação salarial na vida dos indivíduos e, ao mesmo tempo, aumentar o tempo de liberdade, de atividades culturais, autónomas e democráticas. A redução do horário de trabalho tornou-se também uma bandeira contra o desemprego nos anos de 1980: trabalhar menos para viver melhor e trabalharem todos/as, tal era – e ainda é – o significado desta reivindicação sindical. Em França, por exemplo, desde 1950, com os ganhos de produtividade, apesar do Produto Interno Bruto (PIB) ter aumentado acentuadamente, o número total de horas de trabalho permaneceu inalterado. Nos momentos posteriores, se o emprego aumentou em 50%, limitando, assim, o aumento do desemprego, foi graças à redução progressiva do tempo de trabalho, sob a pressão dos/as trabalhadores/as.

Em termos de qualidade de vida, a redução das horas de trabalho, com a jornada de oito horas, férias pagas, direito à reforma, entre outras conquistas, melhoraram decisivamente a condição do emprego. Essas reduções permitiram escapar do trabalho alienado, libertar tempo para o descanso e o entretenimento; em suma, para a constituição de uma vida melhor. A mudança para uma semana de 35 horas (leis Aubry, 1998-2000) criou centenas de milhares de empregos, sendo que os/as trabalhadores/as apreciaram muito os dias extras de folga conquistados. Entretanto, desde que o tempo de trabalho deixou de diminuir, o desemprego em massa instalou-se na França.

Contudo, a experiência francesa de redução da jornada para 35 horas semanais também revelou os seus limites como estratégia emancipatória. Como os objetivos de produção e rentabilidade do capital não foram revistos nas suas bases, os/as trabalhadores/as pagaram a RTT com um congelamento ou uma queda dos salários, uma intensificação do trabalho (redução das pausas, aceleração das cadências, parcelamento das tarefas, necessidade de elaboração de relatórios permanentes [1]) e uma flexibilização do horário de trabalho (horários de trabalho escalonados, trabalho aos fins-de-semana).

Para as mulheres, que acumulam o trabalho remunerado e o trabalho doméstico, esta situação foi ainda mais desastrosa. Ao contrário das esperanças feministas, a RTT não levou ao equilíbrio do tempo gasto com o trabalho reprodutivo entre homens e mulheres: os homens usaram boa parte do tempo livre ganho para fazer mais jardinagem e mais trabalhos de conserto, e pouco para as tarefas domésticas. E, ao contrário das perspetivas evocadas por Marx, nem os homens e nem as mulheres utilizaram o tempo libertado para aumentar, significativamente, o seu envolvimento em atividades associativas, sindicais ou políticas.

De facto, se cada trabalhador na França trabalha, em média, 500 horas a menos por ano do que em 1950, será que hoje podemos dizer que são mais livres? Menos escravizados pelo ciclo do capital? Menos preocupados com o futuro dos seus filhos? Mais combativos e preocupados com a solidariedade? Mais no controle dos seus destinos individuais e coletivos? Menos constrangidos por um trabalho entorpecente e patogénico, e por um consumismo compensatório? Provavelmente não. A extrema gravidade da crise ecológica proíbe-nos de nos darmos por satisfeitos em querer “viver melhor” num sistema inalterado. Precisamos salvar vidas: a RTT pode ajudar-nos, se a repensarmos completamente.

Um impasse marxista

Marx, numa famosa passagem do Capital, formulou melhor a ilusão de que a RTT teria, em si mesma, uma função emancipatória, explicitando que o reinado da liberdade só começaria onde terminaria o trabalho determinado pelas necessidades e pelos fins externos. De forma que a redução da jornada de trabalho seria uma condição fundamental, mas não suficiente, para esta libertação (MARX, 2008).

No manifesto vibrante a favor da redução do tempo de trabalho, Besancenot e Löwy (2019, p. 16), recordam que, para Marx:

uma vez que o trabalho é determinado pela necessidade, a liberdade na esfera da produção não pode consistir em organizá-lo livremente, mas apenas em decidir democraticamente o que produzir, em vez de deixar que a lei do lucro atue sem limites. A liberdade para decidir as finalidades do trabalho, mas não a liberdade no trabalho.

Mas a oposição entre o trabalho e a liberdade é um impasse fatal. A equação marxiana “tempo livre = liberdade” é demasiado simplista, tal como a imagem espelhada de “trabalho = alienação”. Certamente, na medida em que implica um esforço, um confronto à resistência do mundo, e sob o capitalismo uma submissão às relações de poder, o trabalho é antes de mais nada um constrangimento, e mesmo um sofrimento. Mas, como Marx também disse [2], o trabalho pode levar à auto-realização e à experiência da liberdade concreta, tanto em função dos laços sociais e de solidariedade que são frequentemente forjados por ele, quanto pelo reconhecimento monetário ou simbólico. Mas acima de tudo, como a Ergonomia, a Sociologia e a Psicologia do Trabalho demonstraram, devido à mobilização da inteligência, da criatividade e da inventividade que muitas vezes torna possível superar dificuldades. Trabalhar é precisamente isso: confrontar a resistência da realidade e encontrar soluções. É por isso que o sofrimento vem primeiro. O prazer vem depois. O sofrimento pode transformar-se em prazer se conseguirmos ultrapassar o obstáculo, se conseguirmos transformar-nos para ultrapassá-los (DEJOURS, 2012, p. 1).

Por mais rigorosos que pretendam ser a prescrição, as instruções e os procedimentos; por mais forte que seja o controle que o trabalho morto (o capital) busque exercer sobre os/as trabalhadores/as (o emprego de trabalho vivo), esta “liberdade concreta que se atualiza no trabalho” (como dito por Marx noutra passagem, mais frutuosa do que a anterior, do Capital), permanece sempre necessária para a produção. Executar instruções à risca é chamado de “ataque de zelo” e acaba por paralisar a produção. Em suma, trabalhar é também desobedecer e inventar: ao contrário de uma visão comum entre os marxistas [3], os/as trabalhadores/as nunca são reduzidos a “zombies”. Existe uma fonte preciosa, embora invisível e dispersa, de energia revolucionária.

A dialética do trabalho e da liberdade

Besancenot e Lowy (2019, p.121) reafirmam, sem que fique claro o que leva a este otimismo, que “com mais tempo à nossa disposição, teremos a liberdade de decidir e arbitrar sobre as escolhas que afetam as nossas condições de trabalho, bem como as nossas condições de vida”. Como podemos estabelecer uma equivalência entre a redução do tempo de trabalho e a qualidade democrática do tempo livre? A história do movimento operário mostra que tomar o poder do Estado sem transformar as relações sociais fundamentais de submissão e opressão, particularmente quanto ao trabalho, só pode resultar num impasse. A relação capitalista de produção que é caracterizada pela subordinação salarial, ou seja, a promessa de obediência em troca de remuneração, é certamente menos opressiva do que a escravatura ou a servidão, uma vez que os empregados são formalmente livres para deixar os seus empregos e têm acesso a direitos sociais. Entretanto, permanece fundamentalmente contraditória com uma verdadeira democratização da sociedade.

No entanto, esta relação esconde uma contradição interna, frequentemente ignorada pelo marxismo comum, que pode ser a fonte de uma dialética fecunda entre trabalho e liberdade. Já em 1959, na revista Socialisme et Barbarie, Castoriadis (1979, p. 49) cita que a “contradição fundamental” do capitalismo não é, ao contrário do marxismo clássico, a queda na taxa de lucro ou o conflito entre as forças produtivas e as relações de produção, mas “encontra-se na produção e no trabalho”:

é a contradição contida na alienação do trabalhador: a necessidade do capitalismo reduzir os trabalhadores a meros executores, e a sua impossibilidade de funcionar se conseguir fazê-lo; a sua necessidade de conseguir, simultaneamente, a participação e a exclusão dos trabalhadores em relação à produção (como dos cidadãos em relação à política etc.).

Castoriadis (1979) faz a ligação, com uma grande lucidez, entre a alienação no trabalho e a privação na política: não pode haver democracia política sem democracia no trabalho. As trabalhadoras que são ensinadas durante anos, no sistema escolar, que não têm as competências para organizar o seu próprio trabalho e que devem obedecer, escrupulosamente, aos patrões e às instruções, dificilmente podem tornar-se cidadãs críticas e autónomas aos finais de semana. Mesmo que na prática, muitas vezes clandestinamente, ou mesmo inconscientemente, os/as trabalhadores/as tenham de desobedecer para produzir, o facto é que as normas políticas de trabalho – consagradas no contrato de trabalho regido pela subordinação do/a trabalhador/a ao patrão – contaminam, necessariamente, a esfera cívica.

Diversos estudos recentes confirmam a relação entre o declínio da autonomia no trabalho e o aumento da abstenção eleitoral e, ao mesmo tempo, da extrema-direita [4]. Simone Weil (1998, p.92), que criticou duramente a visão, cantada na Internacional, de um proletariado que passaria do “nada” para “tudo” pela magia da transmutação revolucionária, já tinha notado que “com os cárceres industriais que constituem as grandes fábricas, só se pode fazer escravos, e não trabalhadores livres, e ainda menos trabalhadores que constituiriam uma classe dominante”. A degeneração burocrática das revoluções proletárias do século XX apenas provou que ela estava correta.

Mas como libertar a energia revolucionária latente no trabalho vivo? Como torná-lo uma fonte de poder social e de emancipação? A redução do tempo de trabalho subordinado poderia ser um instrumento relevante.

Tempo para deliberar sobre o trabalho

O mundo de trabalho contemporâneo vive uma verdadeira epidemia global de “riscos psicossociais” causados pela gestão neoliberal sob o domínio da lógica financeira. Por todo lado os/as trabalhadores/as estão sujeitos a uma aceleração dos ritmos de trabalho, mas também a uma perda de autonomia no trabalho sob a influência de normas de gestão (normas “iso”, certificações, procedimentos, objetivos quantificados etc.) e da segmentação de tarefas, favorecida e acelerada pelas ferramentas digitais. Esta radicalização do ataque ao trabalho vivo provoca nos/as trabalhadores/as um sentimento generalizado de incapacidade de realização de um trabalho de qualidade, resultando em conflitos éticos, burnout, depressão e suicídios. Perante a perda de sentido do trabalho, os/as trabalhadores/as muitas vezes ficam descompensados/as e adoecem. Mas também podem se demitir do trabalho como forma de protesto silencioso ou, por outro lado, aderirem a um sindicato para agir coletivamente, como muitas vezes o fazem. Coutrot e Perez (2021), mostram como a perda do sentido do trabalho aumenta a probabilidade de faltas por doença, assim como a decisão de se juntar a um sindicato, ou de mudar de emprego.

O sofrimento no trabalho reflete o choque entre as aspirações de ser capaz de desenvolver e realizar algo útil ao mundo em seu trabalho, e a sua organização real que impede essa realização. Se permanece isolado esse sofrimento leva, na melhor das hipóteses, à fuga e, na pior das hipóteses, à doença e à morte. Mas ele pode também levar a uma reconquista do poder através da mobilização coletiva.

Várias experiências conduzidas por sindicalistas, frequentemente apoiados por investigadores, demonstraram a fecundidade política de uma abordagem baseada no trabalho. A partir das aspirações frustradas dos/as trabalhadores/as em fazer um bom trabalho, as trocas entre pares, liderados por ativistas sindicais, mostram-lhes que, de facto, eles/elas já têm mais poder do que acreditam, devido à indispensável mobilização do seu trabalho vivo. Isto pode levá-los/as a formar um coletivo mobilizado em torno da questão do trabalho bem-feito ou, igualmente, para recuperar a confiança no sindicato, como podemos ver nas discussões de Davezies (2014) e Gache (2013). Estes investigadores observaram que uma condição essencial para esta capacitação coletiva das questões de trabalho é a possibilidade de ter tempo para discutir essas questões com os/as colegas, para trocar informações a respeito do que impede a atividade e sobre as invenções de cada pessoa para ultrapassar os obstáculos. Em suma, para criar inteligência coletiva sobre como fazer bem o trabalho, preservando, ao mesmo tempo, a saúde.

Gache (2012, p. 36), delegado da central sindical da CGT Renault, indica claramente a natureza política da abordagem:

quanto mais nos interessamos pelo trabalho real em detalhe, mais descobrimos o interesse que os/as trabalhadores/as têm nele, e mais a questão do significado do que fazemos, do que produzimos, é levantada individual e coletivamente (…). A emancipação do trabalhador no trabalho parece ser o elemento constitutivo da sua própria saúde, sua própria capacidade de agir sobre o que o rodeia e, portanto, de ser um cidadão de pleno direito na sociedade.

Contudo, discutir estas questões com colegas, trocar informações sobre os obstáculos à atividade e invenções de cada pessoa a fim de ultrapassá-los, desenvolver inteligência coletiva sobre como fazer bem o trabalho preservando, ao mesmo tempo, a sua saúde, requer tempo. Mas na era da intensificação do trabalho, o tempo tornou-se escasso. É por isso que a perspetiva clássica do RTT poderia ser enriquecida por um novo aspeto: a redução do tempo de trabalho subordinado (RTTS), para abrir, dentro do tempo de trabalho pago, espaços para a deliberação autónoma dos/as trabalhadores/as sobre o seu trabalho.

Trata-se de possibilitar que todos/as os/as trabalhadores/as tenham direito ao tempo de trabalho remunerado, mas não subordinado. O mesmo que já está disponível para os representantes do pessoal (eleitos ou delegados sindicais). O pagamento das horas de delegação já reconhece o trabalho de representação como uma atividade útil para a empresa e para a sociedade: o RTTS reconhecerá, da mesma forma, o trabalho de deliberação dos/as trabalhadores/as e funcionários/as, os/as melhores conhecedores/as do seu trabalho tanto no que se refere à sua organização quanto aos seus objetivos.

A proposta inclui uma quota mensal de quatro HDT (“horas de deliberação sobre o trabalho”) a ser concedida a cada empregado para participar de reuniões, onde a hierarquia não estaria presente. Em cada unidade de trabalho, para substituir os delegados do pessoal, abolidos em 2017, seria eleito um DDT (Delegado para a Deliberação sobre o Trabalho) que seria responsável pela preparação e liderança das reuniões mensais, levando os seus resultados perante aos órgãos representativos do pessoal e a direção, assegurando o seguimento dos pedidos e decisões.

Estas reuniões discutiriam as formas como o trabalho seria organizado e os seus efeitos sobre a saúde dos/as trabalhadores/as. Considerando não apenas os/as trabalhadores/as afetados pelo trabalho, mas também os residentes locais e o próprio meio ambiente exterior. As reuniões objetivariam construir propostas de melhoramento em todos estes aspetos, que seriam depois debatidas nos órgãos representativos eleitos e, em particular, no Comité de Trabalho, Saúde e Ambiente (CHSCT renovado). Nas grandes empresas, a expansão do grupo, incluindo associações de clientes/utilizadores, de pessoas que moram na localidade, de associações ligadas ao meio ambiente, permitiria abarcar grupos externos ao local de trabalho.

Estas horas de deliberação seriam claramente diferentes do “direito de expressão”, estabelecido pelas Leis Auroux de 1982 (que depois caiu em desuso) ou das “áreas de discussão de trabalho” promovidas pelo acordo interprofissional sobre “Qualidade de vida no trabalho” de 2013 (que permaneceram letra morta). Os/as trabalhadores/as e os seus representantes decidiriam sobre a organização e agenda das reuniões, em que o discurso seria livre devido à ausência da hierarquia – salvo exceções que fossem decididas coletivamente. O confronto entre pontos de vista diferentes sobre o trabalho possibilitaria trazer à tona as preocupações e propostas do coletivo, apoiando as disputas com a gestão e, possivelmente, promovendo a mobilização.

A RTTS poderia, simplesmente, ser articulada com a RTT clássica. Assim, no caso francês, a passagem das 35 às 32 horas semanais realizar-se-ia por meio de uma RTT clássica de 2 horas, sendo acrescentada mais 1 horas de RTTS. A RTT estaria então mais apta a satisfazer as expectativas sociais, feministas, ecológicas e democráticas que suscita.

Uma RTT solidária, ecofeminista e democrática

O direito de deliberar a respeito do trabalho, especialmente se for associado ao direito de veto dos representantes do pessoal (CSE) sobre a reorganização do trabalho com impacto no emprego e/ou na saúde, seria um poderoso instrumento para controlar o impacto da RTT sobre a intensidade do trabalho e, portanto, do emprego. De facto, quando ocorre uma redução do horário legal de trabalho os gestores geralmente buscam compensá-la, reorganizando o trabalho para intensificá-lo, reduzindo, assim, as necessidades de contratação. A RTTS coloca o debate sobre as condições e organização do trabalho no centro do processo e reforça o peso dos/as trabalhadores/as nas decisões – ainda mais que os Comités Saúde, Trabalho e Meio Ambiente teriam direito de veto em relação às deliberações que impactam a saúde dos/as trabalhadores/as e o meio ambiente.

O impacto da RTT sobre o trabalho e o emprego será, portanto, mais favorável se for associado a uma RTTS, reforçando a solidariedade social. Além disso, ao colocar a qualidade do trabalho e os seus efeitos sociais no centro do debate político dentro das empresas, a RTTS encorajará o desenvolvimento da ética do cuidado (care) no trabalho. Preocupar-se com os efeitos concretos do trabalho na saúde e no meio ambiente, obrigar as pessoas que tomam as decisões a ter em conta estes efeitos nas suas decisões organizacionais e de produção é, de facto, começar a romper com o produtivismo. Significa vincular a luta pela saúde física e mental das mulheres e dos homens e a luta pela preservação dos ecossistemas, introduzindo a lógica ecofeminista do cuidado no trabalho. Consiste em começar a reabilitar o trabalho concreto em detrimento do trabalho abstrato, grande operador da co-mensurabilidade dos bens, independentemente do efeito real da sua produção sobre o mundo.

Esta dinâmica de deliberação sobre o trabalho não terá efeitos sem o reconhecimento do trabalho de reprodução. Colocar em questão a distinção tradicional entre cuidado e trabalho produtivo significa, também, desnaturalizar a atribuição do trabalho reprodutivo às mulheres. Ao alterar a forma como o trabalho produtivo é visto, ao redefinir as fronteiras entre trabalho subordinado e trabalho político, a RTTS desestabiliza as representações e as hierarquizações que presidem à divisão sexual do trabalho e contribui, podemos esperar, para uma melhor partilha sexuada do trabalho reprodutivo.

Como vimos, as esperanças emancipatórias depositadas na redução do tempo de trabalho assalariado foram desapontadas: uma RTT puramente quantitativa, que não modifica os mecanismos de despossessão do trabalhador em relação à sua atividade, apenas possibilita um aumento do tempo gasto com o consumo, o lazer ou com o trabalho doméstico. Por outro lado, uma RTTS que reconheça o valor da deliberação sobre a qualidade e a utilidade do trabalho reforçará a atividade cívica dos/as trabalhadores/as, tanto dentro quanto fora da empresa.

A heteronomia no trabalho favorece a passividade política e, inversamente, o autogoverno na empresa estimula a democracia na sociedade. Segundo Dewey (2008, p. 390), “o problema último da produção é a produção dos seres humanos livres que se associam uns aos outros em pé de igualdade”: a redução do tempo de trabalho subordinado pode ser um passo concreto para a resolução deste “problema último”. O elo que falta entre a redução do tempo de trabalho e a democracia é uma política de liberdade do trabalho: uma reapropriação, em relação com a sociedade civil externa à empresa, da organização e dos objetivos do trabalho pelos/as trabalhadores/as.


Este artigo foi publicado originalmente com o título “Solidariedade, ecofeminismo e democracia: a redução do tempo de trabalho subordinado”, como um capítulo do livro O futuro é a redução da jornada de trabalho (CirKula, 2022).

Thomas Coutrot é economista e diretor do Departamento “Saúde e Trabalho” na Direção de Investigação e de Estatísticas (DARES) no Ministério do Trabalho da França. É membro do movimento altermundialista (globalização alternativa e movimento da justiça global) e foi co-presidente da Associação para a Tributação de Transações Financeiras e para a Ação do Cidadão (Attac), em França. Lecionou na Universidade de Brasília (UnB), entre 1988 e 1990.

Texto publicado originalmente no Outras Palavras. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.


Notas

[1] Os/as trabalhadores/as são obrigados a fazer relatórios documentando como realizam o trabalho, a todo o momento, alimentando infindáveis tabelas de Excel e softwares de gestão.

[2] Quando Marx escreve que sob o comunismo “o trabalho (se tornará) não apenas o meio de vida, mas também a primeira necessidade da vida”.

[3] Alain Bihr desenvolveu, muito recentemente, esse ponto de vista em detalhes em “Le vampirisme du capital: o ponto cego da análise marxista (II), citado das referências.

[4] No livro Libérer le travail (COUTROT, 2018), apresento um resumo das contribuições da Ergonomia, Psicologia, Sociologia e Economia do Trabalho no que diz respeito às complexas relações entre trabalho, saúde, eficiência e autonomia política.

 

Referências

BESANCENOT, O.; LÖWY, M. La journée de travail et le ‘règne de la liberté’ (Karl Marx). Paris: Fayard, 2019.

BIHR, A. Le vampirisme du capital: o ponto cego da análise marxiana (II). L’anticapitaliste. 2021. Disponível em: https://shrtm.nu/2cms. Acesso em: 20 Jun. 2022.

CASTORIADIS, C. Le mouvement révolutionnaire sous le capita-lisme moderne, dans Capitalisme et révolution. Paris: Union Générale d’Éditions, 1979.

COUTROT, T. Libérer le travail. Paris: Éditions du Seuil, 2018.

COUTROT, T.; PEREZ, C. Quand le travail perd son sens: une exploration à partir des enquêtes Conditions de Travail 2013 et 2016. [Working Paper]. Dares – Centre d’Economie de la Sorbonne, setembro de 2021. Disponível em: https://shrtm.nu/uVB6. Acesso em: 20 Jun. 2022.

DAVEZIES, P. L’individualisation du rapport au travail: un défi pour le syndicalisme. Policy Brief ETUI, n. 3, 2014. Disponível em: https://shrtm.nu/UqVM. Acesso em: 20 Jun. 2022.

DEJOURS, C. Peut-on parler de souffrance au travail? Entrevista realizada por Yves Clot no site Changer Le Travail. 2012. https://shrtm. nu/2bqA. Acesso em: 20 Jun. 2022.

DEWEY, J. Experience and Education, Freedom and Culture, Theory of Valuation, and Essays – 1938-1939. 9e Later Works. Col-lected Works. Southern Illinois: University Press, 2008.

GACHE, F. Renault: recherche action. Actes du colloque Travail: l’évaluation en question. Montreuil., U4ct CGT mines énergie. 26 janvier 2012. Disponível em: https://shrtm.nu/dZBQ. Acesso em: 20 Jun. 2022.

GACHE, F. L’expertise doit venir en complément de l’action syndicale, et non s’y substituer. Entrevista realizada por Sabine Fortino e Guillaume Tiffon. La Nouvelle Revue du Travail, n. 3, 2013.

MARX, K. Le Capital. [Tome 2]. Paris: Folie. 2008.

WEIL, S. Réflexions sur les causes de la liberté et de l’oppression sociale. Paris: Folio, 1998.

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