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Os últimos dias da humanidade?

“1984” esteve para se chamar “O Último Homem da Europa”, mas Orwell preferiu por no título uma data sem significado. O livro tornou-se assim um sucesso, narrando precisamente a banalização do poder sob a novilíngua, a sua voz do senso comum. Artigo de Francisco Louçã publicado no blogue Tudo Menos Economia.
George Steiner na New Yorker, edição Relógio d'Água.
George Steiner na New Yorker, edição Relógio d'Água.

Custa-me dizer-lhe isto tão à bruta: a Agência do Medicamento é questão de somenos e provavelmente rumará a outras paragens. Mas o que resta desta questão é o retrato de uma caça egoísta aos “despojos” britânicos, como gentilmente escreve um entusiasta europeu, com os governos a promoverem descontos fiscais e mordomias para seduzirem os chefes nómadas, o que diz muito sobre a malandrice numa União que vive disto. Em Portugal, também tudo trivial: é assunto para as eleições autárquicas. Ora, esta banalidade é inócua, será o menos que nos ameaça. É assim e vai continuar a ser assim, a genética europeia manda.

A questão que então me importa é outra: por que é que nos embriagamos com estes casos (ou com os mails e as zangas do futebol, sem dúvida ainda mais apaixonantes)? A resposta talvez seja que é assim que se forma o senso comum, o mais poderoso instrumento de poder dos nossos dias, ou que esta é a dominação mais forte, por se reproduzir consensualmente. É eficaz: não gera conflito, o cidadão é um espectador. É universal: não requer presença, aceita a representação etérea da decisão. O senso comum é portanto uma exterioridade que nos invade sem se ver.

“George Steiner em The New Yorker” (Relógio d’Água, 2017) é um livro fascinante que selecciona alguns dos artigos de Steiner, judeu franco-americano, crítico literário e ensaísta. No seu labirinto de temas, há um que porventura interessará aos meus leitores de hoje e que responde precisamente a este sentimento de banalização como gramática do quotidiano. Lembra ele o trabalho de Karl Kraus, austríaco, dramaturgo, que interpretava Shakespeare a solo, promoveu centenas de récitas que fascinavam os ouvintes e que, com a sua peça “Os Últimos Dias da Humanidade” (esteve recentemente em representação em Lisboa e Porto, pelo Teatro de S. João), descreveu, numa possessão de lucidez, termo de Steiner, a vulgaridade, a ostentação, os discursos do Estado Maior, do governo ou da imprensa para justificarem a Primeira Guerra, ou o mapa das palavras em que se tecia a ordem burguesa que anunciou a catástrofe – e ela veio mesmo.

Só que Kraus se enganou, não foram os últimos dias, nem seriam depois com Hitler (numa trágica ambiguidade, Kraus respondeu a Hitler com o silêncio, e morreu em 1936 sem ver o que estava a chegar). Houve o apocalipse e a meia-noite no século, houve o Gulag e a guerra do Vietname, houve napalm em Angola e tortura na Argélia, houve as Torres Gémeas e bombas de fósforo em Falluja, há a vala comum do Mediterrâneo, mas ainda cá andamos. Ou seja, o terror banalizou-se também, são dias como outros quaisquer.

Lembra então Steiner: “1984” esteve para se chamar “O Último Homem da Europa”, mas Orwell preferiu por no título uma data sem significado. O livro tornou-se assim um sucesso, narrando precisamente a banalização do poder sob a novilíngua, a sua voz do senso comum. Mas é assim, insiste Steiner, que a Europa se descobriu sempre: antes de “1984”, “As Viagens de Gulliver”, de Swift, que desembarca num Estado de bufos, ou Kafka, com a alucinação dos campos em que a sua Milena e as suas irmãs morreriam, ou Huxley com o “Admirável Mundo Novo”, ou Zamiatine com “Nós”, ou London com “O Tacão de Ferro”, todos descrevem esse mosaico de vozes de poder que domestica a cultura de massas. Ou seja, gritam contra uma época crepuscular que é engendrada pela banalização.

A literatura europeia sobre a Europa do século XX tem esta marca: o seu tom é a tragédia, descobrimos com ela que o pior não é vivermos os últimos dias, que não o são, mas antes sabermos que a humanidade está submetida a uma transcendência – a banalidade. Talvez por isso, a crítica ficou sempre à margem, o que tem consequência política, pois ela trata de um mundo que não se reconhece.

Artigo publicado em blogues.publico.pt a 16 de junho de 2017.

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