Para pensar o futuro: vale a aposta de um governo de coligação dentro da economia cruel?

20 de julho 2011 - 23:44

Contributo de Francisco Louçã

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Porque é relevante para os debates que têm atravessado o Bloco em todas as convenções, e que certamente persistem hoje em dia, submeto aos leitores e leitoras deste “Debate Aberto” as partes relevantes de dois textos que publiquei em resposta a artigos de André Freire no jornal Público (e acrescento no fim um documento sob a forma de epílogo). Freire é um dos analistas que tem proposto desde há muito que o Bloco mude de política e de natureza para passar a integrar uma coligação com o PS.

Os dois artigos foram escritos em 2011 mas antes dos acordos da troika. E estes argumentos quase se poderiam dispensar nessa nova situação. Afinal, a proposta de que a esquerda se proponha ser parte de um governo com o PS defronta-se com uma situação totalmente clara: durante os próximos anos, o PS votará cada uma das medidas da troika, cujo objectivo é a destruição da economia, do emprego e das condições de vida dos trabalhadores e jovens. Uma coligação teria de ser uma aliança da troika.

É por isso preciso pensar mais além e noutra direcção muito diferente. Depois da viragem à direita com as últimas eleições presidenciais e legislativas, e agora que estamos no tempo do regime dos credores, é preciso procurar virar a maré e recuperar capacidade de iniciativa e resposta política directa, concreta e mobilizadora para um programa de esquerda na urgência da luta contra a bancarrota.

Uma palavra final de saudação à notável participação neste Debate Aberto de muitas e muitos activistas, do Bloco ou independentes próximos do Bloco, a partir de muitos pontos de vista críticos, mas tantos deles partilhando a vontade de construir uma nova esquerda socialista, um Bloco mais forte e mais implantado como alternativa para juntar forças na esquerda.

1. Vem aí o novo partido para se aliar com o PS

Uma esplêndida notícia: André Freire anuncia a sua disposição de impulsionar um novo partido “da esquerda radical” mas orientado para uma participação no governo de Sócrates. Fá-lo de forma algo reservada, num violento artigo de demarcação contra o Bloco de Esquerda e publicado no dia 7 de Março no Público, mas a conclusão é evidente e prometedora. Quero por isso felicitá-lo e incentivá-lo à sua obra. Esse novo partido é necessário e a sua acção clarificaria muito da ambiguidade que envolve o pensamento e as escolhas das esquerdas em Portugal.

Não me ocuparei por isso de minudências da argumentação de Freire contra o Bloco, nem da forma como reconstrói com alguma fantasia a história recente (o episódio da ruptura com Sá Fernandes é contado como se não houvesse Mota-Engil no Terminal de Alcântara, por exemplo), nem da sua ligeireza acerca das razões que determinaram a criação do Bloco e o seu sucesso (Freire ainda pensa que foi o conservadorismo moral de Guterres que criou o Bloco, como se não tivesse sido contra o liberalismo autoritário de Sócrates que o Bloco tivesse obtido o seu maior sucesso eleitoral). Deixo isso de lado, porque são só artifícios de retórica, e pouco consistentes, para explicar porque é que o Bloco não serve, segundo Freire, para a função que lhe idealizou: colaborar com o PS no governo. O que merece reflexão é este desígnio estratégico que o novo partido proposto por Freire se propõe alcançar.

A apresentação da moção de censura é enunciada por Freire como a prova provada dessa desadequação entre o Bloco e a tarefa que o politólogo lhe tinha destinado. Tiro-lhe o chapéu, porque tem toda a razão. A moção de censura prova mesmo que o Bloco não faz nem fará parte do rotativismo político que tem governado Portugal e que, em alternativa, se propõe juntar forças para um governo de esquerda que dirija uma economia contra a recessão. Na verdade, toda a actividade política e social do Bloco, as suas anteriores moções de censura, os programas eleitorais ou os textos das Convenções demonstravam isso mesmo, mas o nosso crítico ainda não o tinha percebido. Entende agora a mensagem, e decerto não perderá mais tempo a recomendar a conciliação entre a esquerda socialista e o governo de Sócrates. Mais: conclui, e bem, que para isso é preciso formar o seu novo partido para a sua velha estratégia.

Mas o que impressiona no artigo de Freire é a forma da política que propõe: é uma política deserta, sem qualquer programa político, sem qualquer ideia a propor aos eleitores, sem qualquer proposta para o país senão a participação governamental do seu novo partido. Alguém pode confundir esta orientação com a convocação de algum carreirismo, mas não: trata-se de uma ideia sobre como deve a esquerda agir a longo prazo.

A proposta parte aliás da convicção de que essa participação seria plausível e bem acomodada pelo PS, chegando a sugerir que Sócrates só governou com a direita e consolidou a política orçamental com o PSD porque a tal foi obrigado, na falta de propostas e boa vontade das esquerdas.

Ora, a falsidade desta asserção é clamorosa, tanto no passado como no presente. No passado imediato, porque Sócrates tinha maioria absoluta (e não precisava do PSD) quando desencadeou a entrega de hospitais públicos ao Grupo Mello ou ao BES, ou quando aprovou o Código do Trabalho para destruir a contratação colectiva (com o voto contra de Manuel Alegre): nunca foi por pressão do PSD que se impuseram estas medidas, mas porque Sócrates entende que é através delas que deve reconstruir a economia do país. Mais recentemente, o Bloco apresentou 15 propostas concretas para o Orçamento em negociações propostas pelo governo, e confirmou que votaria um orçamento que consagrasse a prioridade do emprego e do salário qualificado (ignoro se Freire discorda destas 15 medidas, porque nada diz sobre o que deve fazer o governo). Mas o governo virou-se naturalmente para o PSD, porque era quem lhe garantia o ataque ao Estado social e o corte nos salários.

Pensar que o PS oscila hesitantemente entre a esquerda e a direita à procura do conforto de quem lhe oferecer aliança, é ignorar completamente a história do poder económico e social em Portugal. No livro colectivo “Os Donos de Portugal”, demonstramos como ao longo de todo o século XX a política concreta foi determinada pelo poder económico e pelo continuismo da visão autoritária, desigual e liberalizadora da sociedade, e como este poder se reforçou ao longo das várias gerações das dinastias financeiras. Nele se identificam as formas de assimilação do PS e do PSD e dos seus governos a este continuismo que tomou a forma do rotativismo.

Em termos de linguagem económica dos nossos dias, isto quer dizer que o sector da burguesia que tem dominado os governos do PS e do PSD-CDS é o que produz bens não-transaccionáveis, e que por isso coloniza o Estado para garantir o apoio à banca, aos empresários das obras públicas, da especulação imobiliária, das grandes superfícies, dos casinos, dos monopólios naturais, da energia e das comunicações. É o capital financeiro.

Daí concluo que a única estratégia possível para uma esquerda socialista é vencer o centro e a direita, socavando as condições desse rotativismo, para garantir em alternativa uma maioria para a acção pública que destrua os privilégios do capital financeiro e lidere o país para uma economia de pleno emprego. Para isso é necessário ganhar a maioria para um governo de esquerda, e a convergência de todos os sectores que defendem os serviços públicos e uma economia responsável é por isso a única política que conduz à vitória.

Como fica evidente pela indignação de André Freire, ele entende que esta política é inaceitável. Propôs ao Bloco – e agora desistiu de propor – que abandonasse a sua estratégia e passasse a apoiar o governo, na esperança de melhorar alguma das suas políticas (mas em texto anterior advertiu solenemente contra qualquer esperança de modificar as posições essenciais do governo). Propõe agora ao seu novo partido que adopte essa política, que é a razão da sua criação. E veremos em breve o resultado, se este novo partido for a votos, como é sua obrigação.

Há no entanto uma dificuldade: é que esta receita já foi experimentada. E André Freire, que é politólogo, conhece essa história de fracassos de esquerdas europeias. Sabe por isso que o que está a propor já foi aplicado por gente empenhada, mas só conduziu a dois resultados: ou ao desaparecimento da esquerda ou à sua transformação em direita. O primeiro caso, o do desaparecimento, foi demonstrado em Itália: a Refundação Comunista participou no governo Prodi, com ministros e com a presidência do Parlamento italiano, e apoiou a reforma da segurança social que indignou os trabalhadores e sindicatos. Nas eleições seguintes, não elegeu um único deputado. Caso diferente é o da Alemanha: os Verdes participaram em governos (tanto com o partido social-democrata como com a direita) e, ao contrário de Itália, ganharam e continuam a crescer. Mas são hoje um partido que defende a invasão do Afeganistão e a guerra colonial, e as políticas liberais da União Europeia. Não sobrou nada destas esquerdas, simplesmente porque abandonaram os seus programas, mentiram aos eleitores e aplicaram medidas contrárias à sua natureza. O seu insucesso ou sucesso foi o seu fim, porque abandonaram a sua política própria.

Um partido que siga este caminho tem as portas do governo abertas, isso é certo. Mas nem a vaidade do poder o isentará do balanço concreto: será um partido para participar num governo para reduzir o salário, para vender os CTT, para aumentar os impostos sobre o trabalho, para embaratecer os despedimentos, para entregar os hospitais ao Grupo Mello e para proteger a finança. E, com franqueza, meu caro André Freire, partidos desses já há, e muito competentes no seu mister. É mesmo neste novo partido que quer empenhar a sua vida?

[Em resposta a este artigo, André Freire esclareceu que não formaria partido nenhum. Limitou-se a desejar que esse partido fosse formado.]

2. Participar na coligação de governo para a influenciar pouquinho, sejamos sensatos

No último dia de Janeiro, na sua coluna habitual no Público, o politólogo André Freire fez o seu balanço das presidenciais, nomeadamentesobre a campanha de Manuel Alegre, que apoiou. Freire escreve, e com razão, que o resultado foi prejudicado pela “contradição entre o discurso em defesa do Estado social e a circunstância de o principal partido que o apoiava estar todos os dias a emagrecer o dito”. Concerteza.

Para concretizar, durante este período votou-se o orçamento, que reduz salários e apoios sociais aos pobres, mas que perdoa os impostos sobre os dividendos. Durante este período discutiram-se propostas do Bloco de fim das taxas moderadoras, de ataque ao abuso com os falsos recibos verdes, de protecção do Rio Tua, de planos de investimento público. O PS opôs-se sempre a medidas deste tipo para a salvação da economia. Deveria o Bloco ter deixado de as propor – e, já agora, são o nosso programa de compromisso com os eleitores – em nome de um manhoso cálculo governista? Como André Freire sugere que sim, vale a pena perguntar porquê e para quê.

O autor trata de um problema certamente difícil: “a impossibilidade histórica de as esquerdas se entenderem em Portugal”. E quer dar-lhe uma solução. Como analista e porventura como participante, que já demonstrou não deixar de o ser.

Ora, a sua proposta nem é nova, é só que a esquerda apoie e talvez mesmo participe num governo com o PS. Reconhece que isso é difícil, pois “temos um dos partidos socialistas mais alinhados ao centro da UE”. Fica difícil, um entendimento de esquerda com um dos partidos “mais alinhados ao centro”. Mas as culpas da desunião são da esquerda, e por duas razões, escreve Freire.

Em primeiro lugar, “a esquerda radical não fez a devida actualização ideológica, parece não aceitar os nossos compromissos europeus”. Estranho. Os compromissos dos governos (que astutamente sempre prometeram e depois rejeitaram que o povo pudesse votar) são lei para o Estado e portanto estão em aplicação. Mas quem responde perante a democracia sabe que estes compromissos nos levam a uma recessão em 2011 porque são uma economia estúpida. E quando a senhora Merkel deita gasolina no fogo ao exigir o aumento da idade da reforma ou a constitucionalização do limite do défice, bem podemos lembra-nos da urgência de uma refundação democrática e política da Europa. Assim, a esquerda é hoje o europeísmo solidário contra a destruição da Europa – os compromissos dos governos.

Mas a esquerda não vai para o governo, em segundo lugar, escreve Freire, porque “sobretudo parece não aceitar que, tendo em conta o seu estatuto de minoria, poderia apenas influenciar um eventual governo de esquerda plural (nunca determinar as suas orientações fundamentais)”. Que são, como já vimos, “emagrecer o dito”, o Estado social.

Entendamo-nos então. André Freire, que desejava e se empenhou na vitória de Alegre porque ele representava a defesa do Estado social, considera que o PS prejudicou a campanha por atacar o “dito” [Estado Social] (e de que modo, uma boa parte dos eleitores do PS votaram Cavaco), mas critica a esquerda que defendeu o “dito”, porque assim não chega ao governo. Mas, se para lá for, tem que se lembrar que não pode “determinar as suas orientações fundamentais”, só pode “influenciar”. E deve portanto aceitar a degradação do Estado social, acrescento eu, o que hoje quer dizer o corte no abono de família, nos rendimentos do trabalho, ou a ideia thatcheriana de embaratecer o despedimento.

André Freire é um dos mais destacados e lúcidos politólogos portugueses. Mas pergunto-me, sem malícia, se não se está a deixar levar por uma divagação formalista, construindo um edifício imaginário de conjugações de partidos, sem nunca fazer a pergunta essencial: governar para quê? Para quem? Para tomar que medidas? E é isso que nos distingue.

Porque sim, a esquerda tem que ter a ambição de governar. E portanto de juntar forças diferentes. Mas governar quer dizer decidir, e um governo de esquerda só pode nascer da afirmação de uma decisão de ruptura para tomar medidas sensatas para o emprego e justiça social. Se um governo prolonga a agonia das medidas liberais, se entrega os hospitais públicos à gestão privada, se vai destruindo a segurança social, só podemos tirar uma conclusão: para que haja um governo de esquerda é preciso vencer este governo liberal e autoritário [o governo do PS]. É preciso substituir as suas políticas.

E esse combate faz-se na clareza da democracia, por programas, por lutas e por votos. Tenho a certeza de que não se chega lá por arranjos de pastas, capitulações que abandonam o programa levado a voto, atalhos influentes, que nos possam distrair da única tarefa essencial: uma política socialista para um governo socialista.

3- Epílogo para os historiadores e para os militantes que respeitam a democracia

Para concluir, deixo uma parte de um dos documentos fundadores do Bloco de Esquerda, para que os debates actuais tenham memória do que já discutimos e do que já decidimos:

“As pessoas e as correntes que se situam à esquerda da governação têm três decisivos nesta viragem de século: um, é o de saber como podem acumular forças e mobilizar vontades para derrotar a doença nacional do rotativismo ao centro; outro, de natureza estratégica, é o da alternativa de programa; e o terceiro é o do seu posicionamento face ao ‘grande centro’ que vem governando o país. Os dois primeiros debates estão interligados. Só a acumulação de forças e conhecimentos permite construir e validar socialmente as hipóteses inscritas numa alternativa de programa.

Mas, inversamente, também é verdade que um projecto consistente de alternativa ao centrismo, é indispensável para gerar novas energias, despertar esperanças e mobilizar vontades. A terceira questão é igualmente decisiva: será o centrismo ‘reformável’ se a ele se associar a esquerda? Ou, pelo contrário, a esquerda, sem negligenciar o valor de acordos para reformas em concreto, deve ‘correr por fora’ para acumular forças e alternatividade?

(…) A terceira hipótese que norteia a actividade do Bloco é a da ruptura política com o rotativismo ao centro, erguendo uma alternativa de projecto para o desenvolvimento do país.

Este caminho impõe uma opção prática fundamental: estando nas instituições democráticas do Estado, lutando para que as suas propostas façam vencimento, o Bloco ‘corre por fora’.

Por outras palavras, o PS não deve contar com ele para qualquer solução governativa” (resolução da 1ª Convenção, Janeiro de 2000, páginas 25-6).

O Bloco escolheu o seu caminho. Discutimos e decidimos, desde a primeira hora. Sabia o que queria. Sabíamos que seria difícil. E sabíamos que a “opção prática fundamental” suscitaria críticas, como aquelas a que procurei responder nas páginas anteriores. Mas toda a nossa força resultou dessa escolha. Mais uma vez: a “hipótese que norteia a actividade do Bloco é a da ruptura política com o rotativismo ao centro, erguendo uma alternativa de projecto para o desenvolvimento do país”.